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domingo, dezembro 22, 2024

Políticas duras e pressão familiar tornam migrante vulnerável a coiotes nas rotas europeias

Estudo feito ao longo de quatro anos pelo ICMPD traça cenário de tráfico humano nas rotas dos Bálcãs e do Mediterrâneo

Por Victória Brotto
Em Estrasburgo (França)

Ser resiliente ou vulnerável ao tráfico humano depende de fatores internos e externos ao migrante, como fé, família, políticas migratórias e características pessoais como adaptabilidade e resistência física.

Quanto mais duras as políticas migratórias do país pelo qual o migrante passa ou quer chegar, ou quanto maiores as expectativas familiares e/ou maiores os traumas sofridos, mais a pessoa que migra estará vulnerável a ser traficada ao longo da rota.

É o que mostra o estudo inédito ”Força para Continuar: resiliência e vulnerabilidade ao tráfico e outros abusos entre migrantes nas rotas de migração para a Europa”, do ICMPD (sigla em inglês para Centro Internacional para o Desenvolvimento de Políticas Migratórias) sobre vulnerabilidades e resiliência de migrantes nas rotas dos Balcãs e mediterrânea na Europa.

Clique aqui para baixar o estudo (em inglês)

Foram 91 migrantes – potenciais requerentes de asilo – e 245 informantes in loco entrevistados ao longo de quatro anos (2015-2018), trazendo informações inéditas sobre o cenário migratório, o perfil do tráfico humano e dos migrantes nas duas rotas europeias.

O objetivo do estudo é mostrar o que torna ou não um migrante vulnerável à ação dos contrabandistas e dar instrumentos e informações para que governos, ONGs e a comunidade internacional possam agir.

”De acordo com o paradigma de segurança do ser humano (elaborado pela Unidade de Segurança da ONU em 2009), a resiliência ao tráfico deve ser construída em dois fronts interligados: protegendo pessoas de ameaças
–o que é normalmente papel do Estado, da comunidade internacional e das ONGs – e o empoderamento de pessoas para que desenvolvam capacidades e habilidades próprias para se protegerem”, defende a pesquisa. ”Promover tais interações é relevante tanto de cima para baixo (Estados- ONGs -indivíduo) quanto de baixo para cima (indivíduo-ONGs – Estado).”

In loco, os pesquisadores detectaram problemas, como a falta de informação precisa e a não familiaridade com a ideia de promoção da resiliência por parte do staff humanitário e público. ”A maioria dos atores não havia nem considerado que promover a resiliência faz parte do combate ao tráfico humano e de outros abusos.”

A pesquisa mostra também que no momento em que a União Europeia e a região dos Bálcãs fecharam suas fronteiras, o tráfico de pessoas aumentou, fazendo dos coiotes verdadeiras mulheres e homens de negócios.

Tratados como os feitos com a Turquia, reforçando a segurança nas fronteiras e instaurando o retorno de migrantes afim de combater o tráfico humano, tiveram, na verdade, o efeito contrário.

A área de atuação dos coiotes expandiu, bem como a expertise dos contrabandistas nos Bálcãs e no Mediterrâneo se tornou muito mais refinada, levando mulheres, homens e criança, sob condições de extremo risco, a países como Itália, Grécia, Alemanha, Suécia, França, Finlândia e outros.

Resistência e vulnerabilidade

Um migrante pode se tornar mais resiliente ou menos ao tráfico humano ao longo da rota migratória. E isso dependerá de fatores externos e internos a ele, como características pessoais (fé, força mental e física, adaptabilidade), nível de educação, situação financeira e políticas migratórias dos países de trânsito e de destino.

”Se tornar menos resiliente ou mais dependerá do estatuto legal conferido ao migrante, das mudanças nas políticas migratórias ao longo da rota, da interação com migrantes-coiotes, do grupo com o qual o migrante viaja , bem como da situação financeira”, afirma o estudo, que diz ainda que a própria viagem pelas rotas dos Balcãs e do Mediterrâneo já torna o migrante vulnerável.

”O elemento-chave para se proteger dos coiotes é evitar essas rotas, fazendo o máximo para tomar caminhos legais, como pegar voos em vez de embarcações para cruzar mares.”

Porém, o próprio estudo mostra que, desde março de 2016, com o tratado entre UE e Turquia, com o fechamento dos portos na Itália e das fronteiras da França, Áustria, Suíça com a Itália, há cada vez menos caminhos legais a serem tomados.

Fatores de resistência

A pesquisa citou ainda quatro categorias do que chamou de “fatores de resistência”, que protegerão o migrante do tráfico: individual, grupo, sócio-econômico e estrutural.

Na categoria individual, estão elementos como força, auto-suficiência, perspicácia e flexibilidade. ”(Perspicácia por exemplo) é a capacidade de intuição, comunicação, educação ou inteligência que permite a pessoa detectar perigo e oportunidades.”

Na categoria grupo, exemplos de elementos que protegem a pessoa do tráfico são interdependência, difusão e diversidade.

”Ter pessoas dentro do grupo (família, comunidade, cooperação informal) que estão interconectadas e cooperam entre si (interdependência), ter a capacidade de transmitir ou disseminar avisos, informação confiável ou recursos dentro do grupo (difusão) e ter um grupo com membros com características e capacidades diversas que facilitam a adaptação a diferentes situações, necessidades e oportunidades (diversidade).”

Na categoria sócio-econômica estão segurança financeira, segurança pessoal e de saúde. Por fim, na categoria estrutural, estão sistemas de suporte, sistema legal e político de proteção e sistemas que não tolerem nenhum tipo de abuso ou de discriminação.

”Leis, políticas de prevenção do crime e sistemas de suporte que permitam que uma pessoa atenda suas necessidades básicas, bem como possibilidades de encontrar proteção e recursos sem precisar do trabalho de coiotes nem precisar se envolver no crime”, elenca a pesquisa como sistemas ideais promotores da resistência.

Entre os fatores principais de vulnerabilidade estão expectativas familiares, traumas, ser uma criança desacompanhada ou mulher, além de políticas restritivas nas fronteiras dos países da rota e baixo nível de educação e de recursos financeiros.

O estudo mostra ainda que a interação entre fatores de vulnerabilidade e resiliência interagem entre si de maneira cíclica, complexa e mutável ao longo do tempo.

”Foi constatado que a interação entre os fatores de vulnerabilidade e de resiliência é dinâmica ao longo do tempo e do percurso; afeta diferentes pessoas de diferentes maneiras (o que é resistência para uns mostra-se vulnerabilidade para outros); e tais interações são cumulativas (são determinadas pela combinação de diferentes fatores)”, diz o estudo.

Política migratória e tráfico humano

O levantamento do ICMPD mostra que o tráfico humano cresceu quando a União Europeia, bem como os países dos Bálcãs, adotaram medidas de fronteiras fechadas e de retorno de migrantes.

Os migrantes conseguiam se locomover com facilidade pela rota dos Balcás, por exemplo, antes de 2015. Isso porque a região no sudeste europeu tinha ”fronteiras abertas” e estava alinhada com as políticas de imigração europeias anteriores da época. O que não dava espaço – nem razão – para o trabalho de coiotes.

”Uma vez na Grécia, as pessoas iam a pé ou usavam variadas formas de transporte público ou privado até a fronteira com o norte da Macedônia. Normalmente, elas viajavam sem precisar dos serviços de coiotes, ao menos que fossem presas e mandadas de volta para a Grécia, aí então elas tentavam novamente mas agora com a assistência de um contrabandista”, afirmou uma fonte in loco nomeada MK-K01.

”Mas, aos poucos, quando as políticas e os critérios de admissibilidade nos países começaram a se tornar mais restritivas no final de 2015, os fluxos nas sub-rotas migratórias começaram a mudar”, explicam os pesquisadores.

O acordo entre UE e Turquia de controle de fronteira e de combate ao tráfico humano (março/2016), o fechamento das fronteiras alemãs (agosto/2015) a nova política de lista de países seguros aprovada pelo Parlamento Europeu (setembro/2015), assim como o arame farpado de 200 km ao longo da fronteira húngara com Sérvia e Croácia e a criação de zonas-limbos de acomodação de migrantes na Sérvia e na Croácia fizeram com que o trabalho de coiotes aumentassem – em lucro e em conexões.

Agora, os contrabandistas se tornariam profissionais vendendo pacotes de viagem para pessoas antes mesmo delas saírem de seus países.

Acampamentos improvisados além da cerca de arame farpado, vistos do lado húngaro da fronteira com a Sérvia. Crédito: Bruna Kadletz – out.2016

”A viagem era organizada e paga de diferentes maneiras de acordo com o quando, onde e de como a pessoa poderia pagá-la. O que impressiona é que, em alguns casos, a viagem inteira foi planejada no país de origem e em outros e diversos coiotes entravam em ação em diferentes pontos da rota”, afirmou um dos informantes.

O estudo divulgou ainda o relato de um migrante sobre como as novas fronteiras fechadas na Sérvia e Hungria (países de trânsito) e na Alemanha (país-destino) fizeram com que a Bulgária se tornasse o novo país-trânsito da rota. E com isso, a rede de tráfico humano búlgara, que antes trabalhava com prostituição, se voltou para o rentável negócio de traficar migrantes.

”A rede de contrabando envolvia homens, a maioria fluente em árabe e vindos da Síria e Iraque e que operavam em todo o país, facilitando inclusive a saída da Bulgária. Muitos operavam no bairro Lion’s Bridge , com encontros regulares em um café local”, informou um migrante sírio de 28 anos não-identificado.

”Ele afirmou ainda que os coiotes estavam ligados com a rede de prostituição búlgara e com criminosos na Turquia”, acrescentam os pesquisadores.

Na Sérvia, no período de intenso fluxo (março a dezembro/2015), chegou-se a vender lugares na lista de espera para atravessar a fronteira com a Hungria. É o que conta um jovem de 18 anos, ex-morador dos contêineres de metal instalados por sérvios e húngaros para alojar os requerentes de asilo que queriam chegar à Alemanha.

”Eu vivi nove meses em Adaševci [centro de acomodação na Sérvia, perto da fronteira com a Croácia]. Havia uma lista de nomes, e, de acordo com essa lista, as pessoas poderia entrar na Hungria. Não somente pessoas do meu campo, mas de outros também, tinham seus nomes colocados na lista e esse lugar estava à venda. Se você pagasse 10 mil euros, você conseguia ir para o topo da lista.”

Países-chave nas rotas balcânica e mediterrânea

De acordo com a pesquisa, na rota dos Bálcãs, Turquia, Grécia e Sérvia são três países-chave para entender o contexto local.

A rota balcânica, diz o estudo, é uma histórica rota de migração, desde a intervenção dos soviéticos na Hungria (1956), com 200 mil refugiados em fuga, até a dissolução da antiga Iugoslávia nos anos 1990. ”Mas a cobertura midiática insiste em dizer que o fluxo migratório na região é inédito”, diz o estudo.

Da Turquia, pega-se um barco ou para as ilhas gregas, através do mar Ageu, ou para lado continental da Grécia ou Bulgária, através do rio Evros. A Grécia, no período 2015-2017, foi o país mais importante de chegada, com maior numero de migrantes chegando em seu território.

A Sérvia, desde 2016, quando a política de não retorno de Dublin foi instaurada, virou ponto ‘limbo’ dos migrantes e, consequentemente, de encontro com coiotes. Comparada com os outros países de trânsito, como Bulgária, Macedônia e Hungria, a Sérvia teve quase 30% a mais de migrantes passando por ela no período 2015-2018: 691.950 pessoas.

”Viajando através desses pontos centrais de encontro, tem-se a oportunidade de contratar serviços especializados. Com isso, os migrantes são capazes de conseguir informações relevantes sobre as melhores rotas e os melhores serviços e, com isso, decidir o que fazer em seguida”, afirmou um dos entrevistados, intitulado Bilger.

Da Sérvia, a maioria dos migrantes entram novamente na UE (pós-Itália ou Grécia). E agora partem para a Hungria, passando pela Croácia e Eslovênia. Da Hungria, a maioria vai para a Áustria, Alemanha, Suécia e outros países da Europa Ocidental.

No período de 2015 a 2018, o estudo mostra que 497 mil pessoas chegaram à Eslovênia, usando o trecho Sérvia-Croácia da rota dos Bálcãs, para chegar à Alemanha.

Na rota do Mediterrâneo, a Itália tem sido por décadas o principal país de trânsito e de destino de migrantes. Desde 2015, meio milhão de pessoas chegaram em território italiano oriundos de países como Nigéria, Senegal, Gâmbia, Mali, Gana, Somália, Sudão e Eritreia.

Itália e Líbia têm papel fundamental no fluxo de migrantes na rota do Mediterrâneo.

As diferentes rotas passam pela Líbia, outro país-chave da rota. ”A Líbia é um país que tem vivido crises políticas, instabilidade, conflito e ausência de regras e leis desde 2011”, diz o estudo.

É da Líbia que as pessoas pegam barcos até os portos nas ilhas das italianas, como Sicília e Lampedusa. De lá, ou eles ficam na Itália ou tentam chegar até França, Alemanha, Áustria e Suíça.

Mas migrar até a Itália se tornou mais difícil com o acordo feito entre Itália e Líbia em fevereiro de 2017, que reforçou a segurança nas fronteiras.

“Em 2017, os perfis mudaram, por exemplo, muito menos eritreus e somalis chegaram à Itália e quase nenhum sírio. Sírios não chegam mais pela rota Mediterrânica via mar, eles preferem a rota dos Bálcãs. Eritreus, por outro lado, estão bloqueados na Líbia: nós sabemos que eles ainda estão fugindo da Eritreia e alguns chegam na Itália, mas a maioria deles estão aparentemente parados no meio do caminho. Provavelmente viraram vitimas do tráfico lá”, conta um membro da Cruz Vermelha italiana.

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