A migração ganhará em breve mais um local de expressão e debate no teatro. A Cia. Artesãos do Corpo está preparando um novo espetáculo, intitulado Tempo Suspenso, que trata a migração a partir do ponto de vista da perda e da busca de um lugar.
A peça, que conta com apoio do 18º Programa Municipal de Fomento à Dança de São Paulo, ainda vai estrear nos palcos, mas terá ensaio aberto na Missão Paz neste sábado (12), a partir das 17h – local que ajudou a inspirar o espetáculo.
O ensaio aberto em si pode ser compreendido como parte da filosofia da Cia, que busca usar o palco e locais não convencionais como espaços de atuação e diluir fronteiras entre dança, teatro e performance. Ela ainda lança mão de elementos orientais como meio de preparo tanto do corpo como da mente. Para Tempo Suspenso, por exemplo, o recurso é o MA – modo de olhar o mundo inerente à cultura japonesa, que considera o intervalo, o vazio e as lacunas.
“Nas escadarias da Pastoral do Migrante em São Paulo o tempo parece suspenso. O mesmo acontece em alguns horários do dia no saguão que acolhe aqueles que não estão aqui porque querem. Nesse ensaio aberto esperamos nos ver nos olhos de quem falamos”, sintetiza o texto de divulgação sobre a atividade.
A estreia oficial de Tempo Suspenso deve acontecer logo no começo de 2016, mas o ensaio aberto é uma oportunidade singular de acompanhar e prestigiar o espetáculo ainda em seu processo de elaboração. Uma das cenas, inclusive, já foi apresentada em primeira mão durante o último Seminário Vozes e Olhares Cruzados, organizado anualmente pela Missão Paz.
Criada em 1999 pela socióloga e bailarina Mirtes Calheiros, a Cia. Artesãos do Corpo é formada por bailarinos, performers, atores e pesquisadores de artes cênicas, com o objetivo de elaborar espetáculos e intervenções que provoquem a sensibilidade e a consciência do espectador para temas de interesse no mundo contemporâneo – entre eles, a migração.
“Considero que essa está sendo nossa mais difícil criação. Nos deparamos com sofrimentos incalculáveis que por respeito à essas pessoas, tivemos que fazer um sobrevoo em muitas histórias, utilizar como nunca a linguagem simbólica, pois não há como retratar o sofrimento de que tem que sair correndo de casa para não ser morta e ouvir os gritos daqueles que ficaram e não puderam fugir”, afirma Mirtes sobre o desafio de abordar a migração nos palcos.
Em entrevista ao MigraMundo, Mirtes conta um pouco sobre como surgiu a ideia para o espetáculo e o que espera a partir dele.
MigraMundo: Por que a Cia. optou por abordar o tema da migração nesta produção?
Mirtes Calheiros: Há muito que nos debruçamos sobre os deslocamentos em massa devido à guerras ou questões ambientais. A peça Pequeno Espaço para Ser Eu Mesmo já tratava de Beslan, onde a Rússia desastradamente invade uma escola onde centenas de crianças eram mantidas como reféns por ativistas Chechenos resultando na morte de muitos inocentes. Sobre o Começo ou o Fim é outra criação que toca nos testes nucleares realizados no planeta provocando a retirada de inúmeras pessoas de suas terras e sobre o acidente no Golfo do México após o derramamento de milhares de litros de petróleo. Bem a lista é interminável. Infelizmente será acrescida de Mariana e seu mar de lama.
Em 2013 estávamos nos apresentando em Lisboa quando ocorreu o primeiro naufrágio coberto pela mídia internacional nas costas do mar de Lampedusa na Itália. Durante nossa apresentação na Rua Augusta em Lisboa do Olhar Urbano, senti necessidade de estender meus braços para alcançar alguém na água. Fiquei impressionada com essa reação. Voltando para São Paulo percebemos que ao mesmo tempo começou um deslocamento incrível de Haitianos para o Brasil e aí resolvemos iniciar nossa pesquisa sobre os desdobramentos desse tema mais uma vez.
Quanto tempo vocês levaram para chegar ao formato atual da peça?
Tempo Suspenso ainda não está concluída – se é que algum trabalho nosso está fechado. Mas posso dizer que se encontra em sua fase final. Estamos criando e ensaiando há um ano.
Quais as maiores dificuldades encontradas ao longo do processo?
Considero que essa está sendo nossa mais difícil criação. Nos deparamos com sofrimentos incalculáveis que por respeito à essas pessoas, tivemos que fazer um sobrevoo em muitas histórias, utilizar como nunca a linguagem simbólica, pois não há como retratar o sofrimento de que tem que sair correndo de casa para não ser morta e ouvir os gritos daqueles que ficaram e não puderam fugir. Fomos buscar o refugio em nós mesmos, e aprofundar nossos estudos sobre o MA, o intervalo, o vazio. Também percebemos que muitas questões que os refugiados enfrentam ao aqui chegar são as mesmas que os trabalhadores brasileiros enfrentam.
Que legado a Cia. espera deixar no público com este espetáculo?
Não sei se deixaremos um legado. Ficaríamos felizes em tocar de leve e com poesia essas pessoas de quem e à quem falamos. O tema da imigração e do refugio é um tema muito maltratado pelos governantes que não querem entender que construir muros e cercas de arame farpado não vão resolver o problema. Assim como tratam a questão do clima, eles tratam a questão dos imigrantes. Tudo cai na burocracia, no desvio , ninguém quer enfrentar as corporações internacionais, essas sim, gangues que estão levando o mundo para o extermínio da humanidade. A mídia então mistura tudo: terrorismo, muçulmanos, imigrantes, e um mundo de preconceitos eclode sem ajudar em nada àqueles que nesse exato momento em que respondo esses perguntas estão caminhando na neve rumo quem sabe a algum lugar que não tenha arame….
Tempo Suspenso – Ensaio Aberto
Data e hora: 12 de dezembro, a partir das 17h
Local: Missão Paz/Pastoral do Migrante
Rua do Glicério, 225 – Liberdade – São Paulo (SP)
Entrada: gratuita
Informações: http://ciaartesaosdocorpo.art.br/site/