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quinta-feira, novembro 21, 2024

Os velhos também se despedem: os idosos diante da migração venezuelana

O êxodo empreendido pelos jovens venezuelanos propagou-se de forma preocupante até para nós, idosos

Por Raúl Siccalona

O apartamento onde moro é como a Ilha Margarita na Venezuela. Minúsculo, onde o maior país está representado com suas instabilidades e esperanças. Quarenta metros quadrados que servem como biópsia da realidade ou fragmento representativo da vida lá fora.

Por muito tempo, a emigração de jovens venezuelanos marcou a vida daquela terra que amamos e onde com muito esforço conseguimos um ninho de concreto há mais de 20 anos, ansiosos por fornecer um teto para nossos filhos. Agora, transformados em homens, eles não moram na Venezuela. O êxodo por eles empreendido propagou-se de forma preocupante até para nós, idosos.

Entre encontros no Zoom ou Instagram, visitas de vez em quando e saudades,  tentamos superar a separação e a dor da ausência de nossos familiares. Quando disse ao  meu amigo mais próximo “Vou embora”, confirmei a frase com um sorriso de orelha a orelha. Ele me ouviu, e zombeteiramente retrucou: “Você está louco! Por que você vai se o que sobrou são dois jornais?”, aludindo à possível brevidade da existência que tenho pela frente.

Nem baixinho nem preguiçoso, respondi: “Sim, é verdade que faltam dois jornais, mas quero que sejam em português”. Com uma pensão de apenas 15 reais por mês, um prédio que a cada dia mostra a passagem do tempo e a falta de recursos para consertá-lo, decidi que meus cabelos grisalhos, deficiências ou idade não iam me impedir de migrar.

O que nos faz escolher nos instalar no Brasil apesar da idade, da saúde e do desenraizamento? Sentimos também a falta de oportunidades, as dificuldades do dia a dia e – o que é mais significativo – acabamos por concluir que o projeto social que demos aos jovens nos decepcionou e nos abandonou.

“Só quero uma velhice tranquila, sem ter que ficar na fila o tempo todo”, explicou Elvira, minha esposa. Para ela, seu país é sinônimo de escassez, dificuldade de conseguir alimentos, “disputas” para conseguir batatas e lutas contra quem quer entrar na fila antes dela para comprar ovos. O apartamento que compramos com luta própria para alegria das crianças, agora, tem água racionada e serviço de luz intermitente. “Juntar as duas pensões não é o suficiente”, detalha.

O panorama mudou ao ultrapassarmos , não sem medo, o trecho que separa a Venezuela do Brasil. Não entendíamos o que nos diziam, mas o sorriso do soldado que me ajudou a entrar no posto da PF fez-me pensar no futuro, embora tenha a certeza de que faltam apenas dois jornais.

Naquela mesma tarde, recomeçamos a viagem e o crepúsculo nos surpreendeu com uma placa que dizia: “Bem-vindos à Boa Vista”. Foi uma premonição. No dia seguinte, pegamos um longo voo para São Paulo. Há dois anos e meio, Sampa abriu os braços para nos receber e dizer: “Vocês não estão sozinhos”.

Tem sido uma época de altos e baixos, com o apreço e a proteção de gente muito bonita, a solidariedade de muitos, os preconceitos e a xenofobia de uns poucos e a vontade de viver mesmo que sejam dois jornais, mas ainda quero que sejam em português. Estamos reinventando nossas vidas, contando histórias para quem quer nos ouvir e dando otimismo para quem nos segue. Aprendemos coisas novas e ensinamos coisas muito antigas.

Lembramos que um dia fizemos as malas naquela maravilhosa Ilha de Margarita… porque mesmo que seja para procurar novos jornais, os velhos também se despedem.

Sobre o autor

Raúl Siccalona, 75, é jornalista, diretor de teatro e cinema, refugiado venezuelano no Brasil


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