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sexta-feira, outubro 4, 2024

Por uma reconstrução criativa da política brasileira de refúgio

Em artigo, pesquisador e especialista vê o Conare atualmente como um organismo utilitário e de controle migratório. E aponta quatro elementos que o futuro governo deveria seguir para uma reconstrução criativa da política de refúgio no Brasil

*aos queridos Iusuf, Juan, Victor e todos os refugiados ou solicitantes de refúgio que fugiram do Brasil temendo serem extraditados a seus países de origem

Por Charles Pontes Gomes

A vitória nas eleições do presidente Lula traz consigo o peso de seu compromisso eleitoral em promover o fortalecimento e crescimento das instituições do Estado e suas respectivas políticas públicas cujo processo de deterioração foi iniciado na gestão Temer e acelerado pelo governo Bolsonaro com algumas instituições já se encontrando em estado avançado de decomposição sobretudo as vinculadas a área da Cultura. Instituições inseridas em exuberantes estruturas arquitetônicas onde pulsava de maneira intensa diversas formas de cultura e conhecimento se transformaram em esqueletos de concreto sem vida onde vagam servidores públicos incapazes de exercer seu trabalho por uma política explicita de sufocamento via redução de verbas e assédio ao corpo funcional. A política do Refúgio e sua instituição, o CONARE (Comitê Nacional para Refugiados), não é exceção à regra da destruição bolsonarista cuja lógica, nesse caso, não foi dificultar o trabalho de seus funcionários, mas sim impossibilitar ao máximo que seu público-alvo, os refugiados, pudessem beneficiar dos direitos a proteção que supostamente o CONARE deve promover e garantir de maneira plena através de políticas de implementação eficazes e capazes de abranger todo território nacional como definido pela lei do Refúgio criada em 1997 durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

Os diversos danos causados pelos dirigentes do CONARE ao instituo do Refúgio comprometeram a seriedade e a solidez desse direito e sua proteção em todo o território nacional. Desde a saída forçada da equipe da presidente Dilma Rousseff na gestão da Secretaria de Justiça a qual fica submetida o CONARE e início da gestão Michel Temer, nota-se claramente o câmbio de paradigmas na política do refúgio, ocorrido de maneira progressiva até ficar escancarado durante a gestão Bolsonaro. A política de refúgio deixa de ter uma diretiva exclusivamente de direitos humanos com objetivo único e primordial a garantia da proteção do direito ao refúgio como prevê a lei 9474 e passa pouco a pouco a ser uma política de gestão de fluxo populacional sob uma lógica utilitária securitária com a primazia em garantir não direitos, mas sobretudo eficiência no controle social dessa população estrangeira. Já em meados do governo Temer, o secretário de Justiça deixa de ser um represente do meio jurídico e passa a ser um policial federal, o departamento de Migração fica completamente sob domínio de policiais federais. A primazia da polícia federal nas migrações consolida o prisma securitário no trato das políticas de refúgio e migração. A lógica utilitária visando eficiência e não garantia do devido processo administrativo aos solicitantes de refúgio passa a ser regra e vai pouco a pouco virando resoluções do CONARE em clara violação à lei do refúgio e aos direitos do solicitante de refúgio. As estratégias de engenharia social para melhor controlar e fluxo populacional de maneira eficiente com resoluções mágicas foram pouco a pouco evidenciando a política utilitária do órgão:

1 – transformar o refugiado em migrante temporário – Advogados de refugiados e solicitantes de refúgio do CEPREMI (Centro de Proteção para Refugiados e Migrantes Internacionais) começam a denunciar as políticas de refúgio criadas por resoluções do CONARE elaboradas com o objetivo de reduzir o passivo de solicitações de refúgio que eram cada vez mais alto e superava em muito a capacidade de análise do pequeno efetivo de funcionários do órgão que determinavam a condição ou não de refugiado do solicitante. Os exemplos de gestão de fluxo populacional abundam, cria-se em 2018 por exemplo uma resolução possibilitando o solicitante de refúgio também solicitar uma residência migratória temporária e depois cria-se uma resolução dizendo que os solicitantes de refúgio que adquiriram a residência temporária perderiam automaticamente seu pedido de solicitação de refúgio. Em vez de aumentar o efetivo de agentes de refúgio para lidar com o grande aumento de solicitações, a direção do CONARE prefere lhes negar o direito do refúgio e oferecer a residência temporária como alternativa.

2 – Fazer análise por pais de origem negando de maneira coletiva as solicitações de refúgio – Para diminuir o passivo de solicitações de refúgio em espera, outra ‘iluminada’ decisão da direção CONARE foi passar a negar de maneira coletiva o refúgio por nacionalidade. Dessa vez por portaria interministerial em 2021, a direção do CONARE com apoio dos outros ministérios concede autorização de residência temporária para milhares de senegaleses que tinham processos de solicitação de refúgio pendentes de análise. Claro, uma vez solicitada a residência temporária, perdiam a possiblidade de mante sua solicitação de refúgio Essa portaria interministerial, uma norma infralegal, é uma violação explícita do direito do refugiado de ter sua solicitação analisada e deferida (ou não) de maneira individualizada e não coletiva, um compromisso assumido pelo Brasil ao assinar a Convenção de Genebra de 1951 sobre o estatuto do Refugiado.

3 – retardar ao máximo o processo de solicitação buscando que o solicitante de refúgio se regularize como migrante por contrato de trabalho ou por filiação  A política de demora de anos, muitas vezes mais de cinco anos,  para os oficiais de elegibilidade do CONARE analisarem/entrevistarem e deferirem a condição de refúgio levou muitos dos solicitantes cujos filhos nasceram no território nacional a se regularizarem com status de residência por ser pai ou mãe de filhos brasileiros. Outros por já terem um contrato de trabalho se regularizam como migrante temporário graças a nova lei de migração de 2017. Casos de regularização por via laboral ou filiação abundam em clínicas jurídicas que assessoram juridicamente de maneira gratuita solicitantes de refúgio de baixa renda. Os advogados do CEPREMI testemunharam vários de seus assistidos, sobretudo congoleses, acabarem desistindo de suas solicitações de refúgio optando pela residência temporária devido à demora do tramite no Ministério da Justiça de suas solicitações.

4 – Juízo de admissibilidade. A prova de tamanha desfaçatez em desprezar a dimensão jurídica do instituto do refúgio não se resume a pareceres, resoluções e portarias, mas também a fala dos dirigentes das políticas de migração e refúgio. Em palestra na FGV do Rio de Janeiro em 2019, o diretor do departamento de migrações do MJ, hierarquicamente acima do CONARE, afirma ser o ‘juízo de admissibilidade’ uma boa solução para evitar o aumento de solicitações de refúgio. Tal juízo consiste em o agente da PF de fronteira decidir numa entrevista rapidinha e sozinho se concede ou não os formulários de solicitação de refúgio ao possível refugiado ou se recusa a sua entrada no território e o faz retornar ao seu país de origem numa clara e escancarada violação ao princípio da “não devolução” (non-refoulement) e ao devido processo de solicitação de refúgio do ordenamento jurídico brasileiro. Há uma série de indícios que sinalizam que uma política entre quatro paredes como essa vem ocorrendo quando o estrangeiro tenta solicitar o refúgio nos guichês de migração da polícia federal nos portos de entrada do país, sobretudo aeroportos. Em 2019, por exemplo, um cidadão turco retido no aeroporto internacional do Rio de Janeiro acionou a Defensoria Pública Federal dizendo que o policial afirmava que ele não tinha razão a temer por sua vida nem estaria sendo perseguido por razões políticas pois a Turquia é uma democracia e todos podem se manifestar politicamente. Felizmente nesse caso a DPU conseguiu interferir e impedir que a PF violasse a lei do Refúgio e autorizasse o cidadão turco a entrar no país para acessar os procedimentos legais a fim de obter sua condição de refugiado.

A política do CONARE que mais abala a integridade do instituto do refúgio no país veio com uma série de ações que recusavam a condição de refúgio ao solicitante ou mesmo retirava o status de refugiado de quem já o tinha obtido sem fundamentos jurídicos convincentes e persuasivos, permitindo assim sua extradição ao país de origem caso o governo do refugiado o solicitasse. Esses casos acabaram expondo a fragilidade, vulnerabilidade e total falta de autonomia do CONARE e sua submissão completa aos interesses políticos do governo. Essas medidas destruíram a seriedade do Brasil como pais de refúgio, abalando seus compromissos internacionais na defesa dos direitos humanos e fez o instituto do refúgio perder sua natureza jurídica, transformando-o em uma escolha política ao bel prazer das negociações da política externa do Brasil. Os refugiados ou solicitantes de refúgio passam a ser moeda de troca da qual o governo Bolsonaro tentava tirar proveito em suas relações com os governantes dos países de origem dos refugiados indiferente se esses aí tinham ou continuavam tendo seu direito a vida ameaçado. O caso do italiano Battisti foi o mais mediático e a decisão vem logo da entrada do governo Temer. Já no governo Bolsonaro, ocorre o caso de três paraguaios que tem a sua condição de refugiado revogada em junho de 2019 por decisão do CONARE. Os argumentos apresentados por seu coordenador eram fracos juridicamente, basicamente alegando que as condições do Paraguai já não eram mais a mesma de quando lhes foi deferida a condição de refúgio pois agora o país já vivia uma democracia plena e não existia mais perseguições políticas. Ora, impossível maior desfaçatez pois os algozes dos refugiados paraguaios simplesmente acabavam de retornar ao poder e governar o Paraguai, sendo eles, os demandantes da extradição dos três refugiados. Igualmente o ministro na época, senhor Moro desqualificou os refugiados, os considerando criminosos comuns e não perseguidos. Afirmações que simplesmente ignorava, desmoralizava e humilhava o CONARE como instituição e o trabalho dos oficiais do refúgio que aceitaram as evidências e testemunhos do fundando temor de perseguição política que os paraguaios tinham apresentado quando lhes foi concedido o refúgio em 2014.

O uso dos refugiados e dos residentes estrangeiros como objeto de trocas políticas vem de maneira mais alarmante com um caso de extradição em 2019. Ali é um cidadão turco já naturalizado brasileiro que pertence ao movimento Hizmet, grupo político antes aliados a Erdogan e atualmente oposição. Ele chegou a ser preso preventivamente e teve seu pedido de extradição feito pelo governo da Turquia autorizado pelo ministro Moro no início de 2019. A saga de Ali só foi se resolver com uma decisão da segunda turma STF em agosto do mesmo ano. A demora nos pedidos refúgio dos turcos e a prisão de Ali acabou provocando uma debandada massiva do Brasil de um número grande de solicitantes de refúgio turcos para outros países, sobretudo Canadá onde o índice de aprovação para perseguidos políticos do governo de Erdogan é de praticamente 100%.

A gota d’água que faz transbordar o vaso do abuso de poder do governo em relação aos direitos dos refugiados veio com a portaria da COVID elaborada por dirigentes do CONARE e outros ministérios estabelecendo que solicitantes de refúgio que fogem de seu lugar de residência por ter sua vida em risco mesmo que estejam na fronteira do Brasil não poderão entrar e serão obrigados a retornar ao seu país onde sua vida está ameaçada. Sabendo-se que a condição do refúgio implica numa luta pela sobrevivência, a busca de um país que lhe possa assegurar o direito à vida, poderia um grupo de gestores com cargos de nomeação política ter a ousadia e a sensação de impunidade em elaborar uma norma infralegal em forma de portaria desrespeitando a lei do refúgio por questões de segurança sanitária nacional? Não poderiam ter criado locais de quarentena para os solicitantes de refúgio?  Certamente teria sido a decisão mais correta e mais pragmática sabendo-se que portarias não irão impedir entradas irregulares. O dilema da pandemia não precisava implicar na violação do direito a “não devolução” de todo solicitante de refúgio ao seu país de origem. A realidade dessa situação acabou sendo que não só refugiados, mas milhares de migrantes acabaram entrado no país e hoje se encontram em situação irregular devido as medidas extremadas de fechamento de fronteiras.

Desafios

Durantes todos esses anos, com um governo que de maneira repetida desrespeitava o direito do refugiado e solicitante de refúgio, as defensorias públicas federais e as clínicas jurídicas de atendimento gratuito a população migrante recorreram à justiça para exercer o contrapeso dessas derivas autoritárias da direção do CONARE e do governo. Muitas das ações foram vitoriosas, outras não, mas todas foram ações individuais que não implicaram na suspensão de resoluções portaria, tão pouco as ações coletivas foram de grande êxito e capazes de derrubar por completo portarias ou resoluções apesar de essas claramente desrespeitarem a condição jurídica do refugiado, violar a lei do refúgio e tornar facilmente intercambiável a condição de migrante com a de refugiado. Diante desse cenário de grande vulnerabilidade dessa população, o novo governo do presidente Lula depara-se com grandes desafios.

O primeiro grande desafio para uma reconstrução da política de refúgio do governo Lula já está colocado: diante da precariedade jurídica de não ter documentos e todas implicações nefastas que isso implica na inserção social dessa população, o primeiro passo deve ser promover uma Anistia possibilitando a regularização e a documentação de milhares de solicitantes de refúgio que entraram no país durante a pandemia e de milhares de migrantes que por diversas razões aqui também necessitavam se encontrar e não viram outra possibilidade de ingressar ao país sem ser a via irregular.

O segundo seria a criação da Agência Nacional da Migração e do Refúgio com um corpo de funcionários comprometidos em garantir direitos e não ter uma visão securitária e utilitarista em relação aos migrantes e refugiados como vem sendo o padrão atual de gerenciamento dado pela polícia federal, ainda hoje a instituição encarregada de receber as solicitações de refúgio e regularizações migratórias. O filtro de segurança é necessário para todo solicitante de refúgio e migrante, mas as leis da Migração e do Refúgio foram feitas para conceder direitos a essa população e não os punir. Elas foram criadas depois da redemocratização e perderam todo o cárter securitário que impregnava a leis precedentes do período da ditadura e adquiriram uma base fundada em direitos humanos. Passou a ser anacrônico manter a polícia federal como órgão encarregado da documentação dessa população, as novas leis buscam outorgar direito e não lhes impor restrições, demanda portanto uma instituição civil e não policial.

O terceiro ponto na construção criativa da política do refúgio seria a busca de um CONARE mais dinâmico, fazer com que o órgão deixe de ser somente um comitê que julgue as solicitações de refúgio compostos por vários ministérios e passe também a atuar através da futura Agência Nacional da Migração e do Refúgio nas políticas de acolhida no país hoje a cargo do exército. As ações de acolhidas de refugiados e migrantes deveriam envolver diversos ministérios, mas ser encabeçadas pela futura agência da migração e do refúgio e o futuro ministério do desenvolvimento social, hoje cidadania, que possui os profissionais mais especializados na área da assistência humanitária por terem formação universitária no serviço social.

O CONARE junto com o ministério pode elaborar modelos de acolhida em parceira com ONGs, como SOS Aldeias Infantis, capazes de fornecer abrigos por um certo período a refugiados vindo ao país com vistos humanitários. Deve-se evitar situações constrangedoras internacionalmente como as atuais onde centena de afegãos foram obrigados a ficar acampados no aeroporto pois o CONARE só lhes concedeu vistos humanitários para virem ao Brasil sem lhes oferecer nenhuma estrutura de acolhida (abrigo, alimentação, itens de higiene, serviços de saúde e outros). Os membros do CONARE que na lei tem uma configuração tripartite com representantes de ministérios, organismos internacionais e sociedade civil pode ser mais dinâmico e mais eficiente. O representante do ministério da educação deveria ser um dos professores que compõem a cátedra Sérgio Vieira de Mello existente em várias universidades por terem reconhecido saber e domínio sobre o tema do refúgio, o representante da sociedade civil não pode ser fixo e atemporal como atualmente ocorre e sim alguém com duração de mandato, ter rotatividade e ser eleito entre as organizações da sociedade civil que trabalham com o tema do refúgio incluído as organizações dos próprios refugiados. O CONARE deve garantir a mais ampla proteção jurídica ao solicite de refúgio, portanto ao julgar os casos administrativos de solicitação, ele deve sempre notificar e aceitar a sustentação oral dos advogados do solicitante de refúgio no momento de se reunirem para a decisão. Infelizmente essa não tem sido a prática atual em clara afronta ao direito do advogado previsto na Constituição Federal. Igualmente o CONARE deveria promover reuniões regulares também com a sociedade civil, governos locais e os próprios refugiados para ter suas políticas mais comprometidas com as necessidades reais da população refugiada e organizações que lhes prestam assistência.

O último e quarto desafio que o novo governo irá enfrentar será levar os gestores com cargos de nomeação política altos, os famosos DAS, no comando das políticas do refúgio a uma prestação de conta seja na forma de CPI como foi feito com o ministério da saúde e sua gestão da COVID ou através de uma comissão da verdade do refúgio para termos transparência de quem fez o que no comando de tantas violações ao direito dessa população vulnerável. Justamente a falta de transparência e prestação de contas, pilares indispensáveis numa democracia, possibilitou que uma das arquitetas dessa política destrutiva do instituto do refúgio no país fosse nomeada para atual equipe de transição como parte do corpo técnico se escondendo na neutralidade de servidora federal inserida na carreira de especialista em políticas públicas. Uma pessoa que participou ativamente na política destrutiva do instituto do refúgio e tinha o posto de substituta do coordenador do CONARE deve antes de assumir qualquer posição no próximo governo prestar contas do seu papel na gestão nefasta do ministério da justiça do governo Bolsonaro. Caso contrário, depois da incubadora de transição o ovo da serpente continuará sendo chocado dentro do novo governo Lula impossibilitando uma real gestação criativa da política do refúgio no futuro Ministério da Justiça.

Sobre o autor

Charles Pontes Gomes é membro Fundador do CEPREMI (Centro de Proteção a Refugiados e Migrantes Internacionais). Atualmente ocupa a cátedra Sergio Buarque do Holanda no Instituto Mora, no Mexico

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