A educação pode ser repressora, mas também pode emancipar, conscientizar, promover o respeito e valorizar as diferenças. É essa perspectiva de transformação que foi debatida e defendida durante o Seminário Internacional Educação e Migração: Caminhos para uma Cidade Educadora, que aconteceu no último dia 14 em São Paulo.
Promovido pela Associação Cidade Escola Aprendiz, o evento lotou o auditório do Museu da Imigração, na zona leste da cidade, e reuniu estudiosos, ativistas, pessoas que trabalham com educação e também migrantes, ainda que em menor número. Pouco mais de cem pessoas participaram das discussões.
Os trabalhos foram abertos com a conferência do mexicano José Manuel Valenzuela Arce, professor e doutor do Departamento de Estudos Culturais do Colégio da Fronteira Norte, no México. Ele falou da fronteira além das barreiras físicas, mas como um conceito político e de classificação social, e da necessidade de superar e ir além dessas barreiras.
“Temos de construir novas estratégias de inclusão, de civilização. Que tipo de horizonte civilizatório e humanitário queremos construir?”, questionou Valenzuela, a partir do cenário de retrocessos em relação aos direitos humanos e de respeito ao outro que se desenha mundo afora. “A diversidade cultural nos enriquece, nos faz mais fortes”, completou.
O caso do projeto Trilhas da Cidadania
Logo em seguida, no evento ocorreu o lançamento do volume III da Coleção Territórios Educativos: Trilhas da Cidadania, Educação e Refúgio na Cidade, que sintetizou a experiência do Aprendiz com o projeto Trilhas da Cidadania, que funcionou entre 2012 e 2015 com o ensino de português para refugiados e solicitantes de refúgio. O Trilhas aproveitava a cidade e seu cotidiano como elemento e cenário para fomentar o ensino do português, combinando essas experiências com as atividades em sala de aula.
“Eles [os refugiados] mostraram não só a capacidade de se comunicar em português como deu voz, comunicou diferentes culturas, também pautando a cidade”, lembrou Agda Sardenberg, coordenadora executiva de programas do Aprendiz, sobre barreiras notadas dento da cidade pelos refugiados e que geravam reflexão dentro dos próprios espaços públicos.
Embora o projeto fosse considerado um sucesso, ele foi descontinuado em 2015. Questionada sobre esse término, Agda explicou que isso era necessário para dar maior escala à experiência do Trilhas e fomentar a expansão e adoção da metodologia por outros projetos e instituições. “A ideia foi de sistematizar, fazer a diferença. Temos pensado em multiplicadores a partir deste material, ganhar escala”.
O congolês Hidras Tuala, aluno do Trilhas em 2012, contou um pouco da experiência com o projeto e de como ele impactou na sua vida no Brasil. “ No tempo que me dediquei ao curso eu apendi muito. Depois dele, consegui aprimorar meu português e consegui um trabalho”, lembrou ele, que atualmente trabalha orientando outros imigrantes no CAT (Centro de Atendimento ao Trabalhador).
Para referenciar futuros cidadãos, valorizar o bilinguismo
Na parte da tarde, os debates seguintes trouxeram outros exemplos práticos sobre o desafio de tratar das migrações no campo da educação, e de como escolas, centros culturais e iniciativas dos próprios migrantes, dos governos e de instituições do terceiro setor podem quebrar estereótipos e fomentar essa diversidade e respeito ao outro dentro da cidade.
“As comunidades migrantes já fazem parte e já contribuem com São Paulo. Querendo ou não, a cidadania migrante existe e transforma a cidade”, enfatiza a arte-educadora Cristina de Branco, nascida em Lisboa, a partir do Visto Permanente, projeto do qual ela faz parte e que debate as migrações e promove a diversidade cultural por meio do audiovisual.
A professora Sueli Ramos, diretora da EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil) João Theodoro, contou um pouco do cotidiano que vive no local, que conta com 265 crianças matriculadas, sendo 79 delas imigrantes – entre bolivianas, sírias, peruanas, entre outras nacionalidades. “Queremos referenciar esses futuros cidadãos”, sintetizou a professora, sobre aproveitar essa característica da escola – e que pode ser notada em outras unidades de ensino – para promover o respeito à diferença e combater o bullying ao qual as crianças imigrantes estão sujeitas.
A jornalista Giovanna Modé, que atua na Campanha Latino-americana pelo Direito à Educação, lembrou que a educação é um direito humano e que a aproximação entre educação e migração ainda é pouco abordada, mas que deve ser buscada, apesar das dificuldades. “São negociações tensas no cotidiano, mas não podemos perder de vista que esse encontro é possível.”
Tatiana Waldman, do Museu da Imigração, lembrou que essa tensão existe também entre as migrações do passado e do presente, mas reforçou que o museu deve promover esses diálogo. “O papel do museu é contrapor e desconstruir os estereótipos que, em grande parte, desvalorizam os processos migratórios, e colocar em evidência a cultura e experiência dos imigrantes, além de mostrar um olhar mais crítico sobre o fenômeno migratório”.
Para mudar a nós mesmos
O contexto atual, marcado por retrocessos no campo social tanto no Brasil como no exterior, foi um dos fios condutores da última mesa de debates do dia, na qual projetos de educação idealizados e tocados por imigrantes foram destacados.
“Vivemos numa encruzilhada e temos de atentos para lutar contra esses retrocessos”, resumiu Guilherme Otero, coordenador-adjunto de políticas para imigrantes da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, que fez ainda um resgate das políticas públicas adotadas para imigrantes na capital paulista nos últimos anos, como a criação do Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI) e a Política Municipal para a População Imigrante.
Bruno Lopes, do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), enfatizou o fato de o Brasil ser o único país da América do Sul a não permitir participação política dos imigrantes, mas que a educação pode ajudar a mudar o modo como a migração é vista na sociedade. “É preciso mudar as narrativas que associam a migração a medos, a questões securitárias. E a educação oferece ferramentas para essas novas narrativas”.
A web designer boliviana Jobana Moya, fundadora e integrante da Equipe de Base Warmis, lembra que para lutar pelos próprios direitos é preciso também ter essa convicção dentro de si. “Para transformar nossa realidade, precisamos primeiro transformar a nós mesmos, nos ver como sujeitos de direitos. Do contrário, não sabemos pelo que estamos lutando”.
A reflexão de Jobana foi reforçada pela também boliviana Veronica Yujira, idealizadora e gestora do Si, Yo Puedo, que mostrou um pouco da atuação do coletivo não só para ensinar português, mas para fomentar o acesso à informação e à conscientização sobre ser migrante. “Quanto mais cedo nos notarmos multiculturais, mais fácil será fazer essa integração. Esse momento tem que ser no dia a dia”.
[…] Na edição anterior (2016), cerca de cem pessoas lotaram o auditório do Museu da Imigração, também na capital paulista. Na oportunidade, os debates giraram em torno da perspectiva de que a educação pode ser repressora, mas também pode emancipar, conscientizar, promover o respeito e valorizar as diferenças. O evento foi acompanhado pelo MigraMundo e a cobertura está disponível neste link. […]