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sexta-feira, dezembro 20, 2024

Projeto mostra história da imigração no Brasil por meio da imprensa

O debate em torno das migrações no Brasil ganhou força nos últimos anos, mas está longe de ser algo novo na história do país. E a imprensa, de forma positiva ou negativa, é testemunha ocular e tem presença marcante nesse processo – refletindo choques culturais, ideológicos, jogos de poder, opiniões diversas e temas que transpassam diferentes contextos históricos e chegam até a atualidade.

Seria possível então contar ao menos parte da história da imigração no Brasil por meio dos registros na imprensa produzida e lida por aqui? O projeto “Dois séculos de imigração no Brasil pela imprensa”, disponível no endereço http://midiacidada.org/ mostra que a resposta é sim.

Site explora dois séculos de imigração no Brasil pela imprensa. Crédito: Reprodução
Site explora dois séculos de imigração no Brasil pela imprensa.
Crédito: Reprodução

Lançada em março deste ano, a iniciativa é uma pesquisa de Doutorado do jornalista Gustavo Barreto, que será apresentada no início de 2015 na Escola de Comunicação da UFRJ. Com orientação do professor Mohammed ElHajji (coordenador do site oestrangeiro.org), a tese busca investigar a fundo o desenvolvimento do discurso sobre o imigrante em dois séculos da História do Brasil (1818-2018) a partir de registros da mídia jornalística impressa circulante no país. Todos os documentos que compõem o projeto (que já passam de uma centena) podem ser acessados por meio do site.

Embora a pesquisa ainda esteja em andamento (deve ser finalizada em fevereiro de 2015), é possível mostrar como temas em debate atualmente, como a legislação migratória e questões sobre a origem do imigrante, também foram abordados ao longo dos séculos XIX e XX – permitindo assim visualizar as evoluções, retrocessos e estagnações de cada um.

Hifenização e racismo

De acordo com Barreto, o discurso na imprensa sobre o imigrante sempre o colocou, antes de um ser humano, como um sujeito caracterizado por dois aspectos: sua procedência e sua profissão. “Em relação à nacionalidade – ou “etnia”, como era comum dizer em diversos momentos da história –, o estrangeiro sempre foi rodeado por essa questão da “hifenização”, o hífen que fica entre a nacionalidade originária e o “brasileiro” que ele é praticamente obrigado a incorporar”, diz.

Outro ponto levantado pelo pesquisador é a visão racista que muitos políticos e formadores de opinião desenvolveram sobre a imigração, sob a ótica de buscar um modelo ideal de imigrante. “Atualmente, esse ideário ainda existe, com as dificuldades que qualquer estrangeiro sofre no país sendo drasticamente potencializadas a depender da procedência desse estrangeiro”, pondera Barreto.

O artigo “Não somos racistas. Mas não queremos quistos“, publicado no jornal Correio da Manhã em 1959, é um exemplo dessa visão eugênica da imigração. Nele, o autor defende a vinda de imigrantes para o Brasil – desde que sejam europeus:

“O europeu tem muito mais afinidade com o brasileiro do que o asiático oriental. É cristão como nós e quase sempre católico. Fala o mesmo idioma ou um idioma muito mais semelhante ao nosso do que qualquer idioma asiático. Deixa-se assimilar muito mais fàcilmente. Os rapazes não mandam buscar noivas na Itália, Espanha, Portugal, Alemanha ou Hungria como os japonêses têm o péssimo vêzo de fazê-lo”.

Outro exemplo de tentativa de estipular um modelo ideal de imigrante vem de 1887, no jornal Correio Paulistano, destacando a vinda de imigrantes italianos para São Paulo e defendendo que estes sejam jovens para facilitar o aculturamento:

“Para os primeiros” — se referindo aos adultos — “a adaptação aos nossos usos e costumes, ao nosso clima, ao novo meio, emfim, a que foram transportados, é muito mais vagorosa e incompleta do que para os demais”.

Embora Barreto acredite que a cobertura atual da imprensa sobre migrações apresente avanços em relação ao que já foi, ele não credita a mudança a necessariamente a uma nova postura dos veículos. “Tem a ver com o ambiente mais propício aos direitos humanos igualitários, passados quase 70 anos dos primeiros documentos contemporâneos de direitos humanos, no direito internacional. Hoje, por exemplo, não existem mais instituições eugenistas tomadas como sérias, como existiam até os anos 1940”.

Achados históricos

Um dos grandes méritos de Barreto é mostrar que muitos temas debatidos atualmente já foram alvo de artigos e reportagens no passado, permitindo comparar as abordagens e opiniões presentes em cada época. São verdadeiros achados históricos.

Um deles vem de 1893, em artigo que descrevia, nas palavras de Barreto, “o menor projeto de lei de imigração da história do Brasil“. O texto consistia apenas em prever a introdução de 400 mil imigrantes no país (1º artigo), desde que procedentes de Alemanha, Itália, Portugal, Espanha, Áustria, Suíça, Suécia, Escócia, Irlanda e arquipélagos dos Açores e das Canárias (2º artigo).

Outro achado interessante já divulgado pelo projeto é a manchete de 30 de junho de 1980 do jornal O Globo, na qual a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posiciona frontalmente contrária ao Estatuto do Estrangeiro, que acabara de entrar em vigor e permanece até hoje.

“A CNBB e a CEP acham que o projeto fere uma longa tradição de hospitalidade do Brasil e o reconhecimento da contribuição econômica dos imigrantes”

E mesmo no auge das visões eugênicas sobre imigração era possível identificar visões críticas a esse modelo. Em 1947, o jornalista e líder político Carlos Lacerda publicou, também no Correio da Manhã, um artigo no qual chamava o Itamaraty de racista e acusava o então governo Dutra (1946-1951) de “nada saber de política de imigração”.

“É preciso deixar de brincar de racismo – e receber imigrantes. Venham de onde vierem, sejam quais forem. A imigração já, por si mesma, é um processo [de] seleção. A pecar por alguma coisa, seria melhor por falta de restrições do que por excesso”.

Com a finalização da tese, o espaço deve continuar a ser atualizado pelo menos até 2018, quando se completa o ciclo de dois séculos de História dos migrantes internacionais na imprensa. Mas Barreto não fecha a porta para uma possível continuidade após o bicentenário. “Veremos: nos fixamos ou migramos. É uma decisão a ser tomada no futuro”.

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