As migrações atuais tornaram-se mais intensas, mais complexas, mais coloridas e diversificadas; é preciso construir novas pontes, e não muros
Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
Em Roma (Itália)
Há 130 anos, mais exatamente em 12 de novembro de 1887, o Bem-aventurado Dom J. B. Scalabrini, bispo de Piacenza, norte da Itália, fundava a Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos). Quatro anos depois, em 1891, o então Papa Leão XIII publicava a Carta Encíclica Rerum Novarum, documento inaugural da Doutrina Social da Igreja. E outros quatro anos após, em 1895, o Bem-aventurado Dom Scalabrini, juntamente com a Bem-aventurada Madre Assunta e seu irmão, o servo de Deus Pe. José Marchetti, fundavam a Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos (Scalabrinianas).
Essas três datas – 1887, 1891 e 1895 – inserem-se no contexto de um grande despertar da Igreja para com a condição socioeconômica e política das pessoas. Estamos no final do século XIX, século do movimento, segundo alguns historiadores. Pessoas, trens, carros e navios se deslocam numa euforia frenética, sem precedentes, no auge da Revolução Industrial. Esta, com efeito, traz avanços tecnológicos e formas inéditas de conforto, além de revolucionar a visão da própria existência humana. Mas também abre feridas, desloca multidões e, numa ampla onda de urbanização, provoca nas grandes cidades bolsões de pobreza e desemprego, miséria e fome. Daí o nascimento de várias Congregações de caráter apostólico, sobretudo na segunda metade do século, para atender, entre outros grupos e categorias, os jovens, os órfão e viúvas, as mulheres prostituídas, os operários e os emigrantes.
Juntando as figuras do Papa Leão XIII e do Bem-aventurado J. B. Scalabrini, constata-se algo que é muito mais do que uma mera coincidência. Ao novo despertar da Igreja para com a “questão social”, tema da encíclica Rerum Novarum, corresponde o despertar de Dom Scalabrini para com os emigrantes que, em massa, deixavam a Europa. Sensibilidade em dupla dimensão: enquanto o Papa se preocupa com a condição dos operários nas fábricas emergentes, o bispo de Piacenza solidariza-se com aqueles que sequer conseguiam emprego em seus países. Por isso, são obrigados a cruzar os mares em busca de novas oportunidades nas Américas. De 1820 a 1920, mais de 60 milhões de pessoas saem da Europa.
Em outras palavras, a intuição de Dom Scalabrini pela acolhida e solicitude diante dos migrantes e prófugos
nasce no interior da nova solicitude pastoral da Igreja para com a condição concreta em que viviam os trabalhadores e trabalhadoras, devido às turbulências da Revolução Industrial. Disso resulta que a preocupação sistemática da Igreja sobre a “questão social”, por um lado, e aquilo que se poderia chamar de “Pastoral dos Migrantes”, por outro, são irmãs gêmeas. Se Leão XIII é o iniciador da Doutrina Social, Scalabrini passará a ser chamado “pai e apóstolo dos migrantes”.
São tempos que se abrem aos novos desafios da sociedade moderna, preanunciando o Concílio Vaticano II.
Hoje, porém, passados 130 anos, as migrações tornaram-se mais intensas, mais complexas, mais coloridas e mais diversificadas. Novos rostos passam a fazer parte dos fluxos migratórios. Mulheres e crianças assumem um protagonismo crescente. O fenômeno envolve atualmente quase todos os países do planeta, como lugares de origem, lugares de destino ou lugares de passagem – quando não os três ao mesmo tempo. A ONU estima em mais de 258 milhões o número de pessoas que vivem e trabalham fora do país em que nasceram, e em cerca de 25 milhões o número de refugiados.
Nesse cenário em movimento, entende-se a insistência do Papa Francisco para com a abertura do coração, das portas e das fronteiras aos migrantes, prófugos e refugiados. “Construir pontes e não muros”, repete o Pontífice diante das pessoas, das nações e dos meios de comunicação social. Ao por-se a caminho, com um futuro incerto, os migrantes fazem marchar a história e a Igreja. Interpelam-nos a sair fora de nós mesmos, sair de casa ou deixar a sacristia. Através deles, o profeta itinerantes de Nazaré, nos chama igualmente ao caminho: tornar-se discípulos-missionários no universo dos migrantes, levando-lhes “o sorriso da pátria e o conforto da fé”, como lembrava Scalabrini.