Por Felipe Antonio Honorato e Guilherme Silva Pires de Freitas
O objetivo deste texto é mostrar, de forma breve e através de duas reportagens publicadas pelo jornal de Bruxelas “Le Soir”, como as divisões, fortemente influenciadas pelo genocídio acontecido em Ruanda no ano de 1994, reverberaram na convivência da comunidade imigrante ruandesa vivendo na Bélgica entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000.
Ruanda e Bélgica têm um passado compartilhado. Como explicam Carlos Serrano e Kabengele Munanga (1995), Ruanda-Urundi, território que corresponde atualmente a República de Ruanda e a República do Burundi, foi conquistado pela Alemanha em 1890. Unidos em 1899, os dois países formaram a colônia alemã na África oriental. Após a Primeira Guerra Mundial, esse território foi entregue à Bélgica em regime de tutela e cada um dos territórios conquistou, separadamente, sua independência em 1º de julho de 1962. Além disso, eram mais de 40.000 nacionais de Ruanda vivendo na antiga metrópole colonial em 2017.
O Le Soir, por sua vez, é indicado por Sicard (2007) como sendo o principal jornal diário belga, à frente do La Libre Belgique. O periódico circulou pela primeira vez em 1887, ano em que foi fundado por Émile Rossel e é uma publicação generalista de periodicidade diária (Sanchez de la Fuente, 2022) tida como progressista, com interesse no avanço social e político da sociedade e politicamente neutra.
O genocídio e seu contexto
Localizada logo ao sul da linha do equador, Ruanda é um pequeno país no centro de África densamente povoado: do mesmo tamanho que a Bélgica ou o estado americano do Vermont, tinha, no início da década de 1990, por volta de 7 milhões de habitantes, enquanto a unidade federativa estadunidense possuía uma população de meio milhão de pessoas. Em Ruanda não existe grande diversidade etnolinguística e o país é povoado por três grupos: os tuas, os hutus e os tutsis. Antes dos tempos coloniais, os três grupos inclusive falavam a mesma língua, o Kinyarwanda, e praticavam formas semelhantes de animismo. Somente com a lenta expansão e consolidação do poder estatal, e num complexo processo de agência mútua, as identidades coletivas se desenvolveram.
A concepção de que hutus e tutsis eram etnias e completamente diferentes foi originada e oficializada pela colonização, primeiro pelos alemães e depois pelos belgas. De acordo com David Rawson (2018) no livro “Prelude to genocide: Arusha, Rwanda, and the failure of diplomacy”, foram ignoradas as identidades sociais comuns encontradas na linhagem e no clã, bem como as variações regionais na estrutura social, a administração colonial viu hutus e tutsis como as construções sociais determinantes para identificação pessoal dos ruandeses. A partir de 1933, a divisão étnica foi agregada ao registro civil, à carteira de identidade e ao histórico escolar. Com esta medida, os belgas reforçaram a divisão étnica do país, uma nova ordem que condicionou a história após a independência política da região.
Com a independência da República de Ruanda, 1º de julho de 1962, os setores exploradores e proprietários de terras, e a burguesia burocrática – localizada no sul do país – foram favorecidos durante o governo de Gregoire Kayibanda, entre 1962 e 1972. Neste período, o governo ruandês deu início a uma política discriminatória que ocasionalmente levou a massacres de tutsis. No decorrer da década de 1960, segundo Rawson (2018), ocorreram prisões, massacres e execuções contra os tutsis, deixando um saldo de milhares de mortos e a impunidade para estes crimes étnicos tornou-se um entendimento não escrito no país.
Em 1972, o Coronel Juvenal Habyarimana, então Ministro da Defesa, derrubou Kayibanda após um golpe militar e tomou o poder para se tornar o novo presidente de Ruanda, em 5 de julho de 1973. Ele liderou um governo autoritário semelhante ao anterior, só que agora favorecendo a elite hutu do norte do país, de onde ele próprio era natural: foi feito um grande volume de investimentos agrícolas estatais e provido maior acesso à energia elétrica. A adoção, por referendo, de uma nova constituição em dezembro de 1978 e a eleição de Habyarimana como presidente no mesmo mês completaram a transição para um Estado de partido único (Rawson, 2018). O sistema de partido único garantiu a reeleição do presidente em 1983 e em 1988, quando foi o único candidato e seu governo seria, então, na mentalidade dos hutus do norte, como uma volta a um passado remoto e glorioso, anterior ao domínio da monarquia tutsi e do colonialismo.
Porém, a incapacidade de Habyarimana de resolver as contradições socioeconômicas geradas por seu governo preparou o regresso à mobilização etnopolítica e favoreceu o nascimento de fortes tendências extremistas. Na década de 1990 estourou uma guerra civil entre o governo e a Frente Patriótica Ruandesa (FPR), um grupo de resistência formado por tutsis ruandeses que viviam no exílio. Após diversas conversas e negociações por um acordo de paz, o presidente finalmente assinou o Acordo de Arusha juntamente com o presidente da FPR, Alexis Kanyarengwe, em 5 de agosto de 1993. O termo não pôs fim ao conflito armado e de acordo com Rawson (2018) havia um grande impasse na formação de um governo de transição e de uma assembleia nacional. Em 6 de abril de 1994, o então presidente ruandês Habyarimana, que viajava com o seu homólogo do Burundi, Cyprien Natyamira, teve seu avião derrubado. Segundo alguns analistas, o próprio grupo Poder Hutu, um grupo de linha dura ligado a elite política hutu do norte ruandês, assassinou o presidente.
Para o Poder Hutu, a FPR era um potencial aliado da oposição hutu, ou seja, um vetor contrarrevolucionário, e, por isso, tinha de ser eliminado como uma força política. Na visão do grupo, a derrubada do avião presidencial teria duas simbologias: remover, de uma vez por todas, as esperanças depositadas nas negociações de Arusha e, acusar a FPR de ter abatido o avião, provando a necessidade de eliminação do inimigo tutsi.
O governo recém-estabelecido e a FPR entraram em combate, e o conflito entre as duas partes durou 14 semanas. O avanço imparável da FPR culminou na tomada de Kigali no início de julho de 1994 e a comunidade internacional, em vez de intervir para pôr fim ao conflito, agiu no sentido de evacuar os cidadãos estrangeiros e de diminuir a presença da força de manutenção da paz da ONU. Como aponta Omar Shahabudin McDoom (2021) no livro “The path to genocide in Rwanda: security, opportunity, and authority in an ethnocratic state”, a esta força era composta por 2.700 homens onde apenas 450 capacetes azuis se mantiveram em Ruanda. Nesse período, eclodiram massacres da população tutsi e dos hutus moderados por milícias de extrema-direita, o famoso genocídio de 1994.
O massacre em Ruanda foi notável pela sua velocidade, onde há evidências que sugerem que a maioria das vítimas morreu nas primeiras duas a três semanas do conflito, por sua intensidade, e por, claramente, terem sido priorizados como alvos mulheres e crianças (McDoom, 2021). Estima-se que 3/4 da população tutsi ruandesa tenha sido assassinada e a escala do envolvimento civil também impressiona, pois em praticamente todas as comunidades onde havia tutsis, encontrava-se também hutus e tuas que se mobilizaram contra eles. Segundo McDoom (2021), frequentemente os perpetradores conheciam pessoalmente suas vítimas e a projeção é de que um em cada cinco homens hutus tenha cometido pelo menos um ato de violência durante o genocídio.
De acordo com McDoom (2021), o genocídio foi uma consequência da reação da elite política ruandesa a três fatores de curto e médio prazos: a guerra civil, a mudança para um sistema multipartidário e as negociações de paz. René Lemarchand (1995) no artigo “Rwanda: the rationality of genocide” defende que suas raízes estão na transformação de identidades étnicas que acompanhou o advento do colonialismo e na cadeia de eventos que se desenrolou após a revolução social de 1959-1961.
Imigração ruandesa para a Bélgica
No artigo “La diàspora rwandesa a Bèlgica. Actors polítics en les mobilitzacions populars”, Firmin Dusabe (2018) afirma que Ruanda é um país que historicamente não tem uma tradição de imigração. Isto seria explicado pela estrutura agrária que organiza a sociedade do país: cada família ruandesa possui um pedaço de terra que liga cada indivíduo aos seus avós. As famílias geralmente enterram seus mortos no pátio da casa; portanto, a mentalidade é que, ao viver na terra dos antepassados, as novas gerações permaneçam conectadas com a família.
O ano de 1994 foi um momento divisor nas tendências imigratórias ruandesas: em nenhum outro período na história do país houve um êxodo em massa de ruandeses para o estrangeiro. Durante o genocídio e no final da guerra, com a tomada do poder pela FPR em julho de 1994, muitos fugiram, principalmente para os países vizinhos. Grande parte destas pessoas foi para campos de refugiados no Zaire (atual República Democrática do Congo – RDC), no Burundi e na Tanzânia. Ruandeses foram também para outros países africanos, como Quênia, Gabão, Camarões, Costa do Marfim e Senegal. Como sintetiza Dusabe (2018), o êxodo atingiu nações da América do Norte e Europa Ocidental: Bélgica, França, Países Baixos, Canadá e Estados Unidos.
Os pedidos de asilo de pessoas com nacionalidade ruandesa na Bélgica entre os anos de 1994 e 2010 sofreram um incremento de 68,14% e segundo dados de 2017, mais de 40.000 nacionais de Ruanda moravam na antiga metrópole colonial. Para Dusabe (2018), a comunidade ruandesa vivendo na Bélgica é triplamente dividida: ela é dividida em termos de identidade etno-política, principalmente entre tutsis e hutus; é dividida por origem regional entre os provenientes do norte, que compreende as antigas prefeituras de Gisenyi e Ruhengeri, e os provenientes do sul, que compreende todas as outras prefeituras, especialmente Butare, Cyangugu, Gikongoro, Gitarama e Kigali; e, por último, é dividida entre as elites sociais que detêm os recursos económicos e as demais pessoas.
Os reflexos das divisões da comunidade ruandesa vivendo na Bélgica em seu cotidiano a partir da narrativa do Le Soir
Em 1998, uma reportagem do Le Soir mostrou que conflitos étnicos começavam a transparecer entre toda a comunidade africana vivendo na Bélgica. O país recebeu um grande número de refugiados provenientes de Ruanda que eram pessoas afetadas pelo genocídio ocorrido em 1994. Tutsis, mesmo refugiados na Bélgica, começaram a sofrer ameaças e preconceito explícito de Hutus. O jornal conta o caso de Augustine, Tutsi que, um dia, enquanto tomava cerveja com o marido e amigos no Mantongé[1], foi ameaçada por um Hutu: “De repente, um cara se inclinou para mim e me disse em kinyarwanda: “Você tentou fugir, mas vamos matá-la”. Ele era um hutu. Eu senti como se meu coração parasse de bater. Fiz com que repetisse o que acabara de dizer. Ele acrescentou: ‘Não matamos o suficiente. Pena que a Bélgica a acolheu. Eu o agarrei. Meu marido belga teve que se interpor entre nós”.
Aquela não era a primeira vez que Agostine passava por isso na Bélgica. Na mesma reportagem ela narra uma situação de injúria que sofreu em Anderlecht: “Agostine experimentou ameaças desse tipo em outras duas ocasiões. No mercado do Anderlecht, um casal plantou-se à minha frente. O cara disse: Você viu a tutsi? A mulher respondeu: Ainda existem? Então nunca vamos eliminá-los?”.
Um outro texto do jornal Le Soir, publicado em 2002, mostra que existiam também conflitos entre hutus por motivos políticos, confrontando imigrantes que foram ligados ao Parmehutu e apoiadores da gestão da FPR, que continua até hoje à frente de Ruanda. Narcisse, “um adolescente alto e de olhos gentis” (“un grand adolescent aux yeux doux”) participava de uma festa de casamento organizada por uma personalidade conhecida, próxima do antigo regime, no bairro de Molenbeek, em Bruxelas, quando foi morto de forma “trágica”. Segundo vários testemunhos, enquanto a festa decorria tranquilamente, chegaram dois adolescentes que se dirigiram a um terceiro garoto, que de repente se viu ameaçado pela lâmina de uma faca. Narcisse então correu para ficar na frente deste terceiro rapaz, que era seu primo, e foi violentamente atingido. Um dos dois jovens responsáveis pela facada foi dominado e entregue à polícia.
Os acontecimentos desenrolaram-se tão rapidamente que inicialmente pensou-se que se tratava de uma briga entre jovens. Mais tarde, porém, ao rememorar o curso dos acontecimentos, a família passou a acreditar que talvez tenha sido um ato premeditado, já que um dos pais de Narcisse pertenceu ao Parmehutu e teria ligações com a Aliança Igihango, que reunia vários grupos opositores, hutu e tutsis, do governo de Kigali.
Para Colette Braeckman, autora da reportagem, crianças e adolescentes refugiados ruandeses vivem um “drama”: eles estiveram envolvidos na violência do genocídio de 1994, sofreram com o trauma do êxodo e da vida nos campos de refugiados do Kivu[2]; agora, na Europa, alguns começavam a frequentar “gangues” de jovens africanos que operavam perto do Matongé.
Sobre os autores
Felipe Antonio Honorato é Doutorando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (USP). É membro do corpo editorial da “Encuentro Latinoamericano: Revista de Ciencia Politica” e do Berkeley Journal of Sociology, e faz parte do “Makasi: Centro de Estudos da África Centro-Ocidental e da região dos Grandes Lagos”.
Guilherme Silva Pires de Freitas é Doutor em Mudança Social e Participação Política e mestre em Estudos Culturais ambos pela Universidade de São Paulo.
Referências bibliográficas
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BRAECKMAN, Colette. Molenbeek Le jeune Rwandais enterré aujourd’hui Narcisse: émotion et questions. Le Soir, 2002. Disponível em: https://www.lesoir.be/art/d-20020927-W2KY8N.
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[1] Matongé é a vizinhança de Bruxelas conhecida como “bairro negro” ou “bairro africano” da cidade. Ali, estabeleceu-se um ponto de encontro de imigrantes da África subsaariana, especialmente imigrantes provenientes da República Democrática do Congo (RDC).
[2] Kivu é uma região no leste da República Democrática do Congo que faz fronteira com Ruanda e tem fortes ligações não só com este país, mas também com o Burundi. Lá, principalmente no entorno das cidades de Goma e Bukavu, formaram-se os principais campos de refugiados ruandeses após o genocídio de 1994.