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quinta-feira, dezembro 26, 2024

Mobilidade humana: entre fronteiras e muros

Por Carmem Lussi
Do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios

Na era da globalização se chegou a acreditar num mundo sem fronteiras, enquanto produtos e capitais financeiros já não as percebem e as pessoas as atravessam mais do que nunca. Turismo, viagens de trabalho, circulação de mercadorias, desenvolvimento. Os deslocamentos de pessoas chamaram a atenção para as fronteiras quando a linha geopolítica entre os Estados já se transformava em uma área discutível e discutida, que em várias regiões do mundo cedia o passo à prioritária circulação de bens e recursos, sobretudo financeiros, enquanto em outras se erguia como barreira e como sinal de divisão e de relações internacionais sem atenção pelo ser humano.

A antiga linha de demarcação fronteiriça hoje se tinge de nuances para dar lugar à emergência dos espaços fronteiriços, onde vidas e mortes migrantes buscam o centro, que a margem tutela, sem capacidade para proteger as multidões que pedem passagem. As fronteiras, como eram entendidas tradicionalmente, hoje se escondem sob muros ou são escondidas por pessoas e eventos que ocupam os postos de passagem transformados em campos e zonas de risco, dependendo dos sujeitos que as observam e da posição física e política em que se encontram. Assim, a linha geopolítica, que marcava uma descontinuidade entre Estados-nação, se transforma progressivamente em lugar perigoso e posto seletivo de controle e de bloqueio, criando ao seu redor diferentes configurações de espaços fronteiriços. Se, por um lado, algumas regiões do mundo abrem áreas fronteiriças e diminuem a tensão em postos de controle, por escolhas políticas, como se registra entre Colômbia e Venezuela e entre Moçambique e África do Sul, na maioria das regiões fronteiriças onde se registram apelos até urgentes de travessia migrante – às portas da Europa, dos Estados Unidos e de países vizinhos onde a política de extensão de fronteiras já se faz presente, por exemplo, a tendência que vem se confirmando é a de impedir a passagem de pessoas e grupos humanos indesejados em base a critérios muitas vezes não declarados e, sempre, pouco claros frente aos valores que regem os Estados e as culturas.

A tendência a “desfronteirizar” através do fechamento seletivo das áreas de fronteira (conforme aponta a entrevista de Tito Carlos Machado de Oliveira em um dos artigos desta Resenha[1]) só faz multiplicar os conflitos fronteiriços que ameaçam as populações que vivem ou se encontram nas fronteiras, especialmente migrantes e vítimas de deslocamentos forçados. Estes são atingidos diversamente sobre como as nações e seus policymakers se deixam afligir pelo fenômeno, pois para a grande mídia e para a retórica política é suficiente tratar o tema como se fosse uma emergência contingente e passageira, para a qual bastariam decisões estratégicas e fortes para estancar fluxos humanos. Como Chris Gilligan[2], acreditamos que falta uma abordagem dos deslocamentos populacionais focada nos ser humano, pois a mesma fronteira que se fortalece como barreira entre povos, é, de fato, um constante ponto de contato, de transculturalidade e de inter-relações entre os dois lados. E onde os muros ideológicos ou físicos dividem sem unir, o espaço fronteiriço é laboratório de violações de direitos, de ameaças à vida e de omissão do poder e dos serviços dos Estados. Ainda, à distância, as fronteiras se tornam causa e estímulo para exploração, aumento de processos causadores de vulnerabilidade e até de crimes, porque ninguém ainda inventou um modo de parar a mobilidade humana. Quando uma porta se fecha, outras portas e janelas são escancaradas ou forçadas a ficarem, ao menos, entreabertas.

O “fechamento de fronteiras entre países, muitas vezes materializado pela construção de muros”, segundo Marco Weissheimer[3], serve também para demarcar territórios entre os 20% da população mundial de dentro dos muros, onde está 75% da riqueza mundial, e os de fora dos muros, que têm 20% da riqueza mundial e são 80% da população. O controle fronteiriço, então, não tem foco nos que querem entrar, mas nos que tem medo e discriminações a sustentar, tendo por sua vez o direito à mobilidade assegurado, pois um lado fechado não impede que o outro lado seja aberto no sentido inverso e o fechamento para seres humanos não significa barreira para mercadorias legais e ilegais, inclusive contrabando e tráfico de seres humanos, especialmente de crianças e adolescentes desacompanhados. O controle, por vezes legítimo e de direito, vem sendo praticado também como ato público seletivo de xenofobia e de discriminação de sujeitos com traços somáticos indesejados.

A mesma fronteira que é ambiente extremamente dinâmico e criativo, “espaço de liberdade e criação, repleto de riqueza e diversidade” (Adriana Dorfman[4]), pode ser em um breve período de tempo, limite geopolítico insuperável para determinadas populações em situação de risco e de vulnerabilidade, porque às portas das fortalezas os seres humanos valem mais ou menos pelo que trazem ou pedem, pelo que oferecem ou podem demandar para salvar suas vidas ou para viver com dignidade. A securitização nos discursos e nas políticas sobre migrações e refúgio desumaniza a visão do fenômeno e a gestão das demandas e dos desafios fronteiriços.

A vida e a agency das populações que se aproximam das fronteiras sem terem sido convidadas se tornam dados estatísticos. Números não interpelam consciências; são suficientes muros para deter corpos frágeis, como bem nota Saskia Sassen. Todavia, “as fronteiras são formadas por muito mais instituições e se encontram em muitos mais lugares do que estamos acostumados a pensar” (Saskia Sassen[5]).

A diversidade, a quantidade, a gravidade das necessidades e a força desconhecida dos sujeitos que empurram junto às fronteiras esbarradas escondem o segredo da complexidade desses fenômenos e a possibilidade que esses sujeitos têm de escrever páginas impensáveis na história dos povos em mobilidade.

[1] WEISSHEIMER, Marco. (2015) “Vivemos um processo de fechamento seletivo de fronteiras no mundo”, dizem pesquisadores

[2] GILLIGAN, Chris. (2016) Is it utopian to argue for open borders?

[3] WEISSHEIMER, Marco. (2015) “Vivemos um processo de fechamento seletivo de fronteiras no mundo”, dizem pesquisadores

[4] WEISSHEIMER, Marco. (2015) “Vivemos um processo de fechamento seletivo de fronteiras no mundo”, dizem pesquisadores

[5] SASSEN, Saskia. (2016) ¿Quién tiene el poder de crear fronteras?

*Editorial da edição 104 da Resenha Migrações na Atualidade, publicada pelo CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios. Material reproduzido no MigraMundo como parte da parceria do portal com o CSEM

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