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domingo, dezembro 22, 2024

Projeto Estrangeiras, do ITTC, completa 15 anos ajudando a resgatar dignidade de mulheres presas

Por Glória Branco

A primeira vez que encontrei com Geana* foi no pátio interno do Centro de Progressão Penitenciária Feminino do Butantã, entre os pavilhões um e dois. Ela estava vestida com o uniforme prisional e foi muito simpática durante nossa conversa. Ficamos mais sorrindo uma para a outra, pois ela não falava nada de português e seu inglês era minguado. Outra presa estrangeira mais familiarizada com o português nos ajudou na comunicação. “Ela precisa de um lugar para ficar rua”.

Geana não tinha onde ficar depois de cumprir sua pena, estava no semiaberto a poucos dias de enfrentar a rua sem um teto para dormir, com pouquíssimo dinheiro para comer. Chegou ao Brasil cinco anos antes e do Aeroporto Internacional de Guarulhos foi direto para a Penitenciaria Feminina da Capital (PFC).

Nas Filipinas, onde nasceu, Geana não era uma criminosa. Foi passando fome e vendo o filho com poucos meses de vida sem ter o que comer que aceitou “transportar uma mercadoria” ao Brasil. Possivelmente entrou no país com o destino para a prisão já decretado. E assim aconteceu. Sozinha, sem dinheiro, sem saber uma palavra se quer de português, Geana começou seus primeiros dias à brasileira num presídio de São Paulo.

Nesse primeiro encontro não falamos sobre passado, quis saber o que ela mais precisava. Na verdade, meu maior interesse era saber como é ser uma mulher estrangeira numa prisão fora de seu país. Minha definição é que nem seus piores sentimentos podem definir o que é estar presa, num país desconhecido. Sensação de morte talvez esclareça o que Geana e outras cerca de 300 mulheres estrangeiras de 60 nacionalidades vivem ou viveram nos presídios do Brasil. Se integrar o quadro prisional brasileiro é encontrar-se à margem da sociedade, ser estrangeira e presa é viver no mais puro limbo social.

Foi nesse lugar de abstração social que em 1997 o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), entidade que atua pela igualdade de gênero, garantia de direitos e combate ao encarceramento, iniciou seu projeto mais antigo, o Projeto Estrangeiras – que no último dia 23 comemorou 15 anos de prestação de orientação jurídica e acompanhamento social às migrantes em privação de liberdade no estado de São Paulo.

Um evento para celebrar a data foi realizado nas dependências da Fundação Escola Paulista de Sociologia e Política, em São Paulo. Duas mesas debateram os diferentes olhares sobre a questão da mulher migrante em conflito com a lei e contaram a trajetória do Projeto, que começou após uma denúncia de tortura na antiga Penitenciária Feminina do Tatuapé.

Evento marcou a celebração dos 15 anos do Projeto Estrangeiras. Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo
Evento marcou a celebração dos 15 anos do Projeto Estrangeiras.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

A equipe que realizou a visita era formada pelas advogadas Michael Mary Nolan, também fundadora do ITTC, e Sonia Drigo e pelo então deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh. Além das péssimas condições em que as mais de 500 mulheres se encontravam, o grupo percebeu que cerca de 40 estrangeiras dividam o espaço com as outras, isoladas do mundo jurídico e privadas de sua territorialidade.

Foi através da escuta e das visitas frequentes que a equipe do ITTC foi se tornando mais familiar as presas estrangeiras. “A gente vai às vezes para fazer o papel de parente, de família dessas estrangeiras”, constata Sonia Neri Blanes, diretora do ITTC em citação encontrada no livro “De estrangeiras a migrantes: Os 15 anos do Projeto Estrangeiras”, lançado na data de celebração do projeto.

A cada visita e conversa o projeto foi crescendo até que pedidos das presas começaram a surgir. Com a aproximação das mulheres, a equipe começou a fazer mediação entre elas e suas famílias. Por meio de cartas e telefonemas, elas tinham notícias da vida que foram obrigadas a deixar para trás. Além disso, a equipe que ainda hoje é formada majoritariamente por advogados e estudantes de direito trazia informações processuais e explicava para as mulheres a situação judicial em que se encontravam.

Inicialmente sem nome, o projeto era definido com contrato com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) como um programa de “aperfeiçoamento à assistência às presas estrangeiras”. O nome Estrangeiras surgiu após o projeto ganhar corpo, mais precisamente em 2006, quando a equipe passou a contar com assistentes sociais, pedagogas, missionárias e psicólogas, tornando multidisciplinar a atuação junto às estrangeiras.

Livro "De estrangeiras a migrantes: Os 15 anos do Projeto Estrangeiras" conta a trajetória da ação iniciada e administrada pelo ITTC. Crédito: Rodrigo Borges Delfim
Livro “De estrangeiras a migrantes: Os 15 anos do Projeto Estrangeiras” conta a trajetória da ação iniciada e administrada pelo ITTC.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim

A vida fora das grades

Segundo o artigo 338 do Código Penal, uma vez expulsos ou expulsas, os migrantes em conflito com a lei não poderão retornar ao país, mesmo após o cumprimento de sua pena – sentença rechaçada pelas organizações ligadas aos movimentos de imigração, que alegam que é uma forma de criminalização do individuo que se envolveu na rede de migração por um processo de deslocamento relacionado a questões econômicas ou políticas.

O que mais me chamou a atenção no primeiro contato com Geana foi seu pedido por um abrigo. Ela sairia da prisão no máximo em dois meses e não tinha para onde ir. Não havia garantia emocional para festejar o cumprimento de sua pena até sua expulsão do país. Para ela o mais importante era reencontrar seu filho nas Filipinas, contudo ainda tinha um período incerto para viver aqui no Brasil.

O processo de expulsão costuma demorar a ser concluído, podendo demandar mais tempo que o cumprimento da própria pena. Após a abertura do Inquérito de Expulsão do Território Brasileiro (IPE), submetido ao Ministério da Justiça, uma delegação da Presidência da República decide sobre a permanência da mulher estrangeira no país. Se o órgão decidir que ela deve deixar o território é expedido um decreto de expulsão, que deverá ser chancelado pelo governo brasileiro.

Outro fator que agrava a condição da mulher egressa é a problemática da documentação, que demora a ser emitida pela Polícia Federal. Sendo assim, essas mulheres não têm direito a viver regularmente no Brasil e como estrangeira fica a mercê da clandestinidade, correndo o risco de mais uma vez cair na malha da criminalidade e retornarem à prisão.

“Essas mulheres são migrantes em primeiro lugar, por isso temos voltado nosso olhar para as necessidades das egressas nas lutas diárias por dignidade”, declara Carolina Yabase, psicóloga do ITTC e integrante do Projeto Estrangeiras. Segundo a entidade, um dos maiores desafios do Projeto tem sido a ausência de políticas públicas voltadas à mulher depois do cumprimento de sua sentença.

Direitos garantidos

Encarregadas de funções de menor importância na estrutura do narcotráfico, 63% da população prisional feminina no Brasil respondem por crimes ligados ao tráfico. Entre as migrantes presas, segundo o ITTC, mais de 90% delas foram enquadradas na Lei nº 11.343, principalmente por transporte internacional de drogas.

Por isso, o direito a progressão de regime, efetivado apenas em 2009, foi uma grande vitória para as estrangeiras. Outra conquista muito importante ocorreu em junho de 2016, quando o Supremo Tribunal Federal decretou o afastamento da hediondez do tráfico privilegiado, decisão que beneficiou inúmera mulher rés primária, sem antecedentes criminais e não integrantes de organizações criminosas.

Com a decisão, o direito ao indulto e à progressão de regime – prevista em crime hediondo, somente após o cumprimento de 2/5 da pena – passa a ser concedido após a execução de 1/6 do tempo de reclusão.

Já em 2010, um conjunto de políticas de desencarceramento foram estipuladas pelas Nações Unidas. As chamadas Regras de Bangkok preveem uma série de medidas, entre elas a aplicação de penas alternativas à prisão preventiva, acesso à assistência jurídica e aos consulados, contato com parentes e informações sobre o sistema e o regimento prisional – estas em especial as estrangeiras. Outra medida prevista no documento foi institucionalizada em março de 2016, o Marco Legal da Primeira Infância que ampliou a possibilidade da aplicação de penas não restritivas de liberdade, tal como prisão domiciliar, em caso de mulheres grávidas, em qualquer período da gestação, e de mães de crianças com até 12 anos de idade.

Um olhar para o futuro

Apesar de toda rudeza e miséria de uma vida no cárcere, o apoio mútuo e a atenção dedicada por entidades como o ITTC e a Pastoral Carcerária são capazes de renovar a esperança das migrantes presas. Foi nessa assistência que Geane pode confiar quando terminou o cumprimento de sua pena.

Quando nos encontramos pela última vez ela estava mais alegre, com roupas coloridas e uma aparência mais saudável. Escolhi um local simbólico das lutas humanitárias e políticas em São Paulo, a avenida Paulista em dia de Marcha dos Imigrantes. Falamos de Lei da Imigração, de mudanças que o Brasil ainda precisa fomentar para que todos tenham seus direitos garantidos e sejam reconhecidos como sujeitos de direitos.

Essa é a luta do Projeto Estrangeiras nos próximos anos, garantir que todas as mulheres migrantes em situação de cárcere tenham cada vez mais condições de desenvolver sua autonomia e vivam com dignidade no Brasil.

*nome alterado para preservar a identidade da entrevistada

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