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sábado, abril 27, 2024

Promovendo a igualdade e a responsabilidade social corporativa: o desafio das restrições à contratação de imigrantes no Brasil

A Lei de Migração garante aos imigrantes a aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem qualquer forma de discriminação com base na nacionalidade ou condição migratória. No entanto, a CLT permanece desalinhada com a atual política

Por Natália de Lima Figueiredo e Julia Ferreira Fernandes

Em um mundo cada vez mais interconectado, a busca pela sustentabilidade e pela responsabilidade corporativa social tornou-se crucial para empresas e governos em todo o mundo. No Brasil, a questão da contratação de imigrantes e sua relação com as normas trabalhistas está presente desde a Era Vargas. À medida que refletimos sobre o assunto, é essencial considerar como ela se encaixa nos princípios do ESG (Environmental, Social, and Governance).

Normas Trabalhistas Desatualizadas: Um Obstáculo à Sustentabilidade

Embora a Constituição Federal de 1988 reafirme o princípio fundamental da igualdade de tratamento entre imigrantes e brasileiros, a persistência de normas trabalhistas contraditórias, que impõem limitações à contratação de trabalhadores estrangeiros por empresas no Brasil, lança uma sombra de incerteza sobre o processo de admissão de imigrantes. Essa contradição representa não apenas um obstáculo à proteção dos direitos desses trabalhadores no Brasil, mas também compromete a construção de um ambiente de responsabilidade social corporativa que busca fomentar a igualdade e a diversidade no ambiente de trabalho.

Desde a década de 30, as constituições brasileiras apresentam dispositivos que buscavam estabelecer um percentual máximo de contratação de estrangeiros por empresas brasileiras. Essas restrições, influenciadas por ideologias nacionalistas e preocupações com o desemprego e a imigração desordenada, foram incorporadas em várias constituições do país (1934, 1937, 1946, 1967 e 1969), até a Constituição Federal de 1988, que omitiu essa limitação. No entanto, regras datadas de 1943 da legislação trabalhista brasileira ainda mantêm a ideia de limites para a contratação de imigrantes.

CLT e a necessidade de reforma

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), responsável por estabelecer as regras sobre as relações de trabalho no Brasil, contém um capítulo intitulado “Da Nacionalização do Trabalho”. Neste capítulo, estabelece-se um limite para a contratação de estrangeiros por empresas brasileiras: apenas 1/3 de seus empregados podem ser estrangeiros, enquanto os outros 2/3 devem ser obrigatoriamente brasileiros.

É importante ressaltar que, apesar de estar prevista na CLT, a “regra dos 2/3” é considerada inconstitucional pela maioria dos especialistas. Argumenta-se que a imposição de uma quota mínima de empregados brasileiros para as empresas brasileiras é incompatível com o princípio da isonomia consagrado no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que busca igualdade inclusive entre brasileiros e estrangeiros residentes no país. Portanto, acredita-se que essa regra tenha sido tacitamente revogada em 1988 com a promulgação da atual Constituição [1].

Além disso, importante salientar que a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre discriminação em matéria de emprego e profissão, em vigor no Brasil, entende ser discriminatória toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão. Por meio da referida convenção, os países signatários comprometem-se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria.

Note-se, todavia, que no Código Penal brasileiro persiste até hoje o crime de frustração de lei sobre nacionalização do trabalho, que, nos termos do art. 204, sujeita à detenção, de um mês a um ano e multa, aquele que “frustrar, mediante fraude ou violência, obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho,” o que, mais uma vez, daria a impressão de que a regra dos 2/3 estaria em plena operação.

Não há muitas as informações sobre como tem sido aplicada, na prática, a regra dos 2/3. Em 2020, chegou ao Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região caso em que uma dada empresa, autuada 12 (doze) vezes pelo Auditor Fiscal do Trabalho por não ter cumprido a proporcionalidade de empregados brasileiros em sua embarcação, pedia a anulação do auto de infração. No caso em questão, o colegiado acatou o pedido de nulidade sob a justificativa de que o previsto na CLT cria uma hipótese de discriminação que fere diretamente o princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CRFB), uma vez que não há qualquer razão para que a norma prescreva a obrigação de o empregador de contratar empregados de nacionalidade brasileira em detrimento de estrangeiros [2].

Nesse sentido, verifica-se que auditores do trabalho parecem considerar a regra dos 2/3 válida, ao passo que decisões judiciais esparsas declaram sua inconstitucionalidade, não havendo entendimento pacificado sobre a questão. A mesmo tempo, dentre as informações obrigatoriamente prestadas pelas empresas no contexto da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), gerenciada pelo Ministério de Trabalho e Emprego (MTE), o governo anuncia que esta é uma das principais fontes de dados sobre o mercado de trabalho formal brasileiro, sendo considerada um censo porque a sua cobertura é superior a 97% dos vínculos empregatícios formais do país. Nesse sentido aponta que a RAIS tem, dentre seus objetivos operacionais, “subsidiar o controle da nacionalização do trabalho conforme a Lei dos 2/3”, dando um indicativo de que referida regra estaria em plena operação.

Tudo isso amplia o ambiente de insegurança jurídica para contratação de trabalhadores imigrantes no Brasil.

Projeto de Lei 2456/2019: Uma Perspectiva Sustentável

Diante dessa controvérsia, o Projeto de Lei 2456/2019, proposto na Câmara dos Deputados, surge como uma tentativa de alinhar a legislação trabalhista brasileira aos princípios de sustentabilidade e o cenário de globalização da era atual. O projeto propõe alterar as normas trabalhistas, desobrigando as empresas brasileiras de contratar ⅔ de brasileiros. [3]

Os argumentos para essa alteração ecoam os princípios ESG, buscando promover um ambiente de trabalho mais inclusivo e igualitário. O protecionismo econômico, que foi a diretriz na Era Vargas, está em contradição com a era atual de globalização, na qual os investimentos fluem dinamicamente. Além disso, o Brasil, como parte do Mercosul, está inserido em um contexto de migração de trabalhadores.

Discriminação e inclusão social

Considerando a vulnerabilidade dos imigrantes no Brasil, a existência de um limite legal para a contratação de estrangeiros apenas acentua uma situação de desigualdade já presente entre nacionais e imigrantes.

O argumento de que a “regra dos 2/3” protege o mercado de trabalho brasileiro e evita que estrangeiros “roubem” empregos de brasileiros é frequentemente utilizado para justificar a discriminação contra estrangeiros. No entanto, essas justificativas são falaciosas, uma vez que a população de imigrantes residentes no Brasil representa menos de 1% da população total do país,[4] e o fluxo de imigrantes não ameaça a contratação de nacionais.

Promovendo a Sustentabilidade e a Responsabilidade Social Corporativa nas Relações Trabalhistas

A imposição de barreiras legais baseadas exclusivamente na nacionalidade não contribui para o desenvolvimento sustentável do país; ao contrário, ela promove a marginalização dos imigrantes e a exploração ilegal de sua mão de obra em território nacional, o que está em flagrante desacordo com os princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição.

A discrepância entre o texto constitucional e a legislação trabalhista em vigor gera um ambiente de insegurança jurídica. É essencial que o legislador acompanhe a tendência global de proteção dos direitos humanos e reformule a legislação trabalhista para assegurar a igualdade de tratamento aos imigrantes e a proteção de seus direitos constitucionais no Brasil.

É importante ressaltar que a Lei de Migração (Lei nº. 13.445/2017) garante aos imigrantes a aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem qualquer forma de discriminação com base na nacionalidade ou condição migratória. No entanto, a CLT permanece desalinhada com a atual política de imigração do país. Torna-se, portanto, imprescindível a readequação da legislação trabalhista para garantir o tratamento igualitário aos imigrantes e a proteção de seus direitos constitucionais, promovendo assim a responsabilidade social corporativa e a sustentabilidade em nossa sociedade.

Empresas que adotam a responsabilidade social corporativa como parte de seus valores organizacionais éticos contribuem para a melhoria das condições sociais da comunidade em que atuam. A promoção da responsabilidade social no ambiente interno de uma empresa enfoca a gestão do trabalho, do ambiente de trabalho e dos direitos trabalhistas, criando incentivos para um ambiente inclusivo e diversificado. No entanto, regras estabelecidas que se contrapõem a esses valores, como é o caso da regra dos 2/3 da CLT, podem gerar hesitação por parte das empresas e prejudicar o avanço dos princípios ESG nas relações trabalhistas.

Sobre as autoras

Natália de Lima Figueiredo é Professora Adjunta de Direito Empresarial da Universidade Federal de São Paulo. Também é Doutora em Direito Internacional Econômico pela Universidade de Maastricht e Universidade de São Paulo (dupla titulação), além de Mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Julia Ferreira Fernandes é graduanda em Direito pela Universidade São Judas Tadeu

Referências

[1] Mauricio Godinho Delgado. Curso de Direito do Trabalho. 17ª ed. São Paulo: LTr, 2018. pp. 967 e 968

[2] Tribunal Regional do Trabalho da 1º Região, Quarta Turma, RO 0101224-04.2018.5.01.0064, Relator MARCOS PINTO DA CRUZ, Data de Julgamento: 04/08/2020

[3] Câmara dos Deputados. Comissão aprova projeto que desobriga empresas de contratar 2/3 de brasileiros, 2019. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/575130-comissao-aprova-projeto-que-desobriga-empresas-de-contratar-2-3-de-brasileiros/. Acesso em: 03/10/2023

[4] Agência Brasil. Número de novos imigrantes cresce 24,4% no Brasil em dez anos, 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-12/numero-de-novos-imigrantes-cresce-244-no-brasil-em-dez-anos. Acesso em: 04/10/2023.

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