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segunda-feira, outubro 14, 2024

Refugiados têm direito, mas não conseguem trazer família para o Brasil

Cientista política expõe defasagem entre o que assegura o Direito Internacional e a lei brasileira do que refugiados vivem na prática sobre reunião familiar

Em artigo, doutora pela USP expõe a defasagem entre o que assegura o Direito Internacional e a lei brasileira do que refugiados vivem na prática

Por Patrícia Nabuco Martuscelli*

Estamos na época das festas de final de ano. As informações veiculadas na mídia retratam esse momento como um tempo de estar com quem amamos, com a nossa família (mais do que qualquer outro durante o ano).

Enquanto a maior parte das pessoas já está planejando as festas de fim de ano com seus entes queridos, isso nem sempre é possível para pessoas que estão no Brasil porque tiveram que deixar seus países por causa de guerras, perseguições e graves e generalizadas violações de direitos humanos.

Situações que forçam as pessoas a se deslocarem e a buscarem refúgio em outros países podem separar famílias no Brasil e em outros lugares. Para essas pessoas, pode ser difícil conseguir reunir a família novamente.

A única forma de conseguirem trazer as famílias para o Brasil é por meio de políticas de reunião familiar que garantam o visto para que o familiar possa entrar no Brasil de maneira segura e a possibilidade de que ele permaneça no país de forma documentada.

Essa situação de separação da família é agravada no caso dos refugiados porque, por definição, eles não podem retornar para seus países de origem para visitar seus familiares.

A reunião familiar foi reconhecida por diferentes organizações como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a Organização Internacional das Migrações (OIM) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) como fundamental para a integração local de imigrantes e refugiados, principalmente para que eles possam reconstruir as suas vidas no país de destino.

Além disso, muitas vezes os familiares que ficaram no país de origem estão em perigo por estarem em meio a conflitos ou em campos de refugiados.

Em alguns casos, quando o refugiado sofreu perseguição individualizada, pode ser que a família passe a sofrer a perseguição como uma forma de prejudicar quem conseguiu proteção em um outro país.

Assim, a reunião familiar é também uma forma de garantir proteção para pessoas que precisam dela.

Total de deslocados e refugiados no mundo é recorde, aponta ACNUR.
Foto: ACNUR

Definição

Apesar de haver um consenso universal de que a família é importante para todos os seres humanos (especialmente para crianças), não há uma definição comum do que seria família. Enquanto algumas culturas reconhecem mais pessoas como parte da família, outras entendem famílias apenas como pais casados e filhos menores de idade, ou seja, a chamada família nuclear.

Definições de família mais restritas são uma das estratégias utilizadas por muitos países do mundo como Canadá, Estados Unidos da América, Austrália e países europeus para restringir a reunião familiar para refugiados e imigrantes.

Também são empregados outros mecanismos como a adoção de procedimentos burocráticos incluindo o uso de exames de DNA, a negação da reunião familiar para pessoas menores de 18 anos, a existência de prazos máximos ou mínimos de espera para que a família possa se reunir no país de destino.

Mau uso

Governos justificam políticas de reunião familiar restritivas para coibir o mau uso da reunião familiar (como casamentos de fachada e uso de falsos documentos) e para evitar que crianças sejam enviadas sozinhas pelos seus pais para conseguir a reunião familiar de suas famílias (sendo chamadas de crianças âncoras).

Existem poucas evidências de que refugiados e imigrantes incorram em fraude em processos de reunião familiar quando comparados com nacionais ou que as famílias de fato usem crianças como âncoras.

Pelo contrário, há ampla documentação científica sugerindo que a reunião familiar facilita a inserção de imigrantes e refugiados na sociedade local fornecendo oportunidade adicionais para aprender a língua, trabalhar e abrir seus próprios negócios e desenvolver redes.

Também os familiares que chegam dependem menos de auxílio do governo e de organizações da sociedade civil para conseguir um lugar para ficar e para navegarem os sistemas burocráticos nacionais porque já possuem uma pessoa da família que atuará como agente de integração.

No Brasil

Como a legislação brasileira aborda o tema da reunião familiar? O Brasil possui uma política que tende a facilitar a reunião familiar de refugiados se tomamos como referência políticas mais restritivas adotadas por outros países.

O Brasil adota uma definição de família mais ampla que inclui ascendentes, descendentes, cônjuges e demais familiares desde que comprovada a dependência econômica. Além disso, o país possui um procedimento facilitado de reunião familiar sem a necessidade de exames de DNA.

A Lei de Migrações (13.445/2017) também reconhece um direito à reunião familiar para imigrantes permanentes no Brasil (o que inclui refugiados) e eleva a reunião familiar como princípio da política migratória brasileira.

Mas nem tudo são flores para aqueles que buscam a reunião familiar no Brasil. Na verdade, a pesquisa de doutorado conduzida por mim no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, intitulada ‘Refúgio significa saudades’: A Política Brasileira de Reunião Familiar de Refugiados em Perspectiva Comparada (1997-2018) , mostra que os refugiados no país enfrentam vários desafios que levam à separação prolongada entre famílias.

Escutei com bastante frequência a pergunta : “Por que para refugiado é difícil para trazer a sua família aqui?” ao longo dos meses de trabalho de campo com refugiados congoleses em São Paulo, a cidade brasileira que concentra grande parte da população de refugiados no Brasil.

É difícil para os refugiados trazerem as famílias para o Brasil porque o procedimento de reunião familiar garante muito poder para agentes consulares que não possuem um treinamento específico sobre o tema do refúgio. Pelo contrário, eles são treinados para proteger a segurança e a soberania nacionais.

Assim, quando um familiar de um refugiado solicita o visto no posto consular, ele tende a ser percebido como qualquer solicitante de visto. Ou seja, não é considerado que esse familiar pode auxiliar o processo de integração local de pessoas que já recebem a proteção do refúgio no país e que não podem voltar para seu país de origem.

Enquanto o tema da reunião familiar não for considerado como parte integral da política para refugiados, os refugiados continuarão a pergunta por que é difícil trazer a família aqui.

O caráter progressista da legislação brasileira não se revela na prática cotidiana. O primeiro ponto que dificulta o processo de reunião familiar para refugiados se relaciona com as mudanças sutis na legislação que ocorreram principalmente depois de 2017.

Mudanças sutis

A primeira delas foi negar que refugiados que vieram por reunião familiar possam solicitar a reunião familiar como uma forma de impedir a migração em cadeia. A segunda ocorreu com a regulamentação da Lei 13.445 por meio da Portaria Interministerial nº 12/2018 que restringiu a definição de família em comparação com aquela que era adotada até então.

Finalmente, a resolução 27/2018 adotada em 31 de outubro de 2018 pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) transferiu o processo de visto de reunião familiar para fora do país, dando maior poder para os funcionários dos postos consulares brasileiros no exterior e tirando o protagonismo do refugiado que está no país e pode pedir ajuda para organizações em caso de necessidade.

Essa Resolução substituiu a Resolução Normativa nº 16/2013 que tinha consolidado o processo no qual o visto de reunião familiar era solicitado pelo refugiado via CONARE no Brasil. Essa resolução também mencionava explicitamente que o CONARE levaria em consideração aspectos sociais, culturais e afetivos para estabelecer padrões de reunião familiar. Essa consideração não está na Resolução 27/2018 atualmente em vigor.

Crianças refugiadas sírias olham para o lixo espalhado nas áreas comuns da janela do apartamento de sua família no bairro de baixa renda Masaken Osman, nos arredores do Cairo (Egito).
Foto: S.Nelson/ACNUR – set.2015

Custos

Soma-se a isso a falta de prazos claros para os processos de reunião familiar e de possibilidade de apelação ou revisão dos processos em caso de negativas do visto.

Dificuldades no processo de reunião familiar incluindo os custos de documentação, visto e passagens aéreas que são pagos inteiramente pelos refugiados que já estão no país atrapalham a vida dos refugiados.

Durante o meu trabalho de campo, os refugiados relataram que sentem estresse, tristeza, ansiedade, medo do que pode acontecer com os familiares que ficaram para trás e que vivem em situações financeiras precárias porque têm que se sustentar no país, enviar dinheiro para o familiar que ficou e ainda economizar para fazer a reunião familiar.

Isso faz com que eles fiquem separados longos tempos de suas famílias. Essa separação prolongada influencia principalmente nos relacionamentos entre casais e entre pais e filhos que demandam maior atenção quando finalmente são reunidos no Brasil.

Em alguns casos, os refugiados têm que fazer escolhas delicadas sobre quais familiares virão primeiro, o que pode gerar sentimentos de culpa, predileção e desconfiança. Essa decisão é ainda mais complicada quando o refugiado possui vários filhos e não tem condições de trazer todos de uma vez.

É necessário que esse tema seja mais discutido e que a política brasileira para a reunião familiar de imigrantes e refugiados seja aprimorada. Só assim poderemos esperar que refugiados estejam com suas famílias no próximo final de ano.

Nessa época familiar de festas de final de ano, convido você a pensar nos refugiados que estão separados de suas famílias. Se realmente valorizamos a família na nossa cultura, deveríamos pensar que todas as famílias são importantes.

Refugiados no país passarão mais uma ceia de natal e uma virada de ano sem familiares porque a nossa política de reunião familiar não garante para eles esse direito na prática.

* Patrícia Nabuco Martuscelli é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo


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