Quase diariamente tenho colhido imagens, depoimentos e notícias dramáticas sobre os migrantes que tentam vencer a “selva da morte”, localizada entre a Colômbia e o Panamá, para cruzar o estreito de Darién, rumo aos Estados Unidos. “O estreito de Darién é um território inóspito controlado pelo narcotráfico, de um lado, e por indígenas, do outro. Desde o ano de 2020, mais de 15 mil crianças e adolescentes brasileiros cruzaram a sufocante floresta tropical, em uma caminhada de cerda de 100 quilômetros. Na mais grave questão migratória das Américas, um número desconhecido de vidas se perde pelo caminho. Eles enfrentam a travessia no meio da selva (…) ao lado dos pais, em sua maioria haitianos que viviam no Brasil, e lidam com situações de abandono, violência e morte” (Folha de São Paulo, 8 de março de 2024, pag. A8 a A10).
Não poucas desses adolescestes e crianças são imigrantes de segunda geração, digamos assim, filhos e filhas de haitianos que migraram há alguns anos para a Brasil, numa tentativa de melhorar as condições de vida. Daqui alguns se deslocaram para o Chile e outros países vizinhos, em seguida se reencontraram na perigosa passagem da chamada “selva da morte”. O objetivo é juntar-se às caravanas centro-americanas e caribenhas rumo o Norte. Com certa frequência, entretanto, o sonho do Eldorado norte-americano se estilhaça contra as fronteiras fechadas e hostis, não raro militarizadas. Nessa encruzilhada que une e separa a Colômbia e o Panamá, além dos haitianos, têm se juntado uma série de outros migrantes originários da América do Sul, mas também asiáticos que já passaram por esta última região.
Travessia trágica, onde o perigo e a morte espreitam a cada esquina, seja nas florestas e rios, seja nos mares e desertos. Se neste caso falamos de selva da morte, o Mediterrâneo foi batizado de “cemitério dos migrantes” por ninguém menos que o Papa Francisco. Nas fronteiras bloqueadas, sob o controle das autoridades e de uma série de obstáculos, os migrantes enfrentam riscos similares de país para país, até bater-se com o muro entre México e Estados Unidos. Razão pela qual o tema das migrações tem entrado no centro dos acalorados debates entre Joe Biden e Donald Trump, com vistas às eleições presidenciais de 2024 nos Estados Unidos. Tornam-se frequentes a criminalização, a militarização e a politização das migrações tanto em nível nacional quanto em nível internacional. De tal forma que o fenômeno migratório, em geral, acaba sendo radiografado não sob o enfoque dos direitos humanos e de oportunidades de vida para todos, mas em particular sob a ótica da segurança nacional. Em lugar recorrer a políticas públicas de inserção trabalhista e social, recorre-se às famigeradas ações policiais e repressivas.
Triste é constatar que os dramas vivenciados por centenas e milhares de migrantes no estreito do Darién se estendem hoje a distintas e crescentes regiões do planeta. Contam-se aos milhões os refugiados de guerras, seja na Síria, na Ucrânia, na Palestina ou no Sudão do Sul; a mesma cifra de milhões vale também para os fugitivos da pobreza, da miséria e da fome, tanto na Venezuela e em outros países da América do Sul, quanto na Etiópia, Eritréia, Moçambique, Nigéria, Angola e outras regiões da África e da Ásia, sem falar dos lugares onde a limpeza étnica ou a intolerância religiosa seguem fazendo vítimas; enfim, a cifra dos milhões aplica-se igualmente aos refugiados climáticos, castigados pelo aquecimento global, bem como pelos extremos de calor e frio, estiagens, inundações e outras catástrofes. De resto, de acordo com as estimativas do ACNUR, órgão da ONU, pela primeira vez a quantidade de refugiados e deslocados forçados internos no mundo ultrapassou a casa dos 100 milhões, o que revela o crescimento progressivo da violência, seja esta de caráter político-ideológica, seja de caráter étnico-cultural-religioso. Discriminação e preconceito não respeitam fronteiras.
Semelhante cenário explica a visibilidade crescente dos “territórios fronteiriços”, onde sonhos e pesadelos se encontram e se desencontram. A dinâmica efervescente desses territórios ambíguos revela, ainda que seja às avessas, a rigidez da legislação trabalhista. Com efeito, com a ascensão da extrema-direita em várias partes do planeta, as fronteiras tendem a se fecharem cada vez mais. Fechadas as fronteiras legais, via aeroporto e documentação em dia, multiplicam-se os campos de ajuntamento junto às fronteiras geográfico-territoriais. É o que vem ocorrendo na Colômbia e Panamá e na Guatemala e México em direção aos USA; bem como na Líbia, Grécia e Turquia, em direção à Europa; ou na ilha de Batam, Indonésia, em direção à Tailândia e aos chamados tigres asiáticos e até à Austrália. Movem-se os migrantes nas ondas superficiais da terra porque se movem as correntes subterrâneas da política e da economia.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM, 21/03/2024