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sexta-feira, março 29, 2024

Fact checking: Trump erra ou exagera ao ligar migração, criminalidade e meritocracia

Confira a checagem feita pelo MigraMundo do 1º discurso de Trump à União nos EUA; reforma de imigração proposta por ele tornará imigrante “caso de polícia”

Por Victória Brotto
De Estrasburgo (França)

Na última terça-feira (30), o presidente norte-americano Donald Trump apresentou aos americanos – e ao mundo – o seu plano para mudar o sistema de imigração nos Estados Unidos. Em seu primeiro discurso do Estado à União, Trump lançou quatro pilares de sua reforma migratória, que será votada nas próximas semanas no Congresso – e de acordo com especialistas e jornais do mundo inteiro, dependem de uma difícil unidade de Democratas e Conservadores.

O MigraMundo acompanhou o discurso do presidente dos EUA e checou os principais pontos do que Trump disse sobre a imigração nos Estados Unidos. Abaixo, os principais pontos da fala do presidente norte-americano e as análises de especialistas em Migração e Economia e de relatórios do próprio Congresso ou de Centros Nacionais de Pesquisas nos EUA.

Bandeira dos EUA em noite de neblina no Empire State Building, em Nova York.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo – mai.2013

 

“Durante décadas as fronteiras abertas permitiram que drogas e gangues entrassem em nossas comunidades mais vulneráveis. Permitiram que milhões de trabalhadores sem qualificação competissem por empregos e salários com os americanos mais pobres. E tragicamente provocaram a perda de muitas vidas inocentes.”

A ligação entre imigração, gangues e tráfico de drogas é extremamente frágil. Inúmeros estudos apontam pouquíssimas ou quase nenhuma evidência de que, nos Estados Unidos, os imigrantes sejam os principais culpados por crimes – como tráfico e homicídio – cometidos dentro do território americano. De acordo com um estudo do Centro de Estudos de Imigração (CEI) feito no começo da era Obama, em 2009, os imigrantes representavam apenas 8% da população carcerária nos EUA – e já naquela época, via-se um decréscimo constante desse percentual. Em dez anos (1999-2000), os EUA viram diminuir em 28% o número de imigrantes envolvidos em crimes como tráfico de drogas, assassinatos ou violência sexual. (Leia aqui a versão em inglês do estudo)

O mesmo estudo, liderado por Jessica Vaughan, diretora do CEI e Steven Camarota, responsável pela área de Pesquisas no departamento de Políticas Públicas, mostram até um acréscimo no número de imigrantes e um decréscimo no número de crimes.

Durante sua campanha presidencial, Trump também citou casos de violência sexual e tráfico de drogas relacionados a imigrantes sem documentação. A sua campanha usou como base a U.S Sentencing Commission, comissão que mapeia os crimes de acordo com a nacionalidade do criminoso. De acordo com o banco de dados da comissão, 17,2% dos crimes de violência sexual e 38,6% foram cometidos por imigrantes irregulares nos últimos anos. Ou seja, os cidadãos norte-americanos foram responsáveis por pelo menos 65% das drogas e das violências sexuais cometidas nos EUA – e não os imigrantes sem documentação.

Uma análise de 2010 da base de dados do Census norte-americano feita pelo Conselho Americano de Imigração mostra que 1,6% dos imigrantes homens entre 18 e 39 anos estavam encarcerados nos EUA, já os homens norte-americanos na mesma faixa-etária, representavam 3,3% da população carcerária. E o número de norte-americanos presos é maior do que o número de imigrantes presos nos EUA desde 1980, de acordo com o relatório. (Veja aqui a íntegra do documento)

Além disso, em 2012, o Serviço de Pesquisa do Congresso Norte-Americano traçou um perfil (confira aqui) do imigrante indocumentado no país – e que estava longe de ser agressivo, criminoso ou traficante. “A vasta maioria dos imigrantes identificados pelo Serviço de Pesquisa do Congresso e pelo Programa Imigratório de Comunidades é não violenta”, conclui o estudo, após 52 páginas de casos judiciais, número de imigrantes com documentação e sem e perfil das comunidades de estrangeiros já instaladas há décadas nos EUA.

“Nós estamos propondo uma nova legislação que irá consertar as nossas leis imigratórias e que irão dar suporte aos nossos agentes nas fronteiras – para que violências como essas [assassinatos, tráfico e violência sexual] não aconteçam nunca mais.”

Transformar imigrantes em alvos da polícia ou de agentes federais é um erro que pode levar a um enfraquecimento das relações entre Estado e as comunidades locais, e ainda acarretar em detenções arbitrárias. É o que diz o estudo “Política Interna de Imigração: fazendo do imigrante um alvo¨, publicado em dezembro de 2012 por Marc Rosenblum e William Kandel, especialistas em políticas migratórias.

Para Rosenblum, deputado diretor do Programa de Política de Imigração do Instituto de Políticas Migratórias nos EUA, a ideia é a contrária da do senso-comum. Os imigrantes  principalmente os seus documentação, tem um grande motivo para fugir de problemas – mais do que os americanos. “Porque ou eles não têm documentação ou porque eles vieram e estão nos EUA para trabalhar e precisam passar por uma rigorosa checagem de antecedentes criminais”.

Marc Rosenblum, do Instituto de Politicas Migratórias nos EUA.
Crédito: Divulgação

“Imigrantes são, no geral – e principalmente imigrantes irregulares – um seleto grupo que veio aos EUA para trabalhar. E uma vez que estão aqui, a maioria deles só quer fugir de problemas porque eles sabem que eles são os mais vulneráveis e que mais facilmente viram alvo da polícia”, afirma Rosenblum.

Os quatro pilares da reforma migratória de Trump

“Aqui estão os quarto pilares do nosso acordo: o primeiro pilar é de generosamente abrir um caminho para a obtenção da nacionalidade norte-americana para 1,8 milhões de imigrantes ilegais que foram trazidos por seus pais ainda jovens – número três vezes maior do que o número de cidadanias concedidas pela administração anterior. Pelo nosso acordo, aqueles que tiverem um bom nível de educação, cumprir os requisitos exigidos para trabalhar e mostrar uma boa moral estarão aptos a se tornar cidadãos dos Estados Unidos.”

Sim, Trump abriu uma grande exceção que lhe custará caro, politicamente, ao dizer que “abrirá caminho” para 1,8 milhão de possíveis cidadanias aos filhos de imigrantes (os chamados “dreamers”) – hoje, estima-se que o número de filhos de imigrantes sem documentação seja de 800 mil. De acordo com o jornal francês Le Monde, a estratégia do presidente norte-americano é, com isso, ter o apoio que precisa dos Democratas na votação em fevereiro, no Congresso.

Mas tal sinal verde aos Democratas pró-imigração já começa a custar caro ao presidente. Logo nas horas seguintes ao discurso de Trump, o site ultraconservador Breitbart News, antigo aliado de Donald Trump, chamou-o de “Don Juan da Anistia”, que “perdoaria” os imigrantes, aos quais chamaram de “ilegais”. Para o jornal francês, a reforma de Trump “é particularmente ambiciosa e intransigente, tendo em vista o jogo de forças já existente em um assunto que desencadeia, mais do que nunca, os mais diferentes tipos de ânimos”.

Para o jornal norte-americano The New York Times, o grande teste do segundo ano de mandato de Donald Trump será “fazer passar tal reforma”, pois ele precisa do apoio de dois partidos que não estão somente um contra o outro, mas também dentro de si mesmos, profundamente divididos. “Um primeiro e grande teste para o segundo ano de Trump será trazer Democratas e Republicanos juntos em um acordo migratório”, afirmou Nicholas Fandos, correspondente do NYT no Congresso norte-americano.

Reações iniciais de republicanos no Senado, onde o plano pode ser votado no começo de fevereiro, foram positivas. O senador conservador republicano Tom Cotton chamou o plano de “generoso e humano, ao mesmo tempo em que também é responsável”. Republicanos controlam a Câmara por pequena maioria (de 51 a 49) e precisam de votos democratas para aprovar a legislação.

A disputa sobre proteções para os “Dreamers”, que estão programadas para acabar em março, é parte de um impasse entre republicanos e democratas no Senado que resultou em uma paralisação de três dias do governo, que terminou no último dia 22 de janeiro.

Protesto em Nova York contra o fim do DACA.
Crédito: Rhododendrites/Wikimedia Commons – set.2017

As duas partes concordaram em estender os financiamentos até 8 de fevereiro, deixando uma pequena janela para fechar um acordo sobre imigração. O plano de Trump irá ajudar a fornecer direção para estas conversas, disse o líder da maioria no Senado, o republicano Mitch McConnell, em comunicado.

Um acordo entre democratas e republicanos sobre imigração é esperado para até o dia 8 de fevereiro, quando expira o orçamento provisório do governo.

“(…) O segundo pilar é de garantir segurança em nossas fronteiras. O que significa um muro erguido na fronteira sul e o que significa ainda contratar mais heróis como CJ (agente federal citado anteriormente por Trump) para manter as nossas comunidades seguras. Assim, nós vamos cobrir as brechas exploradas pelos criminosos e terroristas para entrar em nosso país.
O terceiro pilar será o de acabar com o sistema de “loteria de vistos” – um programa que dá a qualquer um o green card, sem ao menos saber do histórico da pessoa, de seus antecedentes acadêmicos, profissionais ou de mérito (…)”

O Programa Anual de Visto da Diversidade prevê 55 mil vistos, por seleção aleatória, a pessoas de países com baixas taxas de imigração para os EUA em 2019. Todos os anos o país abre vagas para candidatos – não se paga nem para se inscrever nem se você for selecionado. Mas ser selecionado não significa que você vá, diretamente, obter o green card. O processo posterior inclui entrevista e exige escolaridade mínima e experiência profissional de dois anos.

“(…) É tempo de começar a transformar o nosso sistema de migração em um sistema baseado no mérito – um sistema que admitirá pessoas com bons antecedentes de trabalho, de estudos e de moral, que querem trabalhar, que querem contribuir para a nossa sociedade e que amarão e respeitarão o nosso país.”

A economia norte-americana ganhará mais se continuar a admitir imigrantes com pouca experiência do que se impor um sistema de méritos – ou “sistema de pontos”. É o que diz a economista Jennifer Hunt, ex deputada do Tesouro Norte-Americano (2013-2015). Hunt é professora de Economia na Universidade de Rutgers e especialista em imigração e desigualdade econômica, além de ter passado pelo Ministério do Trabalho e do Tesouro como economista e pesquisadora chefe.

“Há um sistema de perdas e ganhos se os EUA basear sua seleção em apenas no ‘mérito’ dos imigrantes”, diz Jennifer em seu artigo publicado no ano passado, intitulado “Os EUA se beneficiará de um sistema de imigração baseado no mérito” (leia aqui a versão em inglês)

“Existem algumas evidências de que imigrantes selecionados pelo sistema de pontos – ou seja, por mérito de escolaridade, experiência profissional etc – tem um pior desempenho no mercado de trabalho do que o esperado”, afirma, que usa como exemplo o que acontece no Canadá, país que implementou o sistema de pontos. “Imigrantes com um bom grau de escolaridade não inovam mais do que os nativos.” E acrescenta que não se pode minimizar o sistema de imigração de um país em apenas um sistema de mérito. “Os Estados Unidos podem se beneficiar de uma imigração ‘sem habilidades”. “O maior benefício é a diversidade trazida pela força de trabalho migrante, dando dinamismo e eficiência ao mercado de trabalho. Os trabalhadores começam a se especializar em seus ofícios, naquilo que fazem de melhor.”

Hunt chama atenção ao fato de que se houver uma priorização de “Imigrantes com boas habilidades” o americano que será afetado não será o com escolarização baixa ou mínima, mas o com uma escolarização média. “Afetará seus salários, reduzindo-os consideravelmente”, afirma.

Para a economista, há “prós e contras” em adotar um sistema de méritos. “O melhor sistema de imigração seria o focado na economia do país, com foco especificamente no mercado de trabalho, no empregador, mas ainda não está claro teoricamente e empiricamente que o sistema de pontos/mérito é o melhor deles”, conclui. “Mas o que está claro é que o imigrante sem habilidades deve continuar sendo admitido no país, com ou sem sistema de pontos. A economia norte-americana ganha com ele.”

“O quarto e último pilar é o de proteger a família acabando com a migração em cadeia. Sob o atual sistema, um único imigrante pode trazer um número ilimitado de familiares para dentro dos EUA. Sob o nosso acordo, nós vamos focar somente na família, em primeiro grau, limitando tutela de menores e agregados fora do círculo de um grau mais distante. Essa vital reforma é necessária, e não apenas necessária para a nossa economia, mas para a nossa segurança e para o nosso futuro. Há algumas semanas, dois ataques terroristas em Nova York só foram possíveis por causa do sistema de “loteria de vistos” e de migração em cadeira. Na era do terrorismo, esses programas apresentam um risco que nós não podemos mais assumir.”

“Ligar imigração com terrorismo é, no mínimo exagero”, afirmou o jornal espanhol El País horas depois do pronunciamento de Trump. “A imigração pouco tem a ver como terrorismo nos EUA. No último meio século, entraram no pais 59 milhões de estrangeiros. Essa imensa corrente faz com que 14% da população norte-americana atual tenha nascido no exterior”, diz o jornal. “E vincular esses cerca de 45 milhões de habitantes aos atentados jihadistas é um exagero”, afirmou Juan Martinez, correspondente do jornal espanhol em Washington.

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