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sexta-feira, março 29, 2024

Migração, acolhida, escuta e identidade

Para os migrantes, com efeito, não faltam a coragem e a criatividade. O que falta, antes de tudo, é a atenção de alguém

Por Pe. Alfredo J. Gonçalves

No universo majoritariamente urbanizado dos dias atuais, alguns dos ingredientes que formam a cidade, a metrópole e a megalópole são o ruído e o corre-corre, a violência e a solidão. De resto, esta última, rima com multidão. Onde muitos indivíduos se juntam e se acotovelam, formando rios de gente, a solidão torna-se inevitável e menos suportável. Pessoas se cruzam e recruzam, tropeçam umas nas outras, mas daí a uma relação mesmo que mínima a distância é grande. O próprio atropelo nos meios de transporte, nas lojas de comércio, nas repartições públicas ou nos serviços em geral, acrescido da disputa frenética por espaço, impede um conhecimento mais íntimo. Com boa razão se diz que “a multidão é o melhor lugar para se esconder”.

Com a Revolução Industrial, os países centrais da Europa assistiram à convergência de milhares de camponeses sobre a cidade, onde a oficina se convertia em fábrica. Ao mesmo tempo que o campo se esvaziava, os subúrbios urbanos inchavam, a ponto de transbordar no movimento dos emigrados para as terras novas das Américas. A partir do camponês simples, rude e rústico, era necessário forjar na indústria incipiente os “soldados da manufatura”. Mas fazia-se igualmente necessário criar uma massa de trabalhadores “descartáveis”, origem do exército de reserva, cuja mão-de-obra ociosa haverá de servir aos capitalistas da primeira hora como força de barganha para reduzir salários e aumentar os ganhos. O lucro passará a ser o motor da economia.

A fumaça dessa floresta de chaminés, o rumor surdo das máquinas a vapor e o burburinho dos operários em seu vaivém, além de poluir ruas e rios pela queima do carvão – combustível das primeiras indústrias – embruteceu os ouvidos da cidade. O processo não será tão diferente para os países periféricos da América Latina, África e Ásia, os quais no decorrer do século XX e início do XXI, passaram pelo mesmo êxodo da zona rural para o mundo urbano. Em ambos os casos, ao lado dos avanços da medicina e do conforto, aboliram-se as noites e as distâncias, o repouso e a tranquilidade. Os meios de transporte e de comunicação, cada vez mais intensos, rápidos e sofisticados, aliados à luz da energia elétrica, concedem o dom de estar em vários lugares quase simultaneamente, mas de maneira toda particular a capacidade de prolongar pela noite adentro a jornada de trabalho. Progride velozmente a ideia de “24h por dia”.

Nesse percurso tortuoso e acidentado, rompem-se com frequência a atenção para com o outro e a escuta. A cidade não dispõe de ouvidos. Tudo e todos orquestram um barulho contínuo, tanto mais estridente quanto mais modernos os inventos que vão se acumulando. Ronco de motores (automóveis, ônibus e caminhões); buzinas de tonalidades e intensidade distintas; sirenes das ambulâncias, carros de polícia e veículos de bombeiros; o zunzum ininterrupto e a gritaria nos centros comerciais; disputa por fregueses, por espaço e por mercadorias – o cotidiano ganha um ritmo veloz e rumoroso, atropelando vozes, emoções e sofrimentos. Feridas e chagas, cicatrizes e hematomas tendem a se ocultar por trás da inviolabilidade dos lares. Alegria transparente ou pranto desnudo nem sempre são benvindos. Risos e lágrimas soem permanecer silenciados ou sufocados, quando não disfarçados e engolidos à força.

Disso resulta que, em meio à agitação febril e à multidão irrequieta, dor, solidão e sofrimento buscam desesperadamente um ouvido. Busca que se acentuou drasticamente com os efeitos da pandemia e, de forma particular, para aqueles que chegam de fora, que falam outra língua ou que se orientam por valores e costumes de outra cultura. Busca que não corre necessariamente atrás de respostas e soluções para os próprios problemas. Para estes, com efeito, não faltam a coragem e a criatividade. O que falta, antes de tudo, é a atenção de alguém. Alguém que saiba escutar e calar, que chame pelo nome, que desvende as memórias mais sagradas no tesouro do coração e da alma. Mas especialmente alguém que seja capaz de devolver o ânimo e a força para juntar os cacos e fragmentos da identidade perdida – possibilitando assim o resgate da dignidade humana devastada, distorcida e desfigurada pela travessia.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, é vice-presidente do SPM

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