O Migrantour ocorre há quatro anos com a participação de doze guias oriundos de dez nacionalidades
Por Alana Moreira
Em Lisboa (Portugal)
Atualizado às 09h50 de 23.ago.2019
A fusão de diferentes idiomas em meio aos monumentos históricos, trotinetes e souvenir a um euro são indicativos de que o Largo de São Domingos é um dos locais que atraem diariamente centenas de turistas a desbravar a capital portuguesa.
A voz de uma brasileira passa a destacar-se e Laisa Lamir, 27, abre um sorriso generoso ao dar as boas vindas a um pequeno grupo. Ela é uma das guias do projeto Migrantour, uma iniciativa da Associação Renovar Mouraria que propõe uma experiência diferenciada para quem deseja (re)conhecer o território a partir da vivência de imigrantes residentes em Portugal.
Antes da saída do Largo de São Domingos, uma das áreas mais emblemáticas de Lisboa, Laisa chama a atenção para o monumento em memória ao Massacre de Lisboa, ocorrido em abril de 1506, quando uma multidão perseguiu, torturou e matou centenas de judeus acusados de serem os responsáveis pela seca e pela peste que assolavam o país. No local há ainda um mural onde está impressa em 34 idiomas a frase “Lisboa, cidade da tolerância”.
O comércio na área é marcado pela presença de imigrantes de diferentes nacionalidades, sobretudo africanas. Em alguns trechos as calçadas servem como bazares improvisados para a exposição de roupas e acessórios, já as pequenas lojas dividem o espaço entre vestuário, especiarias e outros produtos alimentícios.
Em direção ao bairro da Mouraria o grupo passa a conhecer um pouco mais da história dos guias. “Conhecem Belfort Roxo, gente?”, questiona Laisa, quase em tom de afirmação, como forma de marcar seu município de origem e manter vivas as suas memórias. “Se eu não falar sobre minha identidade e reafirmá-la, ninguém o fará por mim”, afirma, enquanto amarra suas tranças dreads e mostra aos visitantes algumas imagens da cultura brasileira que considera significativas.
A subida pelas estreitas ladeiras evidencia uma diversidade de perfis comerciais que vão desde barbeiros, agências de viagens, talhos halal (açougue com corte realizado segundo as tradições muçulmanas), passando por restaurantes indianos, tailandeses e chineses, entre tantos outros sotaques que seguem guiando os visitantes dispostos a vivências diferenciadas e fora do roteiro tradicional.
A caminhada segue sob a condução do venezuelano Jeffrey Luna, 50, que passa a dividir suas impressões sobre a Lisboa que o acolheu há pouco mais de um ano e meio. “As dificuldades do meu país levaram-me a migrar, há anos não tínhamos mais tranquilidade e decidimos sair de Caracas”.
Ao recordar os primeiros meses em Portugal, Jeffrey destaca o difícil processo do recomeço. “Lembrava muito dos bens materiais que havia adquirido em anos de trabalho e isto não permitia-me avançar. Passei a pensar no futuro, nas possibilidades para meus filhos e no bem-estar que temos aqui”.
Berço do Fado, expressão máxima da cultura portuguesa, A Mouraria é o destino final do Migrantour. Sua história remonta a 1147, ano do primeiro “Cerco a Lisboa”, batalha entre os mouros e os cruzados que marcou a Reconquista Cristã da Península Ibérica e a consequente rendição dos mouros. Os muçulmanos que permaneceram no território foram confinados nesta área, dando origem ao nome da localidade.
Na rua dos Navegantes, um dos principais acessos ao bairro, pode-se observar algumas das 26 fadistas homenageadas que, de alguma maneira, tiveram uma estreita relação com o local. É ali que Jeffrey chama atenção para o simbolismo do lugar e despede-se do grupo lembrando também suas raízes ao segurar uma pequena bandeira da Venezuela, como uma saudação a cada nacionalidade ali representada.
Tolerância pela interculturalidade
O Migrantour é o resultado de um projeto iniciado na cidade italiana de Turim que expandiu-se para dez cidades de cinco países europeus, com a promoção de visitas guiadas pelos imigrantes residentes nestes territórios. Lisboa passou a fazer parte da ação em 2015, sendo a Mouraria o território de base, onde 30% dos seus habitantes são imigrantes oriundos de países como Bangladesh, Índia, China e Nepal, em um total de 50 nacionalidades.
“Esperamos que estas pessoas possam ser ferramentas de integração e sensibilização nos países que vivem ao promover a tolerância pela interculturalidade”, explicou Carla Costa, gestora de projeto.
São dezesseis guias em atividade cujas nacionalidades passam por Brasil, Japão, Rússia, Ucrânia, Romênia, Venezuela, Cabo Verde, Angola e Polônia. Para além destes, estão em formação dez novos guias vindos da Síria, Nepal, Bangladesh, Paquistão, Iraque, Palestina, Cabo Verde, Rússia, Brasil e Moçambique.
As atividades expandiram-se e ganharam também as salas de aula, com a realização de workshops de sensibilização junto às escolas com temas transversais sobre tolerância e empatia e em algumas ocasiões os guias são convidados a depor sobre suas experiências. “Temos relatos de professores que notaram a mudança dos alunos no processo de integração, após trabalharmos com estímulos às relações de comunicação e de competências interpessoais”, relata Carla.
Novos panoramas
Novos guias deverão estar em breve no projeto após o término da formação promovida pela Renovar Mouraria. A russa Ana Reperyash, 35 anos, decidiu integrar-se à Associação e após conhecer o Migrantour através de seus estudos em Antropologia. Após morar no Canadá, na Colômbia e no Brasil, onde obteve a nacionalidade, ela acredita que um dos méritos da iniciativa é destacar aqueles imigrantes que têm uma outra vivência da cidade e terão um espaço para falar das suas origens.
“A Europa mudou de cara, não é mais a mesma. Em Lisboa esbarramos em diferentes nacionalidades a todo instante e essa integração vem também pela cultura”.
A Associação também representou uma âncora para o iraquiano Osama Al Kanani, 29 anos, obrigado a fugir do Iraque há três anos e meio devido a sua orientação sexual. Após um período na Turquia, onde fez um pedido às Nações Unidas, conseguiu a autorização do governo português e instalou-se em Lisboa há três meses.
“Algumas pessoas perseguiam-me e ameaçavam-me no Iraque. Sinto-me seguro aqui, estou adaptando-me, apesar da falta que sinto da minha família e dos amigos”. Diz-se pronto para relatar a história deste novo território que aos poucos será também dele.