Por Marcia Vera Espinoza, Gisela P. Zapata e Flávia R. de Castro
Da LSE Latin America and Caribbean
Organizações da sociedade civil ofereceram apoio vital a populações migrantes e refugiadas no Brasil durante a crise do COVID-19. Muitas delas foram forçadas a adaptar seus programas a fim de lidar com a crescente demanda por ajuda emergencial, com a expansão do uso das tecnologias permitindo um novo modelo híbrido de trabalho. Porém, mesmo com todos os problemas que ajuda a solucionar, a tecnologia também pode levantar novas questões e, em última análise, não deve ser vista como substituto para soluções duráveis.
O sistema de saúde integrado, gratuito e universal do Brasil parecia posicionar o país em melhores condições para combater a pandemia de COVID-19 em relação a outros Estados latino-americanos, mas, rapidamente, o Brasil passou a ser visto como um “alerta para o mundo inteiro” quando o número de infecções e óbitos alcançou níveis recordes. A alarmante desigualdade de renda, as políticas de migração do presidente Bolsonaro e o fechamento de fronteiras fizeram com que as populações migrantes e refugiadas estivessem entre as mais afetadas pela pandemia. Coube às organizações da sociedade civil, portanto, desempenhar um papel fundamental no apoio a essas comunidades.
Como parte de nossa pesquisa inter-regional sobre migração, pandemia e sociedade civil, entrevistamos representantes de ONGs, associações religiosas e organizações lideradas por migrantes que trabalham com populações de migrantes e refugiados em todo o Brasil. Embora atividades e programas variem de acordo com a experiência, arranjos institucionais e financiamento de cada uma dessas organizações, tornou-se evidente que a área de crescimento em termos de apoio durante a pandemia foi, especialmente, a assistência de emergência para atender às necessidades básicas dessa população.
Conforme nosso relatório de pesquisa revela, essa assistência incluiu o fornecimento e distribuição de cestas básicas e vales-alimentação, kits de higiene, equipamentos de proteção individual (EPI) e pagamentos de aluguel de curto prazo, entre outros. Em muitos casos, essa assistência também envolveu parcerias com outras organizações da sociedade civil, bem como organizações internacionais e instituições governamentais locais. Mas, além de preencher as lacunas na prestação emergencial da assistência, as organizações da sociedade civil também tiveram um papel de liderança no fornecimento aos migrantes e refugiados de informações sobre a prevenção do COVID-19, sobre acesso à documentação e, também, sobre como solicitar o auxílio financeiro emergencial oferecido pelo governo brasileiro. Além disso, essas organizações forneceram aconselhamento jurídico, aulas de idiomas e outras habilidades de integração social, atuando, ainda, na defesa de direitos (advocacy).
Mas essas transformações nos meios e no escopo do trabalho das organizações da sociedade civil também criaram novos desafios, tanto online quanto offline.
Virada tecnológica
Como muitas organizações ao redor do mundo, as organizações da sociedade civil que atuam no país tiveram que mudar para modos híbridos de trabalho devido à exigência das medidas de distanciamento social, levando a um maior uso da tecnologia na prestação da assistência e, com isso, a menos atuações presenciais. O primeiro efeito dessa transformação foi a necessidade premente de investimento em tecnologia digital e conectividade, bem como no treinamento de funcionários e usuários dos serviços sobre como utilizar essas novas plataformas.
Trabalhar online também significou que algumas organizações tiveram que criar, reativar ou reorientar suas contas em redes sociais, enquanto também adotavam – e se adaptavam a – plataformas como WhatsApp, Zoom, Facebook, Google Meets e Youtube para oferecer programas e serviços, como treinamento remoto e curso de português.
Implementar essas novas formas de trabalho não foi nada fácil, trazendo desafios e oportunidades. Várias organizações da sociedade civil viram essa transição digital como uma oportunidade de alcançar populações além de seu escopo geográfico usual. A digitalização de alguns serviços também contribuiu para a criação ou expansão de parcerias com organizações em outras cidades, seja para compartilhar experiências ou para apoiar mutuamente atividades e trabalhos de advocacy. Como um membro da equipe de uma ONG em São Paulo observou:
“No ano passado, demos aulas de português para 415 migrantes. 30% deles não moravam em São Paulo. Agora estamos ajudando pessoas em 22 cidades e até pessoas em outros países. Atendemos pessoas da Venezuela e da Síria que ainda virão ao Brasil, porque já queriam chegar com algum conhecimento do idioma”.
Estas novas formas de trabalho também criaram alguns desafios, uma vez que em muitos casos os migrantes e voluntários não possuíam equipamento ou know-how para lidar com as novas tecnologias. Em alguns casos, isso fez com que o número de voluntários caísse em até 50%, o que também impactou o número de pessoas que as organizações poderiam atender. Outro membro da equipe de uma ONG em São Paulo lamentou:
“No geral, no final de 2020 tínhamos ajudado 50% menos refugiados do que no ano anterior, apenas cerca de 1000 pessoas de diferentes lugares. Em 2019, atendemos mais de 2300 pessoas.”
Essa situação foi ainda mais notável no Rio de Janeiro, onde uma organização religiosa teve que cessar o trabalho com voluntários para mitigar os riscos associados ao amplo acesso remoto dos dados pessoais de populações vulneráveis. A falta de atendimento presencial também dificultou a criação de um ambiente de confiança, que é visto como fundamental para assistentes sociais e outros profissionais que prestam apoio em saúde mental nessas organizações. Esses desafios tecnológicos levaram algumas organizações a mudar significativamente suas formas de trabalhar, o que, por sua vez, reduziu o número de pessoas que podiam atender e levou alguns funcionários a se sentirem sobrecarregados.
Barreiras digitais e inclusão dos migrantes
Para as organizações lideradas por migrantes, no entanto, o principal desafio era garantir o fornecimento de orientação pessoal para os recém-chegados e atividades socioculturais que promovessem sua inclusão. A incapacidade de realizar atividades presenciais – particularmente aquelas relacionadas à promoção cultural, celebração e intercâmbio – enfraqueceu significativamente a capacidade dessas organizações de gerar recursos financeiros. Um dos entrevistados que trabalha em uma organização da sociedade civil em Porto Alegre afirmou que isso significava, essencialmente, a perda de sua principal fonte de financiamento.
Para os próprios migrantes e refugiados, as medidas de distanciamento social e o uso de ferramentas tecnológicas, ao invés de atividades presenciais, foram considerados como prejudiciais à integração dessas populações e, possivelmente, também a sua luta por direitos básicos. Segundo funcionários de uma organização da sociedade civil em São Paulo, a falta de espaços físicos para interação entre migrantes e refugiados terá um impacto profundo em suas perspectivas atuais e futuras de integração na sociedade brasileira, tendo em vista que muitos enfrentam dificuldades de acesso à internet, serviços online e informações públicas sobre seus direitos.
No geral, a tecnologização da assistência e a capacidade das organizações da sociedade civil de transformar suas práticas usuais a fim de atender às necessidades básicas dos migrantes mostra a imensa capacidade dessas organizações de se adaptarem rapidamente em tempos de crise. No entanto, esse cenário também demonstra a posição frágil de migrantes e refugiados no Brasil, bem como sua vulnerabilidade elevada durante a pandemia. Muitas das organizações que participaram do nosso estudo relataram que continuarão com um formato híbrido no futuro, adotando alguns dos benefícios do suporte online e, ao mesmo tempo, reduzindo as restrições às atividades presenciais.
Contudo, essas organizações também enfatizaram a necessidade de deixar de fornecer assistência emergencial e se direcionar a atividades que promovam a integração de longo prazo e soluções duradouras para essas populações. Como nos disse um representante de uma organização religiosa em Boa Vista: “Precisamos pensar em estruturar nosso trabalho para soluções duradouras: acompanhar as famílias por um longo período de tempo, ajudando-as a resgatar sua dignidade e a serem autossuficientes. A ajuda é geralmente limitada no tempo e ninguém quer ser dependente para o resto de suas vidas…”
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• A versão original deste artigo, em inglês e português, pode ser acessada neste link