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sexta-feira, dezembro 20, 2024

O que o Marxismo diz a respeito das migrações internacionais?

Deve-se ter em mente que o Marxismo funciona como uma lente de análise para interpretar vários fenômenos de forma estrutural, ou seja, a relação entre o indivíduo (eu e você) com o sistema econômico (o capitalismo)

Por Vinícius Cruz

Você já deve ter ouvido falar em Karl Marx alguma vez na sua vida. Provavelmente você o conhece como um dos idealizadores do manifesto comunista junto do seu camarada Friedrich Engels. Mas você já se perguntou como o Marxismo interpreta o fenômeno das migrações internacionais dentro do capitalismo?

Para responder a esta pergunta, precisamos ter em mente que o Marxismo funciona como uma lente de análise para interpretar vários fenômenos de forma estrutural, ou seja, entendendo a relação entre o indivíduo (eu e você) com o sistema econômico (o capitalismo). Isso acontece, porque para os marxistas nossas escolhas de vida não são completamente livres e dependentes de nós mesmos. Portanto, a estrutura capitalista limita nosso poder de escolha em graus diferentes e nossas ações também são baseadas em estruturas históricas que herdamos.

Sendo assim, para o Marxismo os temas que mais interessam dentro dos estudos migratórios são assuntos estruturantes. Por que as pessoas migram? Existem migrações voluntárias ou todos nós, ou pelo menos a maioria, somos obrigados a migrar? Quem se beneficia com um sistema de migrações regulado por Estados? Quem paga a conta? Uma das principais preocupações do Marxismo é justamente como as forças econômicas (a estrutura) levam indivíduos a migrarem dos países mais pobres para os mais ricos e como essa mobilidade (principalmente de trabalhadores migrantes) é usada para aumentar os lucros da burguesia principalmente dos países ricos da Europa e América do Norte.

Migração, lucros e exército de reserva

Uma das principais premissas marxistas é que o trabalho é um dos geradores de valor econômico, ou seja, para chegar ao preço final de uma mercadoria, leva-se em conta o quanto de trabalho se explora de um funcionário. Isso é bem diferente da economia neoclássica, que diz que a oferta e demanda de produtos é o que há de essencial para criar valor. Marx defendia que a força de trabalho explorada pela classe dominante era central na construção de valor no sistema capitalista. No entanto, como bem dito por Sabrina Fernandes, “o objetivo do capitalismo não é criar valor de uso, mas a acumulação infinita”, ou seja, não se busca apenas precificar mercadorias, mas lucrar o máximo possível em cima do que se produz. A exploração direta do trabalho pelas grandes corporações é chave para a acumulação de capital desenfreada, ou seja, aumento dos lucros.

As políticas de Gastarbeiter, comuns na Alemanha até meados dos anos 1970, são um exemplo de como podemos ver este conceito aplicado à realidade. O governo da Alemanha contratou trabalhadores estrangeiros em larga escala para impulsionar a sua industrialização e gerar uma crescente acumulação de capital a partir da exploração de mão-de-obra barata migrante. Todavia, assim que o país enfrentou uma forte crise econômica que limitou a expansão do capital nos anos 1970, o governo promoveu o retorno (muitas vezes forçado) desses migrantes aos seus países de origem. Essa repatriação foi extremamente problemática, pois várias famílias já haviam construído sua vida no país e não possuíam apoio nenhum para se reintegrarem aos mercados de trabalho dos seus países de origem. Isso deixa claro quão descartáveis os trabalhadores migrantes são para os grandes detentores de riquezas.

Outro ponto bastante presente nas análises marxistas é o de que há uma relação inversamente proporcional entre os lucros da produção e os salários da classe trabalhadora. Os países do centro do capitalismo global precisam de trabalhadores migrantes para que os níveis de lucros sejam mais altos, porque migrantes ganham em média muito menos que trabalhadores nacionais. Migrantes indocumentados do Sul Global são grandes alvos de exploração por diversas empresas, como o caso de trabalhadores mexicanos nos Estados Unidos, que frequentemente possuem seus direitos trabalhistas negados e recebem salários muito aquém da média nacional.

Também é central para as interpretações marxistas sobre migrações o conceito de exército de reserva. São trabalhadores que recebem menos do que o salário médio ou mínimo e que podem ser despedidos em massa sem grandes consequências políticas. O sistema capitalista precisa de uma enorme quantidade de “trabalhadores descartáveis” para manter a acumulação crescente de capital. Os migrantes do Sul Global são a principal força de reserva nos países ricos, principalmente os indocumentados. Por estarem em uma situação de grande vulnerabilidade e irregularidade migratória, inclusive com um constante medo de serem deportados, trabalhadores migrantes aceitam baixos salários e condições indecentes de trabalho. Um trabalhador migrante irregular não possui liberdade para escolher para quem quer trabalhar.

Pessimismo e realismo

Todo o sistema migratório internacional é pensado para derrubar os custos com o trabalhador e aumentar o lucro. O uso da força de trabalho migrante é um grande aliado para conseguir atingir esse objetivo. É bastante problemático que existam pouquíssimas oportunidades para estrangeiros conseguirem nacionalidade ou uma permissão permanente de trabalho, principalmente os que pertencem às camadas mais vulneráveis. Essa insegurança jurídica os deixa à mercê das vontades da classe dominante. Acabar com a migração irregular não é uma prioridade para os países ricos, porque isso acabaria com o grande exército de reserva disponível para as elites nacionais. Ademais, quando existem esforços para regularizar a condição jurídica dos trabalhadores migrantes, eles normalmente estão focados em vistos de trabalho temporário, o que significa que os trabalhadores podem ser repatriados a qualquer momento, mesmo que contra sua vontade.

Portanto, as teorias marxistas da migração são mais pessimistas que outras. A migração é mais um sinal do desenvolvimento desigual e das relações de poder entre as nações e não traz desenvolvimento aos países de origem. Na verdade, a migração pode até favorecer o subdesenvolvimento das periferias do mundo por meio do processo de fuga de cérebros, que é quando trabalhadores altamente capacitados deixam os seus países, como Brasil, Índia e Argentina para irem trabalhar nos EUA, Europa e Japão.

Isso quer dizer, então, que marxistas são contra a migração ou podem até compactuar com discursos a favor de controles migratórios? Absolutamente, não. Esse tipo de argumento é completamente incompatível com os escritos marxianos que afirmam que se o capital é internacional, a classe trabalhadora também precisa se organizar internacionalmente. Na verdade, a Primeira e a Segunda Internacional Socialista são bastante claras na defesa de direitos e condições iguais entre trabalhadores nacionais e migrantes e na necessidade de evitar que os donos dos meios de produção possam utilizar a mão-de-obra migrante como um trabalho de valor inferior.

Por fim, esta é apenas uma introdução muito breve a várias discussões que autores marxistas fazem sobre a questão migratória. O marxismo vê as migrações internacionais de forma bastante crítica e entende que elas fazem parte de uma estrutura internacional de exploração da classe trabalhadora. No entanto, em hipótese alguma o marxismo advoga pelo controle de fronteiras pelo Estado, que, diga-se de passagem, é controlado pela burguesia.  Pelo contrário, a organização internacional da classe trabalhadora é chave para a superação da atual realidade. Nas palavras do próprio Marx, “se a classe trabalhadora deseja continuar a sua luta com alguma chance de sucesso, as organizações nacionais devem se tornar internacionais”.

Leituras posteriores

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Sobre o autor

Vinícius Cruz Campos é pesquisador na área de migrações, analista de projetos na ONG Migraflix e consultor da Organização Internacional do Trabalho. Possui mestrado em Migração e Relações Interculturais pela Universidade de Oldenburg (Alemanha), e bacharelado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Sergipe. Seus campos de interesse incluem integração política de migrantes, mobilidade de trabalhadores migrantes e migração queer. Encontre Vinícius no Twitter: @cruzvinicius1

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