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quarta-feira, dezembro 25, 2024

No limite do silêncio: tragédias do desaparecimento na migração

No Dia Internacional das Pessoas Desaparecidas, somos lembrados de que cada número representa uma vida, uma história interrompida, e uma rede de laços afetivos partidos. A importância desta data é inegável, pois ajuda a dar nomes, rostos e laços afetivos àqueles que desapareceram durante a migração

Por Andre Vito*

Neste Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado (30 de agosto), também conhecido como Dia Internacional das Pessoas Desaparecidas, honramos as vítimas dessa grave violação de direitos humanos. Esta data, instituída pela Assembleia Geral da ONU, surge do clamor por memória e justiça, ecoando as lutas das famílias latino-americanas contra os regimes autoritários que marcaram a história da região. Dentre os inúmeros casos de desaparecimento forçado, como parte do infame Plano Condor, as Comissões da Verdade de países como Argentina, Brasil, Uruguai e Peru documentaram também desaparecimentos de pelo menos 367 migrantes e refugiados [1].

Nesta data também trazemos à lembrança as pessoas que decidiram ou foram forçadas a migrar, assim como suas famílias, profundamente afetadas pela tragédia do desaparecimento. Segundo o projeto Missing Migrants, da Organização Internacional para as Migrações (OIM), desde 2014, mais de 67 mil migrantes foram oficialmente reportados como desaparecidos ao longo de rotas migratórias em todo o mundo, incluindo o Mar Mediterrâneo, Europa, Américas, África, além das regiões Oeste e Sul da Ásia [2]. Entretanto, esses números refletem apenas os casos formalmente registrados, sugerindo que a subnotificação e as complexas circunstâncias envolvidas tornam o quadro ainda mais sombrio. Trata-se de uma crise invisível e crônica, tão antiga quanto as fronteiras modernas.

A odisseia da migração

Tal como na Odisseia de Homero, onde Ulisses parte para a Guerra de Troia e enfrenta desafios titânicos ao longo de sua jornada, muitas pessoas que migram atravessam mares, desertos e montanhas, superando barreiras como muros, cercas e forças militarizadas, apenas para se depararem com xenofobia, racismo, trabalho forçado e outras formas de abuso. Anos atrás, pesquisadores europeus cunharam o termo “Síndrome de Ulisses” para descrever este sofrimento causado pelo processo de migração. A combinação das violências encontradas no caminho, o isolamento social, a separação de entes queridos e a falta de contato com a família que ficou para trás levam a um adoecimento mental profundo. Mas, ao contrário de Ulisses, que após 20 anos finalmente retornou, muitos migrantes nunca voltam, acumulando-se em cemitérios anônimos, como em Sidiro e Kato Tritos, na Grécia, transformados em verdadeiras tragédias humanas. Somente no Mediterrâneo, a OIM contabiliza cerca de 30 mil desaparecidos.

Penélope, esposa de Ulisses, aguardou pacientemente o retorno do marido enquanto criava um filho que ele não conheceu na infância e resistia à pressão para casar-se novamente. Esta é a odisseia das famílias de migrantes desaparecidos. São muitas as Penélopes incansáveis na missão de encontrar qualquer informação sobre seus entes queridos, dedicando suas vidas à busca por respostas, preservando a memória dos desaparecidos e, frequentemente, sendo incompreendidas onde quer que passem.

Um estudo realizado pela OIM com familiares de migrantes desaparecidos no Zimbábue, Reino Unido, Etiópia e Espanha revela aspectos comuns entre essas famílias [3]. Elas experimentam altos níveis de ansiedade e estresse, dificuldades financeiras e isolamento social. A dor emocional é tão intensa que, em alguns casos, resulta em problemas de saúde física, como a incapacidade de andar ou a necessidade de ficar acamadas.

No Zimbábue, a Sra. Sithole relatou que, onde vive, a ausência de um homem casado é frequentemente interpretada como um sinal de problemas no relacionamento. Após o desaparecimento de seu marido na África do Sul, ela sofreu muito porque “a comunidade perdeu todo o respeito”. Assim, as famílias frequentemente enfrentam estigmatização social e podem se sentir isoladas, especialmente quando a migração de seus entes queridos é vista de forma negativa. Enquanto isso, a busca por informações acarreta altos custos, incluindo viagens internacionais ou a contratação de investigadores. Muitas famílias nos países de origem contraem dívidas para pagar extorsões de aproveitadores que alegam ter informações. Esse endividamento limita ainda mais a capacidade de cuidar de si e de outros membros da família.

Monumento La Porta d’Europa, em Lampedusa (Itália), iluminado em referência ao naufrágio com imigrantes ocorrido em outubro de 2013. (Foto: Comitato 3 ottobre)

Obstáculos burocráticos e a luta por justiça

Não basta recorrer aos consulados ou registrar a desaparição na polícia, pois a angústia dos familiares esbarra em obstáculos burocráticos impostos pelo Estado e pelas fronteiras. Isso gera experiências frustrantes e interações hostis ou desrespeitosas com agentes públicos, que desmotivam a busca e reforçam a desconfiança em relação às autoridades governamentais. Apesar deste cenário, passos lentos estão sendo dados para adaptar políticas públicas ou desenvolver novas que atendam essas famílias afetadas pela ambiguidade do desaparecimento. Segundo o último relatório de progresso do Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, apresentado na Assembleia Geral da ONU, existem mecanismos estatais de ajuda na busca, identificação e apoio às famílias de migrantes desaparecidos apenas na Europa e nas Américas [4].

Contudo, essas iniciativas ainda se revelam insuficientes. Nas Américas, como em outras partes do mundo, as famílias frequentemente recorrem aos próprios recursos e ativam redes transnacionais de contatos, buscando apoio em organizações comunitárias e na sociedade civil para reunir evidências que possam auxiliar nas buscas. Na América Central, elas se organizam em associações e se unem para realizar buscas coletivas, seja por meio de caravanas que percorrem longas distâncias pelo México, seja com o apoio de outras famílias mexicanas igualmente em busca de seus entes queridos [5]. Tal como na tragédia de Antígona, em que se enfrenta a lei humana para garantir dignidade aos parentes desaparecidos, essas famílias desafiam a ordem estabelecida na tentativa de resgatar o mínimo de humanidade para seus entes queridos.

Com a mesma determinação que Antígona demonstrou ao tentar enterrar seu irmão Polinices, contrariando as ordens do rei Creonte na tragédia grega escrita por Sófocles, essas famílias, muitas vezes compostas por “mujeres buscadoras,” deveriam ser o ponto de partida e o centro de qualquer política pública voltada para o desaparecimento. Somente assim poderemos transformar políticas de controle, que tratam os desaparecidos como meros números, em abordagens mais humanas e compassivas.

Nas palavras de Antígona González [6], personagem criada pela poetisa mexicana Sara Uribe, que busca incansavelmente por seu irmão Tadeo: “Como um anel que quebra e já não serve para nada […] Foi neste momento que arrancaram metade do nosso coração. Não sabemos como estamos vivendo com a metade de um coração.” De que adianta, então, contar os mortos e desaparecidos se nada é feito para identificá-los e notificar suas famílias? Por isso, a importância desta data é inegável, pois ajuda a dar nomes, rostos e laços afetivos àqueles que desapareceram durante a migração.

A obrigação de proteção dos migrantes desaparecidos e seus familiares

Em abril deste ano, nove corpos de pessoas provavelmente originárias de países africanos foram encontrados na costa de Belém. A Polícia Federal iniciou um inquérito criminal, mas até julho não havia informado se as pessoas foram identificadas, se os consulados foram notificados ou se alguma tentativa foi feita para localizar as famílias [7]. Esse caso parece ecoar a trágica rotina do tratamento dado aos migrantes desaparecidos em várias fronteiras ao redor do mundo. É uma história que envolve supostamente o contrabando de pessoas africanas e um papel crucial do Estado no apagamento da memória.

Talvez devêssemos considerar os desaparecimentos de migrantes também como desaparecimentos forçados, especialmente daqueles que foram forçados a migrar. Afinal, os massacres se acumulam. Poucos se lembram, mas em 2022, mais de 40 pessoas foram mortas tentando cruzar o muro de Melilla para chegar à Espanha, e até hoje muitos permanecem desaparecidos para suas famílias [8].

No Dia Internacional das Pessoas Desaparecidas, somos lembrados de que cada número representa uma vida, uma história interrompida, e uma rede de laços afetivos partidos. Independente de qual lado da fronteira o desaparecimento ocorra — cruzando a selva do Darién, o Mar Mediterrâneo ou a fronteira entre o Afeganistão e o Irã — há famílias que esperam por muito mais tempo do que Penélope e são tão determinadas quanto Antígona. Por isso, o papel do Estado não pode ser ignorado. É responsabilidade dos governos garantir que as migrações sejam seguras, ordenadas e regulares, para que não se transformem em desaparecimentos forçados.

Que essa data nos inspire a transformar o luto em justiça e a exigir políticas que honrem a dignidade humana, garantindo que nenhum desaparecimento seja esquecido e nenhuma família seja deixada sem respostas.

Sobre o autor

Andre Vito B. Silva é internacionalista, ativista, e pesquisador no tema das migrações, mortes e desaparecimentos em fronteira. Mestrando em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUC-SP

Referências

[1] Operation Condor Justice: Database of Operation Condor. University of Oxford.

[https://sites.google.com/view/operationcondorjustice/database?authuser=0]

[2] Missing Migrants Project website. International Organization for Migration (IOM). [https://missingmigrants.iom.int/]

[3] Families of Missing Migrants: Their Search for Answers and the Impacts of Loss. OIM, 2021. [https://publications.iom.int/books/families-missing-migrants-their-search-answers-and-impacts-loss]

[4] NAÇÕES UNIDAS. Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration: Report of the Secretary-General. New York: United Nations, A/76/642, 27 Dec. 2021. Disponível em: https://reliefweb.int/report/world/global-compact-safe-orderly-and-regular-migration-report-secretary-general-a76642

[5] La olvidada caravana de migrantes: histórico lanzamiento del movimiento mundial de familias de desaparecidos. International Organization for Migration (IOM).

[https://www.iom.int/es/news/la-olvidada-caravana-de-migrantes-historico-lanzamiento-del-movimiento-mundial-de-familias-de-desaparecidos]

[6] URIBE, Sara. Antígona González. Oaxaca: Sur Plus Ediciones, 2012.

[7] Solicitação de resposta feita via Lei de Acesso à Informação.

[8] Público. (2024, 25 de julho). Nueva investigación demuestra que España envió a la muerte y tortura a migrantes en la tragedia de Melilla. [https://www.publico.es/sociedad/nueva-investigacion-demuestra-espana-envio-muerte-tortura-migrantes-tragedia-melilla.html]


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