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sexta-feira, outubro 4, 2024

Observatório que discute migrações a partir de séries e filmes estreia com mais de 200 produções

O Migracine - Observatório de Cinema e Migrações Transacionais é fruto de uma parceria entre grupos de pesquisa da ESPM e da Unespar e dá passo adiante em relação a livro lançado em 2018

Os estudos e debates sobre migrações ganharam um novo espaço, que será lançado oficialmente na próxima quarta-feira (17). Trata-se do Migracine – Observatório de Cinema e Migrações Transacionais, que parte de uma base de mais de 200 produções audiovisuais, entre filmes e séries de televisão.

O Migracine é uma iniciativa conjunta de dois grupos de pesquisa da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), o Deslocar e o Sense, com o EIKOS, Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Ele é ainda uma evolução do Guia de Cinema e Migrações Transnacionais, publicado em 2018 pela editora da Universidade Federal de Roraima e que já abordava 42 dessas produções.

O lançamento do Migracine acontece às 18h em formato online, por meio da plataforma Zoom (clique aqui para se inscrever). O evento terá a palestra “A autorrepresentação como atitude transformadora no cinema”, a ser ministrada pelo artista Welket Bungué, nascido em Guiné-Bissau e com larga formação e produção cultural na Europa e também no Brasil. Alguns filmes de Bungué também poderão ser conehcidos por meio da palestra.

O projeto é coordenado pelas professoras Dras. Denise Cogo e Gabriela Almeida, pela ESPM, e pelo professor Dr. Rafael Tassi Teixeira, pela Unespar, além do pesquisador colaborador Dieison Marcone. Eles concederam entrevista em conjunto ao MigraMundo sobre o Migracine e quais os próximos passos. Veja abaixo:


MigraMundo: De onde surgiu a ideia de abordar as migrações, em suas diferentes expressões, a partir do cinema e séries de TV?

Observatório Migracine: O objetivo é ampliar e atualizar, de modo permanente, o acervo de obras audiovisuais sobre migração transnacional, em diferentes formatos, linguagens e gêneros narrativos, disponibilizado no Guia de Cinema e Migrações Transnacionais, publicado em 2018 pela editora da Universidade Federal de Roraima. Para a elaboração do Guia, partimos de um levantamento de 1200 filmes sobre a temática da migração, dos quais 260 sobre migração transnacional, para a escolha final de um corpus de 42 filmes. selecionados a partir de uma delimitação metodológica que implicou no cruzamento de dois eixos: o recorte transnacional, que excluiu, por exemplo, filmes contemporâneos que observavam migrações anteriores à década de 1990; o recorte temático-argumentativo em que as migrações transnacionais precisavam ser centrais na linha narrativa dos filmes;  e as possibilidades de acesso às obras, escolhendo o cinema (a sala escura, a exibição prévia, mesmo que apenas em festivais) como lugar de memória desses deslocamentos.

Procuramos orientar essa seleção pela facilidade de encontrar os filmes dirigidos às salas de exibição, não deixando, contudo, de privilegiar uma filmografia sobre migração conhecida e consumida em DVDs, plataformas online, sistemas on demand, etc. Com base nesses critérios, o Guia de Cinema e Migrações Transnacionais reuniu um universo de 42 filmes que, a partir de narrativas plurais e em estéticas diversas, evidenciam como os cinemas mundiais produzem narrativas sobre as migrações transnacionais como um fenômeno profundamente associado às transformações das geopolíticas globais e às dinâmicas socioculturais, políticas, econômicas e comunicacionais contemporâneas.

No processo de seleção dos filmes para o Guia, buscamos, ainda, um equilíbrio entre os cinemas mais hegemônicos (norte-americano, europeu) e os cinemas menos conhecidos (africano, asiático, latino-americano).  No que se refere à temporalidade, estabelecemos a década de 1990 como recorte das migrações transnacionais focalizadas no Guia, especialmente por entendermos que representa o contexto temporal de uma série de mudanças e dilemas sociopolíticos e globais marcados pelo aprofundamento das dinâmicas de controle de fronteiras e das retóricas de criminalização das migrações que passaram a impactar os deslocamentos humanos.

Esse é também um momento de inflexão para o cinema que começa a sofrer transformações em sua produção, distribuição e circulação – desde a digitalização frente à resistência do celuloide, passando pela universalização das cadeias de produção e do consumo do cinema e do audiovisual. Nesse processo, a globalização cultural e a crescente internacionalização das produções tornam cada vez mais complexa a origem nacional de um filme. Nesse aspecto, certa representatividade entre os diferentes cinemas em suas formas organizacionais (documentários, ficcionais, ensaísticos) e todas as imbricações possíveis também nos orientaram nessa seleção de obras demarcada pela relevância das migrações nas narrativas sociais tanto em sua dimensão subjetiva quanto em sua perspectiva coletiva de drama humano. A construção da Migracine seguiu essas mesmas diretrizes na perspectiva de ampliar o acervo de obras que começou a ser reunido no Guia de Cinema e Migrações Transnacionais lançado em 2018. E. também, a exemplo do Guia, o Observatório está orientado a um público amplo, não apenas especializado em cinema ou restrito ao âmbito acadêmico.

Ao todo, quantas produções estão listadas na plataforma neste momento? Quantos são os países de origem desses filmes e séries?

Temos até o momento 202 obras cadastradas entre filmes e séries de 46 países, dentre os quais Brasil, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Austrália, Chile,  Bolívia, Cabo Verde, Albânia, Equador, Bósnia, Índia, Haiti, Bélgica, Nigéria, Senegal, Cuba, China, Argélia, Turquia e Camarões.

Qual foi o critério usado para definir as produções que integrariam a plataforma?

Além dos critérios que pautaram a escolha das obras para o Guia de Cinema que já mencionamos, no Migracine buscamos contemplar uma mostra de obras sobre migrações realizadas nas cinco regiões geopolíticas – América Latina, América do Norte, África, Ásia e Oceania. Além disso, organizamos a Plataforma a partir da dimensão da interseccionalidade na perspectiva de que a experiência da migração abordada nos filmes possa ser refletida a partir das interfaces temáticas de gênero e sexualidade (mulheres, LGBTIQ+), raça, infância e juventude. Também buscamos identificar e dar visibilidade a realizadores migrantes que produzem cinema e séries sobre migração. No site, é possível fazer busca por esses quatro eixos temáticos.

Filme “14 Quilômetros” (Espanha, 2007), uma das mais de 200 produções que integram atualmente o acervo do Migracine. (Foto: Divulgação)

Entre as produções selecionadas, além da questão migratória, é possível identificar algo mais em comum?

A França aparece expressivamente como um país que produziu ou co-produziu filmes sobre migrações, para além de outros países europeus e dos Estados Unidos. Além disso, nas narrativas fílmicas, a França aparece como um dos destinos mais frequentes dos imigrantes do Sul ou mesmo de outros países do Norte. E na verdade, no contexto das mais de 200 obras catalogadas, fica bastante evidente como a Europa ainda é visibilizada como o principal destino dos migrantes do Sul global. Em menor grau, acho que também é possível dizer que os filmes que estão no site também abordam migrações Sul-Sul e Norte-Norte. Mas essas ainda são questões sobre migrações.

Para além disso, achamos que foi acertado pensar numa intersecção entre migração e outros marcadores sociais, pois as tags inseridas também demonstram um número expressivo de diretoras mulheres, assim como é interessante ver a quantidade de realizadores migrantes, histórias de pessoas LGBT, etc. Sobre a variedade de gêneros narrativos:  no caso dos filmes ficcionais se notabilizam, por exemplo, o drama familiar, o romance, a comédia e alguns gêneros do excesso, como o horror e o melodrama.

No caso dos filmes documentários, se notabilizam os filmes de arquivo, filmes ensaísticos, documentários de viagem, documentários de denúncia. As séries televisivas são expressivamente oriundas dos EUA/América do Norte, enquanto os outros países parecem produzir mais filmes (ficção, animação e documentário).

O que a análise desse material mostrou a você e aos demais pesquisadores a respeito da abordagem que as migrações receberam dessas diferentes produções?

A necessidade de dar visibilidade a realizadores migrantes que, muitas vezes, aparecem invisibilizados porque desconhecemos a existência de um cinema sobre migração produzido por migrantes ou porque muitos realizadores migrantes do chamado Sul Global acabam produzindo cinema sobre migração no Norte Global, onde encontram maiores recursos para a realização de obras cinematográficas. Isso fica evidente quando percebemos, conforme a resposta anterior, a França como um agente importante para esses cinemas, especialmente do ponto de vista do financiamento.

Em relação aos cinemas produzidos na África, por exemplo, é possível perceber uma atualização de lógicas de dominação que remetem à colonialidade, quando muito do cinema que se produz no continente existe em função de recursos que são aportados principalmente pela França, mas também por outros países europeus, com grande participação da Alemanha também. Há ainda uma relação de dependência que se estabelece em relação à Europa também para distribuição e circulação das obras, em dois eixos principais: um deles é o circuito de festivais europeus, que funcionam como instância de reconhecimento e legitimação para os cinemas mundiais, mas de forma mais decisiva para os do Sul Global. A seleção e uma eventual premiação de obras em festivais como Berlim, Cannes ou Veneza muitas vezes é o que viabiliza a circulação internacional do filme, ao torná-lo mais interessante aos olhos dos distribuidores.

Outro ponto é que os festivais, para além da legitimação estética/artística, também são ambientes de negócios em que é preciso estar para que o projeto seja conhecido e adquirido para comercialização. A dependência em relação ao Norte Global, especialmente ao eixo Europa central – Estados Unidos, ainda é muito forte.

Estamos em um momento no Brasil no qual projetos de pesquisa vivem sob forte pressão e orçamento reduzido. Existe o risco dessa situação impactar na atualização ou mesmo na continuidade desse projeto?

Até o momento, temos o apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e também da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). Esperamos que se mantenha a verba da bolsa do CNPq de uma das coordenadoras do projeto, que possibilitou a criação da Plataforma e a inserção dessas 202 obras. O apoio que temos da ESPM, onde está sediado o Observatório, favorece também uma maior estabilidade do projeto. 

Uma vez lançado o Observatório, quais os próximos passos do projeto?

Além de fonte de consulta para acadêmicos, realizadores audiovisuais,  educadores e ativistas das migrações,  o Observatório pretende se consolidar também como um espaço de organização de eventos periódicos (debates, webinars, lives, etc.), a exemplo do evento online que organizamos para marcar o lançamento do Observatório no dia 17/11, com a presença de  Welket Bungué, artista transdisciplinar, de etnia balanta, nascido na Guiné-Bissau, para abordar o tema “A autorrepresentação como atitude transformadora no cinema”. O Observatório abriga, ainda, um espaço para compartilhamento de bibliografia sobre cinema e migração, além de um espaço para publicação de comentários livres sobre os filmes, a serem elaborados por acadêmicos e ativistas, que atuam no campo das migrações e/ou cinema, seguindo a mesma perspectiva que adotamos no Guia de Cinema e Migrações Transnacionais.  Também um desafio do Observatório será ampliar o acesso ao público em geral a muitas obras que constituem o acervo, especialmente dos cinemas menos hegemônicos e do Sul Global, como, por exemplo, a partir da realização de parcerias para exibição desses filmes em espaços institucionais e também alternativos.


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