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sexta-feira, novembro 22, 2024

O que os dados do ACNUR apontam sobre as solicitações de refúgio de pessoas LGBTI no Brasil?

Por trás dos números há informações importantes que mostram existência de países que criminalizam relações homoafetivas e dinâmicas atuais das migrações como um todo

Por Arthur Fontgaland e Marcela Verdade
Do ProMigra, em São Paulo (SP)

Até o final de 2017 o Brasil registrou 10.145 solicitações de refúgio concedidas e 96.152 solicitações em análise feitas por pessoas de diferentes nacionalidades e que sofreram as mais variadas perseguições em seus países de origem, segundo o Ministério da Justiça [1].

Entre essa população é cada vez mais frequente a presença de LGBTIs. Tratam-se de pessoas que emigraram por serem perseguidas devido a identidade de gênero e/ou orientação sexual que expressam. Ainda que estes motivos não estejam diretamente mencionados como critérios para obtenção do status de refugiado, previstos pela Convenção de 1951 sobre o Estatuto das Pessoas Refugiadas, as interpretações normativas e jurisprudenciais internacionais entendem esta população solicitante como pertencente ao critério de “grupo social”.

Alinhada a este mesmo argumento utilizado pelo Direito Internacional dos Refugiados, o Brasil concedeu, em 2002, suas primeiras solicitações de refúgio a um casal de homens colombianos perseguidos por serem LGBTI. Com a intensificação de ocorrências desse tipo no país, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR realizou um levantamento do perfil de solicitantes de refúgio das pessoas perseguidas em função da orientação sexual e/ou identidade de gênero [2]. Publicada no final do ano de 2018, a pesquisa partiu de buscas textuais no bancos de dados do Conare (Comitê Nacional para Refugiados).

Foram considerados no levantamento do ACNUR tanto solicitações feitas por pessoas LGBTI, quanto por pessoas não LGBTI percebidas como tal pelos/as seus/as perseguidores/as, geralmente defensores dos direitos à diversidade sexual e de gênero. A pesquisa não teve o propósito de dar conta do total das pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio LGBTI no Brasil, índice  provavelmente amplo e de difícil mensuração.

Este texto, portanto, busca explorar alguns desses dados disponibilizados para consulta pública pelo ACNUR. Discutiremos, mesmo que tangencialmente, alguns possíveis fatores de expulsão/atração dos deslocamentos dessa população LGBTI para o Brasil.

Entre 2010 e 2018 o Brasil registrou 369 solicitações de refúgio cujo motivo do temor de perseguição se refere à orientação sexual e/ou identidade de gênero. Este número é composto por 241 homens gays, 38 lésbicas, 12 bissexuais e 28 pessoas não LGBTI. Além disso, 50 pessoas constam como “sem informação”.

Grande parte dos casos ocorreram entre 2014 e 2015 e muitos deles foram decididos pelo CONARE (indeferidos, arquivados ou reassentados) no ano seguinte. As solicitações se concentraram na região Sudeste, especialmente no estado de São Paulo.

O maior número de solicitações foi realizado por pessoas provenientes de países africanos e, em menor medida, de países latinos vizinhos como Colômbia e Venezuela. Quase a metade das solicitações, cerca de 45%, foi feita por pessoas perseguidas ou percebidas como LGBTI na Nigéria e em Gana, com respectivamente 121 e 45 solicitantes.

Na Nigéria, existe um conjunto de leis que criminaliza as práticas afetivas e sexuais não normativas. Historicamente criou-se um contexto neste país de violências autorizadas pelo Estado que ajuda a explicar, parcialmente, o elevado número de solicitantes de refúgio em função de orientação sexual e/ou identidade de gênero dessa nacionalidade no Brasil.

O Código Penal nigeriano prevê tipos penais que criminalizam as relações sexuais entre homens e entre mulheres. Eles são entendidos como crimes “contra a natureza” e “conhecimento carnal” que possuem pena de prisão, efetivamente aplicada, de 8 a 14 anos. Abarca também a proibição de casamentos entre pessoas do mesmo sexo e de seus colaboradores (com pena de detenção); de qualquer afetividade homossexual entre homens em locais públicos ou privados; e de formação ou registro de organizações ligadas aos direitos e expressões LGBTI. As penas podem variar entre 3 a 14 anos conforme a infração.

Na região norte do país, diversos estados adotam, ainda, a lei religiosa islâmica “Sharia”. Ela também criminaliza as atividades sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Para homens, a morte é a pena máxima. As mulheres são penalizadas com chicoteamento e/ou prisão.

Já em Gana, o Estado prevê em seu Código Penal o tipo “conhecimento carnal não natural” responsável por criminalizar as relações homoafetivas entre homens. As penas variam entre 3 a 7 anos de prisão. Apesar do entendimento de sua aplicabilidade apenas aos homens, há relatos da mídia local de ataques de milícias contra lésbicas.

A retórica nacional “anti-gay” é encontrada em diversos estamentos do governo, nos discursos de líderes populares e nas instituições religiosas católicas, evangélicas e islâmicas. Estes agentes ganeses desempenham um significativo papel de fomento à estigmatização das expressões de gênero e sexualidade dissidentes. Tais situações motivam e/ou obrigam um número crescente de jovens a se inscreverem em programas de conversão e aconselhamento.

Nos dois países, as penalizações para homens gays tendem a ser mais severas se comparadas às outras orientações sexuais. O que pode explicar, de certo modo, o grande percentual de solicitação de refúgio no Brasil por parte desse segmento identitário se comparado aos demais. O Conare registrou 84 homens gays cisgêneros provenientes da Nigéria e 28 de Gana.

A incidência expressiva de pessoas heterossexuais cisgêneras constatada nos registros oficiais provenientes desses dois países e contabilizadas pelo ACNUR sugere que se tratam de casos de pessoas que em prol do seu ativismo político são percebidas como membros do grupo social LGBTI. Tais ocorrências encontram fundamento nas barreiras civis e criminais que países como a Nigéria institui contra organizações sociais pró LGBTI.

As situações encontradas na Nigéria e em Gana compõem um universo mais amplo: cerca de 70 dos 193 países reconhecidos pela ONU criminalizam relações entre pessoas do mesmo sexo, conforme os dados publicados este ano pela Associação Internacional de Lésbicas Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo – ILGA [3].

Mas estas criminalização, sobretudo em países como Nigéria e Gana, não devem ser tomadas como o único fator que explica o alto índice de solicitação de refúgio LGBTI dessas nacionalidades no Brasil. É preciso considerar outros vetores de atração/recepção relacionadas aos (re)arranjos globais das dinâmicas políticas, econômicas e sociais que incidem nos fluxos desses refugiados e nas solicitações de refúgio no Brasil.

Entre eles, destaca-se o recrudescimento das políticas migratórias do Norte global que modificam rotas e intensificam as migrações Sul-Sul [4]; o maior estreitamento das relações internacionais de caráter político e econômico com países africanos, sobretudo nas primeiras décadas dos anos 2000; e o contexto de estabilidade econômica brasileira até recentemente.

Outros prováveis fatores de atração para o Brasil são as características mais receptivas das nossas políticas para refugiados em contraste com as de outras nações. O que inclui o princípio de não devolução de solicitantes para o país onde foram perseguidos, o acesso à saúde pública e direitos trabalhistas garantidos às pessoas em situação de refúgio.

Pesa, também, o fato de o Brasil não possuir políticas que criminalizam as relações entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, no imaginário internacional, o brasileiro costuma ser percebido como um povo que goza de grandes liberdades sexuais, ainda que conviva com intensas desigualdades de gênero, com violenta e letal cultura LGBTIfóbica e com a frágil proteção legal às mulheres e LGBTI.

Referências

[1] Refúgio em números – 3ª edição. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://twixar.me/SkdK>.  Acesso em: 17 de março de 2019.

[2] Perfil das solicitações de refúgio relacionadas à OSIG. ACNUR, 2018. Disponível em: <http://twixar.me/qC0K>. Acesso em: 17 de março de 2019.

[3] Sexual Orientation laws in the world, ILGA, 2019. Disponível em: http://twixar.me/RkdK[4] Baeninger, Rosana. Migrações Sul-Sul. Campinas, 2018. Pág. 13. Disponível em: <http://twixar.me/3k0K>. Acesso em: 17 de março de 2019.




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