Por Isabela Capato
Do ProMigra
Ao analisar a história do mundo, é possível concluir que as migrações por diversas razões sempre existiram, contudo, é notório que nos últimos anos o índice de deslocamentos forçados aumentou significativamente e, dentre os principais motivos, estão os desastres ambientais, sejam eles causados pelo homem ou pela própria natureza. O fenômeno possui grandes proporções no cenário externo, o que contribui para fomentar as discussões acerca da definição de refugiado ambiental e seu enquadramento entre os meios de proteção do Direito Internacional Público, mas também merece destaque no contexto interno de cada Estado, incluindo o Brasil.
De acordo com o relatório do Conselho de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC) e do Conselho Norueguês para Refugiados (NRC), o Brasil teve a maior quantidade de deslocados internos nas Américas em 2022, sendo 708 mil destes afetados por tragédias ambientais e 5 mil, por conflitos de terra. O mesmo relatório destacou o impacto das tempestades que atingiram o Nordeste do país, em maio de 2022, do fenômeno ambiental La Niña, que persistiu pelo terceiro ano consecutivo, além do aquecimento global, no número de deslocados por razões ambientais, que cresce a cada ano.
Todavia, uma análise mais profunda dos motivos que levaram aos deslocamentos e das consequências que estes geram para a sociedade e, especialmente, para aqueles que precisam deixar seus lares e locais de origem devido a catástrofes ambientais, revela que o fenômeno vai além de mudanças climáticas, inundações e secas, tangenciando a insegurança alimentar, os desmatamentos, os direitos humanos e a problemática da desigualdade social latente no país.
Desastres ambientais e injustiça social: as razões dos deslocamentos
Deslocados internos são pessoas que, forçosa ou voluntariamente, deixam as suas casas e e suas regiões de origem, mas sem sair do seu país. No caso dos deslocamentos internos por razões ambientais, eles podem ser causados por eventos diversos: desmatamento, aumento do nível do mar, desertificação, ocorrência de secas, degradação do solo, contaminação da água ou do ar, entre outros. Esses eventos podem ser naturais, ocasionados por fenômenos da natureza como, por exemplo, o El Niño (caracterizado pelo aquecimento anormal das águas do oceano Pacífico), ou podem ser causados pela ação humana, como os acidentes industriais ou rompimentos de barragens. Existem ainda os eventos chamados de mistos, que são aqueles gerados por fenômenos naturais, mas que, de alguma forma, e em graus variados, são influenciados por ações antropogênicas.
A categoria de migrantes ambientais ainda pode ser dividida em três grandes grupos, de acordo com as razões que ensejaram os deslocamentos: os deslocados ambientais temporários, que deixam sua habitação temporariamente por pressões ambientais e têm grande probabilidade de retorno; os deslocados permanentes, devido a mudanças drásticas em seu território, como a construção de represas, escavamento de minas ou desmatamentos para a abertura de pastos e plantações; e os deslocados permanentes, em razão de uma degradação progressiva em seu território, o qual já não apresenta mais condições mínimas para se viver.
Essa classificação conversa com a definição de “refugiados ambientais” elaborada pelo pesquisador Essam El-Hinnawi, para o relatório do Programa das Nações Unidas para Meio Ambiente (PNUMA) de 1985: “pessoas que não conseguem mais obter um sustento seguro em seus países de origem devido a seca, erosão do solo, desertificação, desflorestação e outros problemas ambientais, juntamente com problemas associados de pressões populacionais e pobreza profunda. Em seu desespero, essas pessoas sentem que não têm outra alternativa senão procurara refúgio em outro lugar, por mais perigosa que seja a tentativa. Nem todos fugiram de seus países, muitos são deles se deslocaram internamente. Porém, todo abandonaram suas terras natais numa base semipermanente, se não permanente, com pouca esperança de um regresso previsível”.
O fenômeno, contudo, se torna mais complexo quando se repara nas características da maioria das populações que são obrigadas a abandonarem suas casas e migrarem por razões ambientais. Os grupos mais afetados por mudanças climáticas e desastres ambientais são aqueles que já se encontram em situação precária em termos de rendimento econômico, acesso à infraestrutura e condições de habitação. São grupos socialmente vulneráveis e marginalizados, como a população preta, indígenas, ribeirinhos, pescadores artesanais, pequenos produtores rurais, dentre outros, ou seja, no Brasil, questões sociais e ambientais são inseparáveis e desempenham grande influência uma sobre a outra.
Estudos acadêmicos e demográficos têm chamado cada vez mais atenção para essa questão. Cita-se como exemplo uma pesquisa realizada em 2022 pelo Instituto Pólis, nas cidades de Belém, Recife e São Paulo, que expôs que populações pretas e de baixa renda são as mais afetadas pelos desastres ambientais. Para chegar à tal conclusão, o instituto mapeou áreas de risco geológico nas três capitais, mais suscetíveis a ocorrências de inundações ou deslizamento de terra, e cruzou esses dados com o perfil socioeconômico das famílias que viviam nessas áreas.
As migrações impulsionadas pela seca no país, principalmente as que têm como ponto de partida a região Nordeste, também expõem a relação entre desigualdade social e deslocamentos ambientais. A migração em razão de fuga das secas não é um fenômeno novo no país, sendo que um dos principais componentes do padrão migratório brasileiro na segunda metade do século XX foi o fluxo de nordestinos em direção às suas principais metrópoles do país: Rio de Janeiro e São Paulo. Atualmente, a seca continua figurando como um dos principais motivos que levam à migração interna, ainda mais quando se considera os efeitos que o aquecimento global desempenha sobre os regimes de chuva no Brasil. No entanto, as consequências de tal fenômeno ambiental são amplificadas por questões sociais, como a concentração de terras no interior das regiões Nordeste e Centro-Oeste. A concentração de propriedade, somada à ausência de meios adequados de financiamento para as atividades produtivas dos pequenos produtores, reforça a insegurança alimentar gerada pela seca e, consequentemente, intensifica o processo de êxodo rural.
Dessa forma, fica evidente a relação entre o aumento dos deslocamentos internos no Brasil por razões ambientais com o conceito de justiça ambiental, movimento social que teve origem na década de 60, em meio à luta por direitos para a população afrodescendentes estadunidense, que busca expor precisamente esta imposição desproporcional dos riscos ambientais a populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais e cobrar do Estado uma atuação sistemática em favor da igualdade socioambiental.
Ecos da injustiça ambiental: as consequências dos deslocamentos
Conforme apontado, a migração é um fenômeno complexo, e, independentemente das razões que a motivam, ela gera consequências em um nível pessoal, alterando, muitas vezes, de maneiras definitivas, as vidas daqueles que se deslocam, e também em um nível social, gerando transformações nas sociedades.
Em nível social, uma das consequências mais marcantes dos deslocamentos internos por razões ambientais, sobretudo quando estes se dão em grandes proporções, é o inchaço populacional urbano. Um dos destinos mais prováveis dos que migram internamente, ainda mais dos que abandonam regiões rurais, são os centros urbanos. A inexistência de políticas públicas adequadas de recebimento destas populações, somadas pelos grandes contingentes de pessoas que se deslocam a cada ano, gera o crescimento urbano desgovernado. Os problemas sociais urbanos são amplificados, como os relacionados à segurança, mobilidade e desemprego, e milhares de famílias migrantes acabam segregadas em meio ao espaço urbano, tendo que ocupar, por razões de desvantagens socioeconômicos, locais de inseguridade, muitas vezes sem acesso à saneamento básico, serviços públicos e infraestrutura urbana.
Ironicamente, de certa maneira, o desenvolvimento sem o devido planejamento das áreas urbanas gera transformações no meio ambiente local, intensificando, por exemplo, mudanças climáticas. O acelerado processo de expansão urbana, marcado pela intensa verticalização, compactação e impermeabilização do solo, supressão de vegetação e cursos d’água, e complementado pelo atraso na implantação de infraestrutura adequada ao ritmo de crescimento das cidades, influencia o aquecimento global e a degradação dos recursos naturais, contribuindo para a ocorrência de mais desastres naturais, que podem levar ao deslocamento forçado.
Em nível pessoal, verifica-se que o deslocamento por razões ambientais de modo compulsório pode ser um processo de intenso sofrimento para os migrantes. Estes, muitas vezes, são obrigados a abandonarem suas terras natais, perdendo vínculos de identidade coletiva e padrões de organização social, como relações de parentesco, amizade e comunidade, para se dirigirem a locais desconhecidos, onde, geralmente, se depararão com condições de vida piores do que as que possuíam.
O instituto Cáritas MG realizou uma pesquisa, no ano de 2021, com as famílias que foram forçadas a deixarem seus lares devido ao desastre-crime de responsabilidade das mineradoras Samarco, Vale e BHP, que resultou no rompimento de barragens na região rural próxima do município de Mariana (MG), em 2015. A pesquisa teve como enfoque apurar as consequências deste deslocamento na vida dos que foram obrigados a migrar. No total, foram 1246 famílias atingidas pela catástrofe, sendo que 75% delas (947) buscaram refúgio na sede de Mariana. Elas relataram sentimentos de sofrimento e dificuldades de adaptação ao meio urbano. A dispersão e distanciamento entre as casas alugadas para abrigar os atingidos dificultou os encontros entre vizinhos e parentes. A sensação de instabilidade, medo e exclusão, sobretudo advinda de preconceitos para com os deslocados, são outras constantes, presentes em muitos relatos.
Além dos impactos socioculturais, existem também os impactos sobre a estabilidade econômica daqueles que se deslocam por razões ambientais, já que muitos também precisam lidar com a perda de sua principal atividade de sustento e a luta para se integrar ao mercado de trabalho. Na mesma pesquisa mencionada, muitas famílias relataram terem sofrido um empobrecimento, devido à impossibilidade de seguir com suas antigas atividades produtivas e a falta de um maior controle de danos e suporte da parte do Estado e dos responsáveis pela tragédia.
As conclusões que ficam apontam para a profundidade do fenômeno da migração por razões ambientais. A intensificação dos deslocamentos internos por tais razões devem ser encarado pelas autoridades brasileiras e pela sociedade como um todo não apenas como um sinal do aumento dos desastres naturais e exploração do meio ambiente, mas também como um reflexo das desigualdades sociais existentes no país, o que cobra a elaboração de medidas legislativas e políticas públicas sociais, capazes de amparar a população deslocada e garantir o exercício de seus direitos.
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Excelente análise!