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segunda-feira, outubro 14, 2024

Refugiados climáticos: quando as pessoas e o meio ambiente são considerados descartáveis

Como parte da série “Deslocados e Descartáveis”, a pesquisadora social Bruna Kaldetz se encontra com uma família do Malaui que foram deslocados pelos impactos da alteração climática e explora falhas na proteção de refugiados climáticos

Por Bruna Kadletz
Publicado originalmente em inglês no site News Deeply

Melina tinha somente três anos quando ela e sua família deixaram sua casa no sul do Malaui. Em seu vilarejo remoto, a agricultura de subsistência, que garantia a sobrevivência da comunidade por incontáveis gerações, havia se tornado impraticável.

Eles não podiam mais cultivar o milho, cereal que era a principal fonte de nutrição para a família. Moído em uma farinha espessa, o grão é comumente cozido com água em um prato tradicional chamado “nsima”. Em alguns países africanos, variações desse prato são servidos no café da manhã, almoço e jantar.

Após diversos anos de seca e falhas nos plantios, a família de Melina migrou para a África do Sul em 2008, com a esperança de encontrar estabilidade.

Hoje, Melina tem 11 anos e seu status legal na África do Sul permanece indefinido. Sua família mora na periferia de Johanesburgo, reduzidos a uma existência insustentável. Como eles entraram o país de forma irregular, eles acabaram se tornando prisioneiros em ciclos de pobreza e sem acesso ao sistema legal. Por ser uma menina, Melina é a última na lista de prioridade, tanto para seus pais como para a sociedade. Sem residência legal, a menina não pode se matricular em escolas públicas ou ter acesso ao sistema de saúde.

O Malaui é particularmente vulnerável à mudança climática, sendo o terceiro país mais afetado em 2015. Desde o fim da década de 90, oscilações extremas entre enchentes e seca tem intensificado a escassez de alimentos, fazendo com que o país seja o mais afetado pelas alterações climáticas no sul da África.

Milhões de pequenos agricultores que vivem neste país pobre em desenvolvimento estão sofrendo, ou já foram deslocados, pelos impactos de padrões climáticos extremos. Em uma região onde cerca de 90% das pessoas dependem da agricultura para sobreviveram, o clima não é visto como um fator externo, mas sim como um pilar vital para sobrevivência.

A mãe de Melina, Charmaine, acreditava que a terra onde eles viviam sempre proveria nutrientes para seus corpos e sentido para suas almas. Ela começou a trabalhar na roça ainda menina, seguindo os passos da sua mãe, avó e tantas outras gerações anteriores. A terra era o ponto de conexão que mantinha o elo entre os seus ancestrais e tradições presentes.

Mas, anos de padrões climáticos extremos quebraram essa corrente de herança cultural. Incapazes de cultivar seus próprios alimentos, muitos pequenos agricultores foram deslocados dentro do Malaui, enquanto que outros atravessam as fronteiras para países vizinhos em busca de sobrevivência.

A família de Melina está entre as milhões de pessoas de comunidades agrárias ao redor do mundo que estão vivenciando as drásticas consequências das alterações nos ecossistemas. Suas vidas e sobrevivência estão cada vez mais restritas pelas falhas de governantes e da comunidade global tanto na proteção dos ecossistemas como na segurança daqueles que são forçados a partir.

E, uma vez deslocados, essas pessoas se tornam invisíveis. Zygmunt Bauman, professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, descreveu esse processo em uma entrevista ao New York Times:

“Refugiados são jogados fora do círculo da humanidade, na medida em que se refere os direitos que não lhes são conferidos. E existem milhões sobre milhões de tais pessoas habitando o nosso planeta compartilhado.”

A história dessa família revela diversas falhas do atual sistema de migração global. Essas disfunções – incluindo deficiências institucionais e legais, problemáticas relacionadas a gênero, educação e acesso a informações – tornam refugiados climáticos particularmente descartáveis devido à falta de proteção legal a essas pessoas.

A conexão entre clima e deslocamento

O último painel global climático [COP 22,  que ocorreu no Marrocos em novembro de 2016] coincidiu com a intensificação dos fluxos migratórios do Norte da África para a Itália. Ainda assim, pouca atenção é dada a combinação tóxica desses dois desafios globais: mudança climática e migração.

Acordos e painéis sobre mudança climática são ausentes de ações para mitigar deslocamento forçado – uma contradição alarmante devido as projeções científicas que estimam deslocamento em massa em proporções nunca vistas.

Como que governos e sociedades irão proteger os previstos 200 milhões de futuros “refugiados climáticos” quando líderes políticos já estão falhando os atuais refugiados, que se encontram em números menores? Apesar da necessidade urgente, soluções sustentáveis para pessoas deslocadas devido a mudança climática ainda são embrionárias, o que torna ainda mais distante a implementação de tais soluções.

O atual regime de asilo não legitima a busca por refúgio daqueles que sofrem os efeitos da mudança climático. Mesmo quando políticas governamentais acarretam em condições inabitáveis em países como Malaui, Bangladesh ou Haiti, proteção internacional não é uma opção para os mais vulneráveis.

Mesmo que não sejam reconhecidos legalmente como “refugiados climáticos”, já existem pessoas buscando refúgio das mudanças dos padrões climáticos, e os números são altos. Ironicamente, essas pessoas originam geralmente de países com baixas emissões de dióxido de carbono e com escassos recursos para responder a mudança climática.

Apesar de 2016 ter sido considerado o ano mais quente já registrado, ainda falta a vontade política e estrutura legal para reconhecer e proteger pessoas que escapam da seca e desertificação na África Central, elevação dos mares nas Ilhas Pacíficas, enchentes em Bangladesh e furacões no Haiti.

Deslocados, portanto descartáveis   

Nesta série “Deslocados e Descartáveis”, eu tenho apontado para a lógica que percebe a vida como algo descartável e a ligação dessa lógica com deslocamento humano. Refugiados climáticos são materializações dessa lógica. O tratamento descartável de ecossistemas desencadeia deslocamento de pessoas que também são percebidas como descartáveis.

Em contraste com comunidades que reconhecem ecossistemas e clima como pilares essenciais para a existência humana no planeta, sociedades descartáveis frequentemente descartam as consequências ecológicas e sociais do desmatamento, extração mineral extensiva, agricultura industrial e construção de oleodutos. Nós chegamos no ponto da história humana em que sociedades descartáveis dominam comunidades ecologicamente conscientes.

A mentalidade descartável está infiltrada no nosso inconsciente coletivo de tal forma que nem identificamos mais. Nós normalizamos o uso de itens descartáveis. Nós abraçamos e normalizamos a produção feroz de lixo material e social: copos descartáveis, garrafas de plástico, roupas baratas, tecnologia que se torna rapidamente redundante e, pessoas redundantes. Essa normalização está incorporada no nosso estilo de vida de uma maneira que não conseguimos mais imaginar nossos dias sem o conforto e praticidade de tais itens, e sem questionar os impactos sociais do nosso estilo descartável.

Nossa cultura materialista, viciada em combustível sujo e predadora de recursos naturais tem devorado e destruído o sistema ecológico que sustenta nossa existência no planeta.

Neste processo, comunidades são forçadas a se deslocar. Guerras são fabricadas. Violência é implementada. Desigualdade é intensificada. E escravidão moderna é reforçada.

Se nós realmente quisermos restaurar justiça e proteger aqueles que são deslocados por desastres ecológicos, nós devemos repensar – individualmente e coletivamente, economicamente e politicamente, psicologicamente e pragmaticamente – a abordagem que considera a vida no planeta e seus ecossistemas descartáveis.

Nós não podemos mais descartar as consequências do nosso estilo de vida em comunidades no Malaui ou Bangladesh ou Haiti. As mesmas trágicas consequências irão inevitavelmente bater nas nossas portas sob a forma de intensos fluxos migratórios.

Nas palavras de Bauman: “A humanidade está em crise – e não existe outra saída da crise que não seja solidariedade entre os humanos.”

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