Caso de Mamadou Gassama, que passou de indocumentado a cidadão francês após salvar uma criança em Paris, levanta uma série de debates sobre humanidade – ou a falta dela – no nosso cotidiano. E também como é possível mudar a narrativa negativa em geral associada às migrações
Por Rodrigo Borges Delfim
Em São Paulo (SP)
Um jovem migrante do Mali chamado Mamadou Gassama, 22, virou notícia mundo afora. No último dia 28 de maio, ele arriscou a própria vida para escalar um prédio em Paris (França) e salvar uma criança que estava pendurada no quarto andar. O fato, no entanto, vai além do ato espontâneo de empatia e compaixão pelo próximo, independente de sua origem ou cultura. Também é uma oportunidade – entre tantas outras – de despir a migração dos estereótipos que em geral são associados a ela.
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De ilustre desconhecido e sem documentos para viver na França, Gassama virou herói da noite para o dia – chamado inclusive de “Homem Aranha” por alguns meios de comunicação, do G1 à CNN. O ato espontâneo se transformou em um uma onde de apelos para que sua situação fosse regularizada pelo governo. E o presidente francês, Emmanuel Macron, além de o receber no palácio presidencial, anunciou que ele receberia a cidadania francesa e seria integrado ao Corpo de Bombeiros.
Ao mesmo tempo que Gassama conseguiu a garantia de permanecer na França, milhares de migrantes aguardam sua vez de conseguir autorização para residirem sem medo nos países onde vivem. Muitos, aliás, podem nunca conseguir esse documento que é diferença entre viver minimamente integrado a uma sociedade ou ser colocado à parte dela.
Heróis do cotidiano
“Imigrante tem que ralar em dobro para ser visível, seja na escola, no trabalho… triste motivação”, resume o comunicador boliviano Antonio Andrade, diretor e fundador dos portais Bolívia Cultural e Planeta América Latina, ao fazer um paralelo entre o caso de Gassama e o que vê na própria comunidade em São Paulo, onde vive. “A molecada aqui tem que matar um leão por dia”.
Para a produtora cultural colombiana Vivana Peña, que atualmente trabalha em Boa Vista no IMDH Solidário e foi coordenadora do CRAI (Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante) em São Paulo, Gassama de fato é um herói – assim como outros migrantes pelo que enfrentam no seu dia a dia. “Acho que a França estava precisando de um herói negro e africano para rever seus contextos e olhares racistas e xenófobos. Ao meu ver quem empreende uma viagem dessas é um herói, porque está cheio de coragem e está salvando a ele mesmo e aos seus. Para mim, todos e todas as imigrantes são heróis! Principalmente os que passam tanta dificuldade para chegar no destino e depois para tentarem ser aceitos”.
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A ONG francesa SOS Racisme sublinhou num comunicado que “Mamoudou Gassama lembra-nos que as pessoas em situação irregular são seres humanos, com (…) imensa coragem, da qual fazem prova durante a perigosa viagem com destino à Europa”.
Por uma nova narrativa
Em charge, o jornal francês Le Monde debateu a questão a partir de algo que poderia ser considerado como moralidade da cidadania, na qual somente alguns são considerados aceitáveis, e muitos outros não o seriam – a atitude de Gassama o teria “qualificado” a ser um desses poucos aceitáveis.
Esse pensamento, ainda dominante no imaginário, pode ser traduzido pela postagem do porta-voz do governo francês, Benjamin Griveaux, no Twitter: “Este ato de uma imensa bravura, fiel aos valores de solidariedade da nossa República, deve abrir-lhe as portas na nossa comunidade nacional” (tradução livre).
Mamoudou Gassama a eu un comportement héroïque en sauvant à #Paris la vie d’un enfant sans penser à la sienne. Cet acte d’une immense bravoure, fidèle aux valeurs de solidarité de notre république, doit lui ouvrir les portes de notre communauté nationale. #MamoudouGassama https://t.co/SdGIQZhRiP
— Benjamin Griveaux (@BGriveaux) 27 de maio de 2018
Apesar da visão moralista que em geral incide sobre questões de direito à cidadania, o ato de Gassama pode ajudar a trazer uma nova narrativa sobre as migrações na Europa e em outras regiões do planeta, rebatendo discursos que colocam o migrante como uma ameaça. E em primeiro lugar, de ajudar a ver o migrante, o diferente, como ser humano que é.
“O que me surpreendeu no caso não foi a atitude do homem de subir e salvar a criança. O que me surpreendeu, sim, foi a reação de surpresa das pessoas com o fato daquele moço fazer aquilo, e ser migrante. Foi o desacostumar de olharmos para o diferente como ser humano também”, reflete a comunicadora Ofélia Ferreira, coordenadora do programa de migrações para a América do Sul da Fundación Avina.
Já a cientista política Patrícia Nabuco Martuscelli, que já colaborou com o MigraMundo em 2017, crê que a história de Gassama ajuda a quebrar o discurso político do imigrante como o criminoso. Para isso, usa o contexto atual do debate sobre migrações nos Estados Unidos, onde vive como pesquisadora sobre o tema.
“Infelizmente, analisando discursos sobre imigração de presidentes americanos, o imigrante tem seu valor reconhecido de três formas: histórica (como criador da nação), econômica (como trabalhador e grandes empresas) e moral (no caso dos americanos, que são descendentes de imigrantes). Fora desse discurso, temos a visão Trump de imigrante como criminoso, membro de gangue, estuprador e animal. Infelizmente não se reconhece o valor humano da migração”.
Já Raphael Glucksmann, diretor de redação da Nouveau Magazine Littéraire, acredita que o ato de Gassama deve permitir lançar luz sobre os problemas do tratamento dos migrantes, e não deve escondê-los atrás de uma cortina de fumaça
“Que o ímpeto de generosidade em torno de Mamoudou Gassama se estenda aos invisíveis, aos sem direitos e desabrigados que nossas políticas repressivas produzem. E aí podemos ser felizes juntos. E orgulhosos também”.