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terça-feira, abril 30, 2024

Os anos iniciais dos fluxos imigratórios afro-caribenhos e africanos para a Inglaterra: uma perspectiva através do romance The lonely Londoners

Por Felipe Antonio Honorato e Guilherme Silva Pires de Freitas

1. Introdução

A Segunda Guerra Mundial e a crise energética da década de 1970 foram dois grandes marcos nas migrações entre o sul e o norte global. Durante e imediatamente após o conflito, a Europa Ocidental buscou trabalhadores manuais no sul global, especialmente em suas colônias e ex-colônias, primeiro para engrossar suas fileiras de soldados – dois milhões de africanos lutaram no conflito, sendo setecentos mil somente no exército inglês (KHAPOYA, 2015) -, e, posteriormente, para reconstruir a estrutura e a força de trabalho nacionais, destruídos na guerra. Este paradigma se inverteu com os choques do petróleo e se arrochou ainda mais com a criação do Espaço de Schengen (OMIZZOLO; SODANO, 2018), e a operacionalização das práticas de externalização de fronteiras (CERNADAS, 2009). “The lonely Londoners”, romance do autor caribenho Sam Selvon, trata do contexto migratório na Inglaterra logo após o conflito mundial.

2. A geração Windrush

Entre estes imigrantes que chegaram à Inglaterra em meados do século XX destacam-se aqueles oriundos do continente americano, da chamada região das Índias Ocidentais. Estes primeiros indivíduos ficaram conhecidos como a “geração Windrush” devido a famosa embarcação que transportou alguns dos primeiros imigrantes caribenhos através do Oceano Atlântico em 1948.

A embarcação foi construída na Alemanha no início da década de 1930 e recebeu o nome de Monte Rosa (ROYAL MUSEUMS GREENWICH, s. d.). Inicialmente foi um navio de cruzeiro, mas durante a Segunda Guerra Mundial serviu como meio de transporte de tropas nazistas e como prisão de soldados inimigos. Capturado pelos britânicos em 1945 foi rebatizado e recebeu o nome de Empire Windrush, em homenagem ao Império Britânico e ao rio Windrush, que fica na região de Cotswolds (ROYAL MUSEUMS GREENWICH, s. d.).

O Empire Windrush não foi o primeiro navio a levar imigrantes caribenhos para a Inglaterra. Antes dele outros navios britânicos já haviam feito esse percurso transatlântico. Em 1947 o Ormonde e o Almanzora transportaram centenas de caribenhos, entre trabalhadores e militares (BERRY-WAITE, 2023).

Porém, foi o Empire Windrush que ficou mais famoso, principalmente pela sua história e por ter se tornado um dos mais icônicos navios britânicos até afundar em 1954. O primeiro grupo de imigrantes caribenhos que viajou em 1948 e aportou nas docas de Tilbury, em Essex, era composto por 1027 pessoas, sendo a maioria de jamaicanos. O perfil majoritário era de homens em busca de emprego, embora houvesse mulheres a bordo, pessoas que foram à Inglaterra para estudar e alguns militares (ROYAL MUSEUMS GREENWICH, s. d.).

Estes imigrantes passaram por um choque inicial ao aportar na Inglaterra, tendo enfrentado não apenas as diferenças culturais, como também identitárias. Casos de racismo e xenofobia eram constantes, sendo demonstrados não somente de forma explícita, como através de ofensas, mas também na tentativa de exclusão social destas pessoas e da pouca oferta de trabalho (PHILLIPS, 1999).

Segundo dados do Censo da Inglaterra e País de Gales de 2021, cerca de 1% da população do Reino Unido, pouco mais de 620 mil pessoas, é composta por imigrantes de origem caribenha ou dos descendentes da “geração Windrush” (OFFICE FOR NATIONAL STATISTICS, 2022). A maioria deles habita majoritariamente a região de Londres. A diáspora caribenha para o território britânico também pode ser vista através de figuras públicas e famosas da sociedade britânica como a modelo Naomi Campbell, a cantora Mel B do grupo Spice Girls, o jogador de futebol Rio Ferdinand e o piloto Lewis Hamilton, heptacampeão mundial de Fórmula 1.

3. “The lonely Londoners”

Sam Selvon foi um escritor e jornalista de Trinidad e Tobago que, por sua obra pioneira em mostrar a vida de imigrantes das chamadas Índias Orientais (o Caribe) na ilha britânica, recebeu a alcunha de “pai da escrita negra” da Grã-Bretanha (SELVON, 2006).

Nascido em San Fernando, Trinidad e Tobago, em 1923 (ASIAN HERITAGE IN CANADA, s.d.), trabalhou, de 1945 a 1950, como jornalista em publicações de sua terra natal, até se mudar para Londres no mesmo ano, onde permaneceu por 28 anos, indo, posteriormente, viver no Canadá, nação onde ficaria até 1994, ano de seu falecimento (ASIAN HERITAGE IN CANADA, s.d.).

Sua primeira obra literária de destaque foi publicada já na capital inglesa, em 1952 – A brighter sun (SELVON, 2006). O conjunto de sua produção inclui contos, romances ambientados em Trindad, além de ficções que se passam em Londres. Uma dessas ficções é “The lonely Londoners”, que circulou pela primeira vez em 1956 e foi republicado em 2006 pela Penguin Books, dentro da série “modern classics”, com introdução de Susheila Nasta.

The lonely Londoners tem como personagem principal Moses Aloetta, um imigrante das Índias Ocidentais já veterano em Londres. O livro se desenrola contando a convivência de Moses com outros imigrantes negros na capital inglesa e o dia a dia deles na Inglaterra, lutando contra o racismo no país europeu e suas consequências em suas vidas.

O livro começa na estação de Waterloo, ponto de chegada de jamaicanos, barbadianos, trinidianos, dentre outros, na metrópole inglesa. Moses tem fama de ser coração mole e, por isso, muitos imigrantes caribenhos que chegam a Londres recorrem a ele por um auxílio inicial: um canto para dormir nas primeiras noites, dicas de onde e com quem falar para conseguir um emprego. Assim ele vai receber Henry Oliver, referido no livro como Galahad, sem o conhecer, apenas por indicação de um amigo em comum de ambos.

É Moses que explica a Galahad como o preconceito inglês contra as levas cada vez mais numerosas de imigrantes negros funciona: ao contrário dos estadunidenses, que segregavam espaços e não escondiam quando não suportavam gente de pele escura, os britânicos eram “diplomáticos”, nas palavras da própria personagem (SELVON, 2006, p.20)- se um jamaicano ou nigeriano negro, por exemplo, fosse indicado a uma vaga de emprego em um local onde negros não eram aceitos, o empregador simplesmente o diria que a vaga já havia sido preenchida, para que esse imigrante não a ocupasse. Por isso, quando Henry Oliver vai buscar emprego na assistência social, Moses diz para ele reparar a marcação em tinta vermelha no topo da ficha de alguns imigrantes negros jamaicanos “J-A, Col.” (Jamaican, colored) (SELVON, 2006, p.28): identificar a ficha de imigrantes negros das Índias Ocidentais evitaria encaminhá-los para empregadores intolerantes e fazer com que ambos perdessem seu tempo.

Mesmo os imigrantes brancos, ainda que sem a condição de cidadãos plenos como os não brancos vindos do Caribe e de África, os tratavam de forma preconceituosa, baseados unicamente na diferença racial – problematização que Moses faz instigando Galahad a ir a um restaurante de dono polonês e ver a forma como seria tratado, mesmo o dono não tendo nenhum direito à mais que ele.

Após falar sobre Galahad e Captain (também chamado de “cap”), um imigrante nigeriano mulherengo e bon vivant, a obra prossegue narrando algumas passagens sobre Bart. De pele negra, mas em um tom mais claro do que da maioria dos africanos e caribenhos, ele costuma se apresentar como afro-americano e evita andar em público com outros imigrantes negros, numa estratégia para diminuir o preconceito dos ingleses contra si. Certa vez, ao ir conhecer a família de uma namorada britânica branca, Bart é escorraçado pelo pai da moça que diz não querer um neto de cabelos crespos em sua família (SELVON, 2006).

Durante diversos períodos na obra, há passagens em que é discutido como os empregos mais pesados e com as piores remunerações eram reservados aos imigrantes negros, como estes imigrantes ocupavam os bairros mais humildes da cidade e como a competição dentro do mercado de trabalho alimentava a xenofobia por parte da classe trabalhadora branca inglesa contra eles – Moses, por exemplo, narra um episódio em que seus colegas brancos em uma ferrovia ameaçaram entrar em greve se ele, negro e das Índias Ocidentais, não fosse demitido (SELVON, 2006).

Ainda que, como o livro mostra, o racismo, a xenofobia, a visão de que não brancos e não ocidentais, na esteira do pensamento colonial, são inferiores, e a vontade de, por parte de ingleses brancos, de os segregarem socialmente – citando a introdução do livro: “As contradições desta situação foram agravadas pela política de “portas abertas” da Lei da Nacionalidade, que acolheu migrantes na Grã-Bretanha. Embora a maioria dos cidadãos coloniais possuísse passaportes britânicos e direitos iguais de residência, em 1958 começaram a surgir distúrbios raciais. E com a aprovação de mais uma Lei de Imigração em 1962, surgiu uma política governamental explicitamente exclusivista, concebida para manter fora os cidadãos “de cor”” (SELVON, 2006, p. xi)[1] – , Sam Selvon apresenta traços de um império colonial inglês crioulizado, e ilustra que tal processo, com a chegada de levas migratórias do Caribe e África, era também irreversível na metrópole colonial: o autor escreve o livro todo usando gírias da comunidade imigrante negra na Inglaterra – como os termos “spades” e “the boys”, utilizados para se referir aos compatriotas, “aye”, para chamar algum conhecido, e “Brit’n”, abreviação de “Britain”, para se referir à Grã-Bretanha -, e inglês crioulizado – como a frase “You fraid him?” (SELVON, 2006, p. 58), que inglês britânico seria grafada “Are you afraid of him?”, demonstra; além disso, descrevendo a rotina de Tanty, idosa e tia de Tolroy, jamaicano imigrado à Londres e conhecido de Moses, o autor conta como a senhora, que foi à capital inglesa cuidar dos serviços domésticos da família para que seus demais membros pudessem trabalhar fora, forçou os donos de mercadinhos locais, então contra a venda de produtos à prazo, aceitassem a prática, comum em sua terra natal, além narrar como a chegada numerosa de caribenhos a Londres fez com que produtos como “smoked fish”, arroz e feijão, antes raros de serem encontrados, virassem itens indispensáveis nas prateleiras de supermercados britânicos – e atualmente alguns deles fazem parte do típico café da manhã dos ingleses. A obra destaca, também, que, apesar da xenofobia, após a guerra, as famílias ricas de Londres recrutaram moças jamaicanas para trabalharem como domésticas em suas casas.

Pode-se dizer que a obra de Sam Selvon faz parte de um campo já consolidado dentro da literatura inglesa: o de livros que abordem a imigração afro-caribenha, africana e asiática para o país no contexto pós Segunda Guerra Mundial. Expoentes dessa tradição são The Emigrants, de George Lamming (1954) e The Nowhere Man, de Kamala Markandaya (1972).

Referências bibliográficas

ASIAN HERITAGE IN CANADA. Sam Selvon. Disponível em: < https://library.torontomu.ca/asianheritage/authors/selvon/ >.

BERRY-WAITE, Lisa. Mapping Caribbean migration to Britain. The National Archives. 09 out. 2023. Disponível em: < https://blog.nationalarchives.gov.uk/mapping-caribbean-migration-to-britain/ >.

CERNADAS, Pablo Ceriani. Controle migratório europeu em território africano: a omissão do caráter extraterritorial das obrigações de direitos humanos. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos (online), v. 6, n. 10, p. 189-214, 2009. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S1806-64452009000100010 >.

KHAPOYA, Vincent B. A experiência africana. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

OFFICE FOR NATIONAL STATISTICS. Census 2021 Data. Office for National Statistics. 2022. Disponível em: < https://www.ons.gov.uk/census >.

OMIZZOLO, Marco; SODANO, Pina. The European meta-borders: the outsourcing and militarization of European borders and the violation of the human rights of Sub-Saharan refugees. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (online), v. 26, n. 54, p. 151-170, 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1980-85852503880005408>.

PHILLIPS, Caryl. A Dream Deferred: Fifty Years of Caribbean Migration to Britain, Kunapipi, v. 21, n. 2, 1999. Disponível em: < https://ro.uow.edu.au/kunapipi/vol21/iss2/17 >.

ROYAL MUSEUMS GREENWICH. The story of the Windrush. Royal Museums Greenwich. Disponível em: < https://www.rmg.co.uk/stories/windrush-histories/story-of-windrush-ship >.

SELVON, Sam. The lonely Londoners. Londres: Penguin Books, 2006.

Sobre os autores

Felipe Antonio Honorato é doutorando em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), além de editor da revista Encuentro Latinoamericano (ELA). Entre 2023 e 2024 foi pesquisador visitante de doutorado no Departamento de Antropologia Social e Cultural da KU Leuven (Bélgica).

Guilherme Silva Pires de Freitas é jornalista e Doutor em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP).


[1] Tradução dos autores. Versão original: “The contradictions of this predicament were heightened by the ‘open door’ policy Nationality Act which welcomed migrants into Britain. Although the majority of colonial citizens held British passports and equal rights of residence, by 1958 racial disturbances had begun to erupt. And with the passing of a further Immigration Act in 1962, an explicitly exclusionist government policy emerged, designed to keep ‘coloured’ citizens out”

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