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sexta-feira, novembro 22, 2024

Migrantes e refugiados sofrem com abandono e violência em Calais

Em mais um artigo da série “Deslocados e Descartados”, a pesquisadora social Bruna Kadletz visita o campo de refugiados em Calais, França, e realça que se o campo e suas estruturas sociais forem destruídas, refugiados serão retraumatizados e o “problema” será apenas deslocado ao invés de solucionado.

Por Bruna Kadletz
Em Calais, França
Publicado originalmente em inglês, no site News Deeply

Na chamada “Selva” de Calais, a maior favela europeia localizada nos arredores do porto francês, carros policiais patrulham as entradas principais do acampamento informal construído por refugiados e migrantes. A resposta militarizada das autoridades francesas controla acesso ao campo. Apesar de não ser reconhecido como oficial por autoridades e organizações internacionais, a polícia francesa controla o movimento de pessoas e veículos, permitindo somente entrada de carros que possuem autorização.

Quando eu visitei Calais, a atmosfera que circundava o campo era desconfortável e espessa. Quando visto de longe da estrada que leva ao campo, cercas reforçadas com arame farpado e milhares de barracas se expandiam tão longe quanto meus olhos podiam alcançar. Na frente do estacionamento principal, policiais armados estavam prontos para agir em caso de qualquer perturbação.

“Parece uma prisão ao ar livre”, comenta uma amiga que me acompanha nas visitas pelo campo.

A conduta dos policiais cria um clima intimidador – contrastando a sensação de segurança e aconchegante cultivada pelos refugiados que escapam zonas de conflito. Praticamente todas as pessoas vivenciam algum nível de abuso e manipulação durante a rota que leva a Calais.

Um olhar mais próximo do campo revela condições de vida desumanas e insalubres – incontáveis ratos mortos nas ruas enlameadas, lixo acumulando pelo chão, esgoto a céu aberto e banheiros portáteis transbordando.

Esta é a receita perfeita para doenças e outros males.

Campo de Calais enfrenta condições insalubres e precárias. Crédito: MSF-UK
Campo de Calais enfrenta condições insalubres e precárias.
Crédito: MSF-UK

A Selva é um ambiente predominantemente masculino. Jovens homens dominam as filas, escolas e lojas no campo. Eles vêm principalmente do Afeganistão, Sudão, Eritreia e Paquistão. Alguns te recebem com um “Bonjour” e sorriso no rosto, enquanto que muitos outros possuem uma expressão vazia. Vários estão fisicamente machucados e severamente fatigados.

Ao comentar sobre a entrada dos refugiados na Europa, Slavoj Zizek, filósofo Esloveno, diz que “ao escapar suas terras destruídas pela Guerra, refugiados são possuídos por um sonho.” Mas o sonho de uma vida segura na Escandinávia, Alemanha ou no Reino Unido (e todas as demandas acopladas ao sonho europeu) são utópicas, Zizek afirma. Eventualmente, refugiados e migrantes se deparam com a dura realidade sobre a Europa – “Não existe Noruega, nem na Noruega”.

Similarmente, os homens que conheci em Calais eram motivados pelo sonho de uma vida decente, longe de violência, conflito e destituição. Entretanto, em pouco tempo, eles descobrem que o sonho de achar segurança na Europa não corresponde com as suas experiências diárias em Calais.

O sonho da Europa tem causado uma desilusão amarga naqueles que ousam sonhar. Quando refugiados pisam em solo europeu, eles logo se deparam com as dificuldades de uma política desumana que os considera indesejados e descartáveis.

Ainda assim, apesar de todas as adversidades e desilusões presentes em Calais, mais de 400 pessoas arriscam suas vidas diariamente em tentativas de chegar ao Reino Unido (que inicia a construção de muralhas em ambos os lados da estrada que leva ao porto). Refugiados e migrantes são expostos a morte durante suas tentativas regulares de se esconder clandestinamente dentro caminhões (e as vezes embaixo deles) e balsas para atravessar a fronteira. Durante o último ano, diversas pessoas perderam suas vidas em tentativas falhas, enquanto que outros milhares foram atingidos por balas de borracha atiradas pela polícia francesa. Dados oficiais desta questão são escassos.

Nem as condições de vida desumanas, ambientes deletérios, tratamento cruel e o reforço de fronteiras são capazes de interromper o movimento de pessoas do Oriente Médio e África em direção a Europa. Na verdade, o contrário ocorre. Em agosto, a população total no campo ultrapassou a marca dos nove mil, com uma média de 70 novas pessoas chegando diariamente. Este é o maior número de pessoas residindo a Selva nos recentes anos.

Vale ressaltar que o legado de abandono e política bárbara empregados contra pessoas no campo é mais antigo que a última onda de violência vivenciada pelos relativamente novos residentes.

Desde 1999, refugiados e migrantes tem ocupado terra e construído acampamentos informais nos arredores do Porto de Calais. O número de pessoas que habitam tais acampamentos informais tem oscilado no decorrer dos últimos 17 anos, de algumas centenas a milhares de residentes. Sua presença era invisível e suas dificuldades eram silenciosas para a comunidade internacional. Foi somente com a intensificação do influxo de refugiados durante o ano 2015 e com o ápice da travessia do Mar Mediterrâneo, que o campo e seus residentes atraíram atenção internacional.

Como o Porto de Calais é a passagem principal entre o Reino Unido e o nordeste da Europa, refugiados e migrantes, que objetivam chegar ao Reino Unido através do canal da mancha, naturalmente se concentram nesta região.

Os rótulos “refugiados” e “migrantes” carregam um pesado estigma em Calais. Residentes locais e autoridades políticas frequentemente associam refugiados e migrantes com crimes, preocupações e problemas que devem ser excluídos da circunferência da cidade e, eventualmente, dos assentamentos informais construídos nas margens da cidade. Consequentemente, diversas evacuações forçadas já ocorreram no passado.

A última evacuação forçada ocorreu em marco de 2016, quando times de demolição franceses destruíram centenas de barracos e estruturas comunitárias na região sul do campo. Com a ajuda de voluntários e organizações, refugiados e migrantes relocaram suas tendas e barracas para a região norte do campo. Como resultado, a densidade populacional na metade norte aumentou, junto com tensões e conflitos.

Contribuindo mais para a incerteza e insegurança dos residentes do campo, a prefeita de Calais, Natacha Bouchart, anunciou recentemente o plano de demolir completamente o campo. Mas a história prova que evacuação forçada é uma estratégia política perversa que somente reproduz o ciclo de deslocamento forçado. Ao forçar o reassentamento de populações já deslocadas de forma forçada, autoridades não somente legitimam violência contra pessoas que deixam zonas de guerra e destituição, mas também adicionam novos traumas a tais populações.

Evacuação forçada não é a única forma de violência direcionada contra migrantes em Calais. No final de julho, esquadrões da polícia destruíram o coração comunitário do campo ao confiscar comida, água e documentos dos refugiados e interditar os restaurantes gerenciados pelos residentes do campo. As autoridades francesas apreenderam até mesmo comida do restaurante que oferece refeições de graça para menores desacompanhados. Esta ação policial deixou mais pessoas destituídas e com fome, adicionando mais pressão nas organizações que servem refeições para os residentes da Selva.

Os restaurantes comunitários ofereciam muitos mais que refeições tradicionais e bebidas quentes. Eles eram santuários seguros para pessoas destituídas. Os restaurantes criavam uma atmosfera convidativa, onde residentes podiam sociabilizar, compartilhar comida e conversar. Tais espaços cultivavam um senso de comunidade, normalidade, conexão e apoio. Diante de desesperança e conflito, espaços sociais possibilitam um sentimento de pertencer, enquanto sustentam um nível mínimo de humanidade e sanidade para milhares de refugiados e imigrantes que são submetidos a condições desumanas diariamente.

Além de promover a mensagem de que refugiados e imigrantes não são bem-vindos e desejados, tais estratégias desestabilizam coesão social e estruturas sociais. Essas ações políticas são claramente desenvolvidas com a intenção de dizer para pessoas: “Você não pertence aqui.”

Ao enfraquecer laços sociais e separar pessoas das estruturas que permitem que elas se sintam humanas, a lógica das vidas descartáveis triunfa.

É óbvio que nós não podemos abandonar pessoas que fogem de países devastados por guerras e (re) traumatiza-las ao expô-las a mais força e violência. Mas, o que nós devemos certamente abandonar é a presunção de que a crise dos refugiados existe em um outro plano, desconectado de nós e que, portanto, não está na zona de responsabilidade de comunidades, particularmente de líderes europeus.

Esta visão limitada acredita que se governos locais ou nacionais expulsarem refugiados para outro lugar – outra cidade ou mesmo outro país – eles não irão mais existir e o “problema” desaparecerá.

A crise dos refugiados existe em um contexto dinâmico, interconectado e constantemente interativo. Em um mundo globalizado, não existe tal realidade de expulsar “o problema” para outro lugar.

A destruição do campo em Calais não fará com que os refugiados desapareçam. Eles simplesmente irão ressurgir, talvez em um local diferente, mas com as mesmas necessidades.

 

1 COMENTÁRIO

  1. […] A cidade de Calais, no norte da França, recebeu, de acordo com os dados do Ministério do Interior, 7 mil pessoas fugindo de guerras, perseguições políticas ou catástrofes humanitárias. Mas, com a falta de acolhimento e integração social, os refugiados acabaram sendo alocados em um acampamento às margens da cidade. Pelas condições precárias de vida, o campo de refugiados de Calais foi apelidado pejorativamente de “selva”. […]

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