Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
A expressão é notória e amplamente conhecida. Refere-se, via de regra, a certos corredores pontilhados de riscos, por onde os migrantes, ao tentar uma travessia perigosa, acabam em bom número perdendo a própria vida. Fronteiras, muros, obstáculos e leis adversas se multiplicam com o próprio ato de avançar pela estrada. O horizonte parece deslocar-se na mesma proporção e velocidade dos passos dados. Por qualquer caminho ou atalho que se tome, surge sempre “uma pedra no meio do caminho” como diria o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Com frequência inusitada e inóspita, o sonho da migração se converte em pesadelo. Nos últimos tempos, devido particularmente a tantos e tão trágicos naufrágios, a expressão tem sido larga e insistentemente popularizada pela Papa Francisco, ao se referir ao mar Mediterrâneo como um verdadeiro “cemitério de migrantes”. Náufragos do sonho e da esperança.
Certo, as águas do Mediterrâneo têm causado o desaparecimento de elevado número de migrantes. No ano de 2013, por exemplo, pouco depois que Jorge Mario Bergoglio foi eleito novo pontífice, tomando logo posse da cátedra de Pedro, uma embarcação com cerca de 800 imigrantes vindos da Líbia afundou nos arredores da ilha de Lampedusa, extremo sul da Itália. Essa trágica ocorrência, que não era a primeira e tampouco seria a última, levou o Papa a visitar aquela ilha, depositando nas águas do mar uma coroa de flores em homenagem às centenas de naufragados. Convém não esquecer que outras tentativas do mesmo gênero tiveram a mesma sorte trágica. Barcaças em sua maioria infláveis, frágeis e precárias, impróprios para essas travessias em mar aberto, sobrecarregados de jovens, mulheres e crianças – reúnem todas as condições negativas para serem facilmente devorados pela tempestade. Por isso, os naufrágios seguem-se com certa frequência tanto naquela área quanto em outros pontos do Mediterrâneo. Inúmeros rostos, nomes e histórias permanecem para sempre soterrados no anonimato e no esquecimento.
Mas as areias do deserto também não deixam de ser um outro tipo de cemitério para números consideráveis de migrantes. O mais emblemático é sem dúvida o deserto do Saara. Nessa extensão, quantidade ignota de africanos, originários dos países situados abaixo do famigerado deserto, perdem a vida ao tentar atravessá-lo. A rota procura alcançar a Líbia e/ou o Marrocos. Dali os migrantes tentam a travessia marítima em direção ao sul da Itália ou Espanha, países usados com trampolim para alcançar os vários países do velho continente europeu. Há narrativas dos próprios migrantes sobre o encontro macabro de carcaças humanas, bem como dos restos mortais de companheiros anteriores que se perderam nessa árida travessia. As areias revelam-se traiçoeiras, geladas durante a noite e, ao mesmo tempo, escaldantes no decorrer do dia. Insistentes relados exibem ainda imagens de pés gretados e sangrentos, cheios de feridas e chagas sangrentas, algumas delas irremediáveis. Sonhos interrompidos de migrantes mutiladas para o resto de suas vidas.
Ultimamente, a mídia em geral tem divulgado reportagens e imagens comovedoras sobre a travessia do estreito e da floresta de Darién, na fronteira entre Colômbia e Panamá. Para se ter uma ideia desse recente corredor migratório, durante o ano de 2023 passaram por esse complexo fronteiriço ao redor de 500 mil pessoas. Tudo indica que o ano de 2024 ultrapasse igualmente o meio milhão de travessias. Mas números preocupantes desses migrantes, em particular mulheres e crianças, ficaram pelo caminho, levados pela correnteza do rio ou pelos males da selva. As caravanas que tentam cruzar rio e selva são formadas com migrantes provindos não apenas da América do Sul. A esses se juntam outros grupos, os quais, em vão já bateram em várias fronteiras, em geral cerradas para a entrada de trabalhadores e trabalhadoras braçais. Os migrantes que se arriscam pelo Darién visam o Eldorado dos EUA e Canadá. Mas também neste caso, os sobreviventes da travessia relatam casos de morte, sobretudo das pessoas mais debilitadas. E de novo, a tragédia acaba por devorar o sonho de um futuro mais promissor.
Mares, desertos, rios e florestas são símbolos emblemáticos de tantos lugares inóspitos onde grande número de migrantes perdem a vida durante travessias arriscadas. São mártires de uma economia globalizada que, na expressão do Papa Francisco, “exclui, descarta e mata”. Fazem parte do gigantesco “exército de reserva”, multidão pluriétnica e internacional de pobres Lázaros, forçado a se deslocar continuamente atrás dos ventos do capital e das migalhas que caem da mesa do “rico avarento” – paráfrase da parábola do Evangelho. Sim, dessa grande travessia em busca de trabalho e de novas oportunidades de vida.
Sobre o autor
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, é assessor do SPM