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sábado, dezembro 21, 2024

Separação de famílias: uma face da política imigratória dos Estados Unidos

A imigração de crianças sozinhas para os EUA está ligada ao aumento da violência nos países de origem, mas também com uma política imigratória que cria pessoas indocumentadas e separa famílias

Por Patrícia Nabuco Martuscelli
Em Durham (Carolina do Norte, EUA)

Em uma sexta-feira há cerca de 2 meses, eu saí para jantar no centro de Durham, cidade na Carolina do Norte. Quando estava saindo da área de restaurantes e indo para o ponto de ônibus, passei por um menino que segurava uma placa com os dizeres Te quiero, Papá (Eu te amo, papai). Ao lado dele, estava uma mulher que parecia ser sua mãe. Ambos tinham características que pareciam ser de nacionais do México ou da América Central. Do outro lado da rua, um centro de polícia de Durham onde ficam pessoas detidas. Aquela criança estava realmente feliz ao pensar que seu pai estaria lendo sua placa, mesmo estando em uma cela.

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Não sei exatamente a situação daquela família, ou o se aquele pai cometeu algum crime, mas não consigo tirar da cabeça a hipótese de que aquela era uma família imigrante indocumentada e que o pai foi pego pelas autoridades imigratórias (ICE – Immigrations and Customs Enforcement) e muito provavelmente seria deportado, talvez pelo único delito de estar indocumentado na terra do Tio Sam. A política imigratória dos Estados Unidos foi pensada para separar famílias, mesmo em situações quando as crianças nasceram nos Estados Unidos e possuem a cidadania daquele país.

Imagens na TV dos EUA mostram crianças imigrantes em centros de detenção.
Crédito: Reprodução/CBS

Mas não só os EUA adotam políticas que separam famílias, vários países desenvolvidos têm dificultado a reunião familiar de imigrantes e refugiados, principalmente se as pessoas forem recipientes de proteção temporária. Uma organização sueca fez uma campanha para chamar atenção da população do país sobre a situação de separação de famílias imigrantes. Em um comercial, uma mãe leva sua filha para a escola e diz para ela que retornará para buscá-la 3 anos depois. Essa situação parece trágica quando pensamos na vida familiar da maior parte das pessoas do mundo, porém pessoas portadoras de proteção temporária tinham que esperar 3 anos para poderem ser reunidos com suas famílias na Suécia. Em diversos outros países, política de reunião familiar envolvem processos custosos, exames de DNA e longos anos de espera.

Um dos argumentos utilizados por políticos para limitar a reunião familiar de imigrantes e refugiados é o medo da “migração em cadeia”. Esse conceito é uma falácia baseado na ideia de que se um imigrante estiver documentado, ele poderá garantir a entrada de vários outros imigrantes que garantem a entrada de outros o que levaria a uma reação em cadeia. Isso justificaria políticas mais restritivas para trazer familiares o que resulta em separação das famílias. Contudo, pesquisas sobre reunião familiar em países desenvolvidos mostram que cada refugiado em seu território traz menos de uma pessoa para ficar com ele, ou seja, discursos sobre invasões de famílias de imigrantes e refugiados não se sustentam na prática.

É notório o fato de que fronteiras separam famílias há muitos anos. Dentre os fatores que explicam o aumento do número de crianças sozinhas imigrando para os EUA, além da pobreza e violência de gangues nos países de origem na América Central, está o fato de familiares (principalmente pais e mães) terem emigrado para os EUA para trabalharem e, como não existe possibilidade de regularização migratória e nem de trazer seus filhos de maneira segura, familiares ficam anos separados de seus filhos até conseguirem juntar dinheiro para pagar um coiote ou até que as crianças decidam por si mesmas ir para o Norte.

Nesse sentido, é preciso entender o processo migratório dentro das lentes de um projeto familiar, em que um parente emigra para poder garantir a sobrevivência dos demais. Contudo, famílias não dependem apenas de meios econômicos. Relações familiares são baseados em relações emocionais e afetivas, ou seja, não tem como uma mãe exercer o papel de mãe há milhares de quilômetros de distância, ainda que ela esteja fornecendo os meios para sustentar os seus filhos. A imigração de crianças sozinhas para os EUA principalmente depois de 2011 está intimamente ligada com o aumento da violência nos países de origem, mas também com uma política imigratória que cria pessoas indocumentadas e separa famílias, forçando crianças a embarcarem em jornadas perigosas com o sonho de reencontrarem seus pais. O livro de Sonia Nazario, Enrique’s Journey: The Story of a Boy’s Dangerous Odyssey to Reunite with His Mother (2006) ilustra exatamente essa situação.

Manifestação contra Trump na frente do Parlamento Europeu, em Estrasburgo França).
Crédito: GUE/NGL/Fotos Públicas

Finalmente, a política de “tolerância zero” do governo Trump anunciada pelo Advogado Geral dos EUA em abril é apenas a nova fronteira de políticas migratórias que separam famílias. De acordo com dados oficiais do governo estadunidense, entre 19 de abril e 31 de maio de 2018 cerca de 2000 crianças foram separadas de suas famílias nas fronteiras. Isso ocorre porque o governo Trump optou por processar penalmente adultos que cruzam a fronteira de maneira irregular. Assim, adultos são enviados para prisões e crianças para centros de detenção teoricamente pensados para esses menores. Imagens de ao menos 20 crianças colocadas em uma jaula refletem o fato de que os EUA estão produzindo artificialmente crianças sozinhas que enfrentarão processos judiciais de remoção individuais. Para as organizações que atendem menores desacompanhados, isso significa um aumento enorme da carga de trabalho em processos judiciais que estão ficando cada vez mais difíceis. Ao mesmo tempo, crianças não possuem direito à representação judicial gratuita nos EUA.

Conclusão: grande parte dessas crianças separadas poderão ter que aparecer em cortes sem a ajuda de um advogado. Para aquelas que conseguirem alguma representação gratuita (pro-bono) ou de baixo custo, isso pode significar que advogados terão que representar crianças de 6 meses de idade. Como esses profissionais conseguirão construir um caso de refúgio que seja sustentável se o bebê não consegue nem falar? Ademais, temos que considerar que o Advogado Geral dos EUA publicou uma jurisprudência justificando que violência de gangues e violência doméstica não são argumentos válidos para que pessoas sejam reconhecidas como refugiadas nos EUA. Essas situações são o que motiva grande parte das migrações de famílias e crianças de países do Triângulo Norte da América Central para os Estados Unidos da América.

Ainda que a política de separação de famílias tenha sido criticada por diversos políticos e personalidades nos Estados Unidos e também pela Organização das Nações Unidas, a administração Trump justifica (inclusive com menção à Bíblia) que apenas está aplicando uma lei criada pelos democratas. Há de fato espaço na lei para que pessoas sejam criminalmente processadas por cruzarem fronteiras de maneira irregular, porém não existe nenhuma legislação que demande a separação de famílias nas fronteiras e crie crianças desacompanhadas. A separação de famílias tem dois objetivos políticos: o primeiro é tentar passar uma mensagem para as famílias que estão atravessando as fronteiras e tentando entrar nos EUA como uma maneira de desencorajar essa migração. Isso não vai funcionar porque as famílias estão fugindo de situações de violência em que o risco de imigrar para os EUA é menos pior do que a certeza de sofrer ou até morrer. O segundo objetivo é criar um tipo de chantagem para que os legisladores passem legislações anti-imigração do governo Trump, incluindo a construção do muro.

Além disso, temos que considerar que os EUA possuem eleições parciais de representantes para o Congresso (midterm elections) ainda esse ano. Uma política mais dura contra imigrantes que está sendo amplamente divulgada é uma forma de mostrar para os apoiadores de Trump que, ainda que ele não tenha conseguido construir o muro, ele está “acabando” com a imigração irregular. Resta agora saber como os demais norte-americanos se posicionarão nas urnas em relação a essa nova política de separar famílias.

A família é um importante valor na cultura dos EUA, porém não estamos falando da separação das famílias americanas, mas de famílias estrangeiras. A separação de famílias dentro da política de zero tolerância do Trump é apenas a última fronteira de políticas imigratórias que separam famílias há muito anos seja forçando pessoas a migrarem indocumentadas e deixarem suas famílias para trás, deportando pais indocumentados com filhos que são cidadãos ou dificultando a reunião familiar de imigrantes e refugiados.

PS: a reflexão acima continua válida mesmo com o anúncio na última quarta-feira (20/06) de que o governo Trump deixaria de separar as famílias imigrantes detidas

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