Por Flávio Carvalho*
De Barcelona (Catalunha)
O meu sonho é voar, disse meu filho, certa vez. Nunca mais esqueci.
Acho que muitas pessoas, na vida, desejaram o mesmo. Algum dia com mais intensidade. Ficaram olhando passarinho por mais de um minuto ou dois. Ontem, por exemplo, eu fiquei bem mais tempo. Tanto que chego a pensar que voei. De Barcelona, cheguei ao Alto da Sé, em Olinda, na frente da igreja onde os meus pais se casaram. Quando vem lembrança forte assim, não sei vocês, mas no meu caso vai direto pras comidas.
Ontem, perguntamos aos meus filhos, do que mais se lembravam do avô. Caranguejo, responderam. Sorrindo, pois lembraram dos caranguejos que provaram ao molho de coco, quando ainda vivos tentavam fugir do meu pai. Que também muito sorria, a outra boa lembrança de todos nós.
Naquela minha voada de ontem eu também fui ao coco. Explico. Já não é tão importante pra mim a tapioca de Olinda, quanto a visão agarrada na saudade do meu pai, com um raspador de coco (rapa-coco, assim chamamos) entre as pernas, raspando e falando, raspando e falando…
Tudo de coco pra mim é bom. O meu pai ao coco era o melhor.
Digo duas piores coisas, agora que ele descansou.
Eu trouxe de Olinda um rapa-coco pra Catalunha, além de um produzido artesanalmente pelo meu pai, com valor mais sentimental que tudo. Pois o comprado no Mercado de São José raspa o coco bem melhor que o dele, devo confessar. A primeira coisa mais pior (perdoem a redundância, mas é isso mesmo) foi limpar todo o ateliê de artesanatos dele imaginando que ele já não poderia utilizar tudo aquilo. Ou tanto quanto antes. Foi a dor que me limpou na minha breve viagem à casa dos meus pais, quando ele já havia entrado em coma, dias atrás. Depois de estar mais limpo, eu guardei em mim tudo aquilo dele que eu ainda tinha pra guardar dele em mim. Doeu demais, mas foi muito bom. Reciclagem interna, emocional.
A segunda dor, entre as poucas frases que expliquei ontem chorando numa videoconferência com Mainha foi esse último assunto que eu quero brevemente entrar, já voltando a falar do que eu gosto, de migrar. Eu não podia dizer a ele que estava me despedindo, pra não desanimar ele naquela luta pra sair do coma. Mas estava, porque eu sabia que precisava. A gente não sabia se era bom que ele estivesse consciente, achando que sim, porque poderia significar estar com dor, ele querendo se comunicar, sem poder – e isso deve ser muito ruim. Se a gente se despede assim, de verdade, quando voltar a se ver é um lucro bom danado. Prove!
Então, o que eu quero dizer é que quando a gente vai pra longe dos pais, acho que deve se despedir sempre, por mais que a gente ache que volte a se ver.
Despedir é chorar mesmo (aprendi em poucos meses que sempre, sempre, é melhor não conter um choro, nem o próprio nem o dos outros), mas é somente aproveitar pra aflorar um sentimento bom, nunca ruim. Quanto mais quilômetros de distância que estiveres (milhares, no meu caso), mais eu recomendarei multiplicar a durada e intensidade dos abraços de despedida. Disso nunca te arrependerás. Garanto.
Mas a última lição mais importante que eu me permito compartilhar é o estar preparados sempre para voar: passaporte em dia, economia no “banco ético” (sim, existe) e ter amigos de verdade, quatro camisas, quatro cuecas e uma calça de reserva em vista, por precaução, um livro grosso mas leve, e no meu caso um caderninho pra escrever.
Ontem, depois que eu li no meu celular que Painho morreu (sim… viver é isso, aproveitar cada dia, como a gente já sabe, mas de longe tem que ter mais cuidado ainda com isso de comunicação não presencial), eu peguei aquele mesmo caderninho pra tentar voltar a escrever. Tentar, porque a folha ficou em branco. E nem por isso eu a guardarei com menos carinho.
É que me distraiu… um passarinho! Eu fiquei pensando que era painho, passarinho, passando pela Catalunha, agora mesmo cheia de gritos de liberdade, a caminho do céu azul. Cheio de poesia, sobre as vinhas. Sorria.
Ser pai é alimentar o sonho dos filhos pra quando eles forem pais (ou não) e voarem pra longe da gente. Amor mesmo, mesmo quando já não estás. Mais longe, porém mais perto, uma equação que somente se sente.
Flávio Guedes (Carvalho). Solstício de outono na Catalunha, 22/9/2017.