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quarta-feira, novembro 20, 2024

Propostas sobre imigração nas eleições dos Estados Unidos: o que esperar de Kamala Harris e Donald Trump?

Além de ser uma preocupação do eleitorado nos EUA, a temática migratória ganha ainda mais pertinência pelo fato de os dois candidatos possuírem um histórico político diretamente relacionado a essa questão

Por Anna Paula Ramos
Do ProMigra

No dia 5 de novembro, o mundo voltará suas atenções para os Estados Unidos, pois ocorrerão as eleições presidenciais do país. Desde o início do ano, quando os arranjos políticos para o início das campanhas se intensificaram, estas eleições já se destacavam como uma das mais emblemáticas dos últimos anos. A imprecisão sobre quem seriam, de fato, os candidatos foi um dos principais fatores que marcaram o começo da disputa.

Do lado republicano, Donald Trump, que foi presidente entre 2017 e 2020, enfrentava processos criminais que ameaçavam sua candidatura. No lado democrata, embora Joe Biden, o atual presidente, tenha sido lançado como candidato à reeleição, havia questionamentos sobre sua capacidade de permanecer no comando do país devido à sua idade avançada. O desenrolar dessas incertezas culminou com Trump, mesmo condenado, recebendo autorização para concorrer e Biden sendo substituído por sua vice-presidente, Kamala Harris.

Com perfis e vivências que apresentam características distintas e marcantes, a disputa pela Casa Branca se tornou ainda mais polarizada. Kamala Harris, uma mulher negra e filha de imigrantes, construiu sua carreira política com base em ideias progressistas. Em contraste, Donald Trump, um homem branco, é um dos maiores — se não o maior — representantes da extrema direita contemporânea, que valoriza uma série de princípios conservadores. Uma ilustração empírica dessa polarização é o empate técnico observado nas pesquisas eleitorais.

Além disso, essa configuração é outro fator que torna estas eleições tão enigmáticas e, como apontam analistas estadunidenses, uma verdadeira disputa de ideias. Isso se deve ao fato de que os temas considerados “chaves” são complexos e carregam ramificações que instigam discussões. Hoje, para a maioria do eleitorado estadunidense, a ordem de importância ao refletir sobre qual candidato escolher, com base em suas propostas, é a seguinte: economia e inflação, defesa da democracia e liberdade, e imigração.

Questão migratória nos EUA

A imigração é um tema recorrente nas discussões políticas estadunidenses, especialmente devido ao papel dos Estados Unidos como o principal destino de migrantes, sobretudo os originários dos países das Américas. No entanto, nas eleições atuais, essa questão adquiriu uma relevância ainda maior em razão da situação na fronteira com o México e das políticas de controle migratório adotadas durante o governo Biden.

Para ilustrar a presente conjuntura, somente no ano fiscal de 2023, o governo estadunidense estimou que 2,5 milhões de migrantes tentaram atravessar a fronteira com o México. Esse número representa um novo recorde histórico, superando o do ano anterior, que foi de 2,4 milhões.

Somado a esse cenário da fronteira, a agenda de imigração ganha ainda mais pertinência pelo fato de os dois candidatos possuírem um histórico político diretamente relacionado a essa questão. Trump, em seu primeiro mandato como presidente, implementou algumas das políticas migratórias mais restritivas da história dos Estados Unidos, como a controversa separação de famílias na fronteira, a construção de um muro ao longo da fronteira com o México e o endurecimento de restrições ao asilo. Em contraste, Harris foi designada, logo nos primeiros dias de mandato, pelo presidente Biden para liderar iniciativas voltadas a combater as causas profundas da migração indocumentada nos países da América Central, incluindo pobreza, violência e instabilidade política.

Dado o passado recente de ambos em relação a esse tema, suas propostas podem ser vistas como uma continuidade aprimorada do que já realizaram. Kamala Harris tende a seguir as políticas do governo Biden, mas com um discurso mais contundente sobre a segurança na fronteira. Por outro lado, Donald Trump busca retomar as medidas restritivas da sua primeira gestão, com foco no aumento da coerção.

A análise a seguir das propostas de campanha evidencia a diferença entre os candidatos.

As propostas de Kamala Harris

Kamala Harris, 59 anos, foi a primeira mulher, a primeira pessoa negra e a primeira pessoa de ascendência indiana a ocupar o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos. Antes de assumir essa posição, ela foi senadora pela Califórnia de 2017 a 2021 e procuradora-geral do mesmo estado. Em sua trajetória política, destacou-se por sua defesa dos direitos das mulheres e dos direitos civis.

Apesar do seu histórico considerado progressista, Kamala tem adotado uma postura mais cautelosa em relação a temas considerados mais “liberais” durante a sua campanha presidencial. A pauta migratória é um exemplo disso. Em julho, momento em que foi oficializada como a candidata do Partido Democrata à presidência, Biden estava 35 pontos atrás de Trump nas pesquisas, que consideravam a proteção da fronteira e o controle migratório como fator decisivo para os eleitores. Em resposta a esse cenário, Kamala forneceu poucos detalhes sobre suas propostas relacionadas à imigração, relegando esse tema a uma posição secundária em sua plataforma.

O plano de governo de Kamala Harris evidencia como a imigração não é tratada como uma prioridade central, sendo mencionada brevemente em apenas um tópico. O título desse ponto inclui termos como “proteção de nossas fronteiras” e “sistema de imigração quebrado”, sinalizando uma linguagem mais pragmática.

Nesse documento, a ênfase na proteção das fronteiras está mais ligada ao combate ao tráfico de drogas e às gangues internacionais do que à questão migratória propriamente dita. Isso sugere uma mudança estratégica do Partido Democrata, focando mais na segurança do que em uma abordagem humanitária. É válido ressaltar como essa postura se difere da campanha de Biden para o seu primeiro mandato em 2020, que prometia um “tratamento humanitário” aos migrantes. A ausência desse termo no discurso de Harris pode ser vista como uma tática para evitar críticas futuras, se ela enfrentar dificuldades em oferecer um acolhimento considerado humanizado, caso seja eleita, algo que ocorreu com Biden durante seu mandato.

Por outro lado, a percepção de que o sistema imigratório dos Estados Unidos está “quebrado” é uma questão que os democratas têm destacado há anos em suas tentativas de reformar a legislação. Nesse contexto, a principal aposta de Kamala Harris, tanto em seu plano quanto em seus discursos de campanha, é a defesa de um projeto de lei bipartidário que trate das leis migratórias e da segurança de fronteira. Esse projeto foi discutido no Congresso neste ano; todavia, devido à oposição republicana, não avançou.

Em suma, a proposta é uma combinação de medidas de aumento de restrições e a criação de um caminho para a cidadania. Para tal, propunha o endurecimento das regras de asilo, além de permitir o fechamento parcial das fronteiras se o número de travessias excedesse um certo limite. Também previa o reforço de recursos para o sistema de imigração, incluindo o financiamento para a contratação de mais juízes, com o objetivo de acelerar a revisão de casos migratórios.

Dois pontos adicionais merecem destaque no programa de governo da candidata democrata. Em primeiro lugar, Harris enfatiza que as travessias na fronteira estão no nível mais baixo em quatro anos. Embora essa afirmação seja verdadeira, é importante observar que essa redução se deve a uma política considerada extremamente restritiva implementada pelo governo Biden, que limita a entrada a 2.500 migrantes por dia, e não a uma melhoria nas condições nos países de origem. Portanto, essa situação não é um resultado direto do pacote de ajuda voltado para as causas da migração na América Central, do qual Kamala foi responsável durante a gestão Biden.

O segundo ponto se refere a esse plano de assistência ao Triângulo Norte da América Central. Curiosamente, ela não tem dado muito destaque a essa iniciativa nos debates de campanha. Isso pode se dever ao fato de o projeto não ter gerado grandes impactos práticos, uma vez que as condições nesses países permanecem críticas. Ainda assim, Harris tem defendido a continuidade da abordagem de tratar as causas estruturais da migração, caso seja eleita. Um aspecto interessante dessa questão é que essa postura é fortemente apoiada pela recém-eleita presidente do México, Claudia Sheinbaum Pardo. Se Kamala vencer, será a primeira vez na história que as relações bilaterais entre Estados Unidos e México serão conduzidas por mulheres de ambos os lados, marcando um momento histórico para a diplomacia entre os dois países.

A Vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris,. Ela é filha de imigrantes. (Foto: Gage Skidmore/Wikimedia Commons)

As propostas de Donald Trump

Donald Trump, 78 anos, entrou para a política em 2016 ao se lançar como candidato à presidência pelo Partido Republicano, apresentando uma plataforma baseada no slogan “Make America Great Again”. Sua campanha focou intensamente na imigração, tornando-a um dos principais alvos de seus ataques, especialmente em relação aos migrantes mexicanos. Durante diversos comícios, Trump fez declarações controversas, referindo-se a essas pessoas como criminosos, estupradores e invasores.

Já no comando da Casa Branca, as ofensas Trump deixaram de ser meras palavras e se transformaram em ações concretas. Logo no início de seu mandato, ele ordenou a construção de um muro na fronteira com o México e implementou um banimento de cidadãos muçulmanos de viajar para os Estados Unidos. Além disso, dissolveu políticas de ajuda humanitária e separou crianças de suas famílias ao cruzarem a fronteira.

Trump também atacou diretamente o sistema de asilo por meio da implementação do programa “Permaneça no México”, que exigia que os solicitantes de asilo aguardassem a resolução de seus casos em território mexicano. Já no contexto de pandemia de COVID-19, ele ordenou o fechamento da fronteira terrestre dos Estados Unidos, justificando a medida com preocupações de segurança sanitária nacional, sob a política conhecida como Título 42.

Retratar a imigração como a grande inimiga e a causa de todos os problemas dos Estados Unidos continua sendo o modus operandi da campanha presidencial de Trump em busca de um segundo mandato. No debate contra Kamala Harris, ocorrido em 10 de setembro, Trump afirmou que migrantes estariam comendo animais de estimação no estado de Ohio, uma informação que foi desmentida pela BBC. Além disso, ele declarou que os migrantes estão chegando aos Estados Unidos após fugirem de prisões e instituições psiquiátricas.

Seu plano de governo também destaca o protagonismo que essa determinação em acabar com a migração desempenha em sua plataforma de campanha. O primeiro aspecto que se sobressai é que, das 20 diretrizes de sua agenda, a primeira aborda a questão migratória. Nesse ponto, Trump afirma que sua proposta é fechar as fronteiras para conter a “invasão de migrantes”. Para isso, o republicano declarou que pretende restabelecer três programas polêmicos de seu primeiro mandato: o “Permaneça no México”, os acordos de terceiro país seguro com nações da América Central e o México, e, por último, o Título 42. Para justificar a restauração deste último, o republicano argumenta que os migrantes estão trazendo tuberculose e outras doenças contagiosas para os Estados Unidos.

No que diz respeito à administração interna do tema, a segunda diretriz de sua agenda propõe a implementação da maior operação de deportação da história dos Estados Unidos. Trump afirma que, a partir do seu primeiro dia de mandato, reunirá todos os poderes federais e estaduais necessários para esse propósito. Analistas apontam que, além dos desafios burocráticos, logísticos e diplomáticos que essa medida apresentaria, caso fosse concretizada, ela causaria um grande impacto econômico no país, uma vez que a parcela de migrantes trabalhadores é bastante expressiva.

Outra medida que Trump prometeu assinar no primeiro dia de seu mandato é o fim do direito de cidadania por nascimento para crianças nascidas nos EUA de pais imigrantes indocumentados. Ele declarou que assinaria uma ordem executiva para retirar os passaportes e outros benefícios governamentais dessas crianças. Além disso, Trump pretende reviver e expandir a proibição de viagens, originalmente direcionada a cidadãos de sete países de maioria muçulmana. Usando o ataque do Hamas em Israel em 7 de outubro de 2023 como justificativa, ele prometeu implementar uma nova “triagem ideológica” para migrantes muçulmanos, com o objetivo de barrar “lunáticos perigosos, odiadores, intolerantes e maníacos”.

Essas medidas demonstram que Trump pretende ir além do que já fez em seu primeiro mandato, intensificando a imagem do migrante como o inimigo número um dos Estados Unidos. Além disso, ao promover uma narrativa que demoniza os migrantes, ele não apenas alimenta o medo e a desconfiança, mas também poderá aprofundar a polarização política no país.

Donald Trump, então presidente dos EUA, em discurso na Assembleia Geral da ONU (set/2017). (Foto: Cia Park/UN Photo)

Desafios em comum: a política doméstica versus o cenário migratório nas Américas

Apesar das nítidas diferenças entre Kamala e Trump, é possível afirmar que ambos concordam sobre a necessidade de fortalecer a segurança nas fronteiras e reformar a legislação migratória dos Estados Unidos. Essa convergência tem tanto uma causa quanto um obstáculo em comum para os dois.

O Partido Republicano, e por extensão sua base de apoio, defende há anos que as fronteiras precisam de maior fiscalização. Já os democratas adotaram uma postura mais firme sobre o tema recentemente. Ambos estão sendo pressionados por um denominador comum: a opinião pública. Se antes a ideia de proteger rigorosamente as fronteiras era predominantemente republicana, o cenário atual mostra que essa “bolha estourou”. A título de ilustração, uma pesquisa recente revelou que 55% dos adultos apoiam a redução da imigração para os Estados Unidos, o maior índice desde os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Assim, os democratas se viram obrigados a ajustar seu discurso sobre o tema, enquanto os republicanos enxergam isso como um endosso da população a uma de suas agendas mais tradicionais.

Independentemente de quem vença, o principal obstáculo para concretizar uma reforma legislativa que fortaleça a segurança nas fronteiras é obter o apoio do partido opositor no Congresso e no Senado. Nos últimos 40 anos, presidentes democratas e republicanos têm tentado reformar o sistema migratório, mas sem sucesso. Todavia, o fato de a maioria da população apoiar o aumento da segurança na fronteira e restrições no sistema de asilo pode servir como um impulso para que os dois partidos se unam e aprovem uma reforma migratória.

Enquanto os debates no cenário doméstico se concentram quase exclusivamente em “fechar as portas” dos Estados Unidos, o cenário internacional revela que os fluxos migratórios para o país estão longe de diminuir. A continuidade dos conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio, somada à persistência das condições estruturais, políticas e econômicas precárias em países latino-americanos, como Venezuela, Haiti e os países do Triângulo Norte, indica que a chegada diária de migrantes à fronteira sul dos Estados Unidos tende a se prolongar.

Seja Harris ou Trump o vencedor, se não forem formuladas e implementadas medidas concretas para melhorar as condições nos países de origem desses fluxos migratórios, tanto em relação aos conflitos armados em andamento quanto às condições econômicas e políticas nas Américas, as pessoas continuarão sendo forçadas a deixar suas casas em busca de condições dignas de sobrevivência nos Estados Unidos. Diante desse cenário, independentemente de quem ganhe, ainda que com diferentes intensidades, fica evidente que os Estados Unidos não estarão priorizando uma migração segura, ordenada e regular. Isso sugere que tempos ainda mais sombrios podem estar à frente da mobilidade migratória nas Américas.

Sobre a autora

Anna Paula Ramos é mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, Unicamp, PUC-SP), bacharela em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Álvares Penteado (FECAP) e membra do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP. Tem como temas de pesquisa a migração centro-americana, as políticas migratórias dos Estados Unidos e do México.


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