As religiões estão a serviço da dignidade de todos os seres humanos ou apenas dos seus próprios adeptos?
Por Roberto Marinucci
Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM)*
Numerosas religiões consideram a acolhida do migrante um elemento constitutivo dos próprios sistemas de crenças e uma prática privilegiada de experiência do sagrado. Aliás, não são poucas as lideranças religiosas que, historicamente, passaram por alguma forma de deslocamento, voluntário ou forçado. Basta pensar na migração de Abraão em busca da terra prometida ou no êxodo de Moisés; na fuga de Jesus de Nazaré e sua família para o Egito devido à perseguição de Herodes; no deslocamento forçado de Maomé e sua comunidade para Medina; ou, mais recentemente, no exílio do Dalai Lama.
Na atualidade, entre as principais lideranças religiosas, chama atenção a figura do Papa Francisco que, desde sua primeira viagem apostólica à ilha de Lampedusa, passando pelas viagens à Fronteira Norte do México e à ilha de Lesbos na Grécia, tem tomado posições firmes, proféticas e, inclusive, impopulares em relação à questão migratória. Para o bispo de Roma, assumir a causa de migrantes/refugiados não é apenas uma “boa ação” ou um ato de generosidade. A acolhida dos migrantes diz respeito à integridade da identidade cristã, que não pode ser conciliada com a subordinação da vida e da dignidade de seres humanos à lógica do lucro, do consumo ou da acumulação indiscriminada de bens. Acolher quem não foi convidado representa um antídoto contra a idolatria do dinheiro que caracteriza o sistema econômico hegemônico.
Em sua abordagem sócio-pastoral, Francisco tem buscado desencadear processos de envolvimento das comunidades: “Cada paróquia, cada comunidade religiosa, cada mosteiro, cada santuário na Europa hospede uma família [de refugiados], começando pela minha diocese de Roma”. O papa tem plena consciência de que compromisso em favor de migrantes/refugiados só será eficaz se for pautado no cotidiano de todos os segmentos sociais que compõem a igreja. Embora a exortação do bispo de Roma não tenha surtido todos os efeitos esperados, não há dúvida de que em numerosas partes do mundo várias famílias, comunidades, paróquias, associações, ordens e congregações religiosas se mobilizaram, de diferentes maneiras, em prol dos direitos de migrantes e refugiados.
Mas seria um grave erro identificar esse compromisso com o universo católico. São numerosas as denominações cristãs que tomaram posição em defesa de migrantes e refugiados. Vale lembrar, por exemplo, os assim chamados “corredores humanitários” abertos na Itália pela Federação das Igrejas Evangélicas e a organização Tavola Valdese (órgão que representa oficialmente as igrejas metodistas e valdeses), em colaboração com a comunidade de Santo Egídio: tais corredores, até meados de 2017, permitiram a chegada segura de mais de 900 solicitantes de refúgio na Itália. Uma iniciativa análoga ocorreu também na França, com a participação da Federação Protestante da França e da Federação de Ajuda Protestante. Já nos EUA cabe destacar a firme tomada de posição da Aliança Batista Mundial (BWA) contra o Muslim Ban de Trump.
Dentre os vários aspectos que caracterizam o compromisso das numerosas denominações cristãs cabe destacar o serviço emergencial e sócio-transformador junto a migrantes e refugiados, principalmente na ótica da integração; a denúncia profética das violações de direitos humanos e de suas causas estruturais; a conscientização das sociedades de recepção no que toca à acolhida dos estrangeiros; a criação de espaços de interação e interlocução que permitam dinâmicas de recíproco enriquecimento.
Além disso, merece um destaque o compromisso na ótica do diálogo inter-religioso: a denúncia do Muslim ban, a tomada de posição em prol dos direitos dos rohingya, a inclusão de refugiados muçulmanos nos corredores humanitários, entre outros, atestam que o engajamento dessas igrejas transcende as fronteiras confessionais.
Aqui entra em jogo a credibilidade da ação social dessas igrejas: as religiões estão a serviço da dignidade de todos os seres humanos ou apenas dos próprios adeptos? Em seu engajamento social, os grupos religiosos visam a libertação e o bem-estar dos interlocutores ou sua doutrinação? O compromisso sócio-transformador, enquanto defesa e promoção dos direitos humanos, é instrumental ou constitutivo? De que forma as religiões se distanciam da espúria utilização da “gramática religiosa” para legitimar a violação de direitos humanos? Trata-se de perguntas extremamente desafiadoras, tanto em contextos caracterizados por uma crescente secularização quanto naqueles onde se registra o assim chamado “retorno do sagrado”. Sem renunciar à própria identidade, mas, ao mesmo tempo, reconfigurando constantemente os percursos de fidelidade ao próprio carisma, as várias denominações religiosas são chamadas a estabelecer espaços de interlocução, serviço e recíproca aprendizagem junto aos migrantes e às populações autóctones, com vistas à construção de uma cultura do encontro e do mútuo reconhecimento.
*Editorial da resenha Migrações na Atualidade, edição 108, publicado também no MigraMundo pela parceria com o CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios