A chamada migração qualificada é um movimento já conhecido, mas que tem crescido especialmente após a pandemia de Covid-19 graças aos estímulos econômicos promovidos para conter o recesso global. É o que aponta o Relatório Global de Tendências Migratórias elaborado pela Fragomen, uma empresa especializada na área de mobilidade internacional de pessoas físicas e empresas.
Em geral, trata-se de transferir mão de obra considerada de alto padrão dos países do sul global para o norte global. Um deslocamento impulsionado especialmente pela escassez de trabalhadores e pelo envelhecimento da população nos países ricos. Nos últimos anos, muitos governos têm criado vistos específicos para atrair trabalhadores qualificados ou facilitado a emissão da documentação.
Em maio do ano passado, por exemplo, o Reino Unido, estabeleceu o visto “high potential individual” (em tradução livre, “indivíduos de alto potencial”), que permite a profissionais graduados em universidades de elite solicitarem uma permissão para morar e trabalhar nos países do bloco, sem que haja necessariamente uma oferta de emprego de uma empresa do Reino Unido.
Nessa mesma linha, em agosto Portugal aprovou uma lei que prevê novas autorizações de trabalho para migrantes nascidos na Comunidades dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), o que inclui o Brasil. Esse novo visto permite a entrada e residência de profissionais em busca de emprego por 120 dias, com possibilidade de prorrogação de mais 60 dias. Além disso, desde 2018, Portugal instituiu o Tech Visa, programa que prevê a concessão de vistos para trabalhadores das áreas técnicas e de tecnologia.
A França também oferece essas facilidades com o objetivo de atrair startups e empreendedores. Já a Alemanha anunciou em setembro passado que, em breve, irá disponibilizar um novo visto baseado em um sistema de pontos, o que permitirá ao requerente aplicar para a documentação sem ter que sair do país europeu.
Jóice Domeniconi, pesquisadora do Observatório das Migrações em São Paulo – NEPO/UNICAMP, explica que trata-se de uma [re]construção de aparatos jurídicos para atender as demandas de um mercado de trabalho cada vez mais globalizado.
“Muitas dessas legislações já continham critérios para a seleção de grupos considerados ‘desejáveis’ em um outro momento histórico e político. Não seria, portanto, uma condição mais fácil de migrar para os países do Norte Global, mas mais seletiva, à medida que os países impõem condicionantes que atendam às suas ‘necessidades’ de mão de obra no contexto atual”.
Mas a especialista pondera. “A maior parte desses vistos não avança de fato na compreensão dos desafios impostos às migrações no século XXI, particularmente em torno do trabalho qualificado migrante advindo do Sul Global e das barreiras enfrentadas por aqueles que não dispõem de canais mais diretos de mobilidade internacional ou do capital econômico, social e político necessários”.
Nômades digitais
Muitos países que vêm realizando essas adaptações estão de olho especialmente na tendência do trabalho remoto e querem atrair os chamados “nômades digitais”. Segundo Diana Quintas, sócia da Fragomen no Brasil, já são pelo menos 36 países aceitando esses trabalhadores migrantes temporários, incluindo o Brasil. A lista tende a aumentar nos próximos meses.
“Os vistos para nômades digitais continuam a ser criados e um dos grandes motivos é o estímulo às economias locais, mas o que deve se consolidar após a retomada econômica é o estímulo à diversidade e o intercâmbio de conhecimentos”, explica.
É o caso da Espanha, que acaba de aprovar um programa para atrair trabalhadores nômades internacionais. Essa categoria faz parte de uma lei ratificada em dezembro que permite que migrantes que trabalham remotamente vivam no país sem a necessidade de um visto de trabalho comum.
Os Estados Unidos não fogem à tendência. Para facilitar a entrada de turistas e trabalhadores temporários, o Departamento de Estado norte-americano anunciou recentemente que irá simplificar o processo de concessão de visto para algumas categorias, como vistos de estudo e intercâmbio e aqueles focados em trabalho sazonal. Nesses casos, não haverá mais a exigência de entrevista. Além disso, todos aqueles cujos vistos venceram nos últimos 48 meses também estão dispensados de realizar a entrevista.
Precarização do trabalho
Jóice Domeniconi alerta, no entanto, para o fato de que estas mudanças dialogam diretamente com os processos de precarização do trabalho, uma vez que essa crescente valorização do trabalhador autônomo é acompanhada pela flexibilização das proteções trabalhistas, pela desestruturação da seguridade social e previdenciária e pelas falhas nas garantias presentes nos contratos formais de trabalho.
“É necessário avaliar criticamente a categoria do trabalho remoto ou nômade desses profissionais, à medida que questões trabalhistas, previdenciárias, fiscais e de saúde no trabalho passarão a fazer parte do debate e muitas vezes seus ônus ficarão a cargo do trabalhador e dependerão de acordos bi e multilaterais estabelecidos entre os distintos países de contratação, residência e origem e do direito internacional, incorrendo, no final, em uma grave perda de direitos possivelmente já estabelecidos”, afirma a pesquisadora.