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quinta-feira, dezembro 26, 2024

Uma série sobre grave e generalizada violação de direitos humanos e o reconhecimento de refugiados pelo Brasil – parte 2: Síria

As mais de 5,5 milhões de pessoas sírias forçadas a fugir constituem o maior fluxo de refugiados do mundo. No Brasil, há em torno de 4 mil reconhecidas como refugiadas

Por Flávia Odenheimer
Do ProMigra

Nos últimos dez anos, aproximadamente 84 civis morreram por dia em decorrência direta da guerra na Síria, de acordo com a ONU. Este conflito, um dos eventos mais sangrentos da atualidade, já causou mais de trezentas mil mortes desde o seu início até hoje. 

As mais de 5,5 milhões de pessoas sírias forçadas a fugir constituem o maior fluxo de refugiados do mundo. No Brasil, há em torno de 4 mil reconhecidas como refugiadas, sendo quase a totalidade delas reconhecidas com base no conceito de Grave e Generalizada Violação de Direitos Humanos (GGVDH).

Este é o terceiro texto da série do ProMigra que aborda a temática de como o Brasil tem utilizado o conceito de GGVDH no contexto do reconhecimento de pedidos de refúgio, no qual será analisado o caso da Síria.

A guerra na Síria

O começo da década de 2010 foi marcado por um momento de insurgências em países do Oriente Médio e do norte da África, a “Primavera Árabe”. Foram diversos protestos e revoltas decorrentes da luta por democratização e do descontentamento geral da população em relação às condições de vida e à corrupção que as impactavam. Outra reivindicação importante era a cessação do estado de emergência, há quarenta e oito anos imposto à Síria. Neste contexto, no começo de 2011, o país foi palco de diversos protestos.

No início, o movimento foi pacífico por parte da população, mas contido pelo exército com violência. Em agosto de 2011, quatro meses após o início das manifestações, os protestantes começaram a recorrer à luta armada, e o que era uma onda de manifestações se transformou em uma guerra civil, reconhecida como tal desde 2012. O presidente Bashar al-Assad se recusou a deixar o governo, e os Estados Unidos e a União Europeia impuseram sanções ao país. Além do aspecto político, há um agravante religioso ao conflito, fundamentado na antiga oposição entre sunitas e xiitas, dois ramos do islamismo. Interesses externos passaram a ter influência sobre o conflito na Síria e houve intervenções de EUA, Rússia e outros países.

Os números sobre a guerra na Síria são impactantes. O número de mortes de civis nos últimos dez anos corresponde a 1,5% da população do país no início do conflito. No entanto, este número representa apenas as pessoas que morreram como resultado direto de operações de guerra. É preciso entender a extensão do conflito, a imensidão de civis que morreram por não ter como acessar o sistema de saúde, por não ter o que comer, por não ter acesso a água potável, além daqueles que morreram em trânsito na busca por sobrevivência.

O reconhecimento de GGVDH no caso da Síria

Em 24 de setembro de 2013, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) aprovou a Resolução Normativa Nº 17, que regulamenta a concessão de “visto apropriado a indivíduos forçosamente deslocados por conta do conflito armado na República Árabe Síria.” 

Alguns argumentos sustentam a decisão do CONARE. A crise humanitária e o grande número de pessoas refugiadas em decorrência da guerra são apontados como fatores primordiais para a concessão do visto excepcional. São colocadas também a existência de uma larga população Síria no Brasil e a conexão histórica entre os dois países.

Um ponto importante da resolução é o reconhecimento da dificuldade que pessoas sírias enfrentam no processo de deslocamento até o Brasil, já que o reconhecimento de refúgio só pode ser feito em território brasileiro. Além disso, o CONARE entende que muitas vezes estas pessoas não conseguem cumprir os requisitos exigidos para a obtenção do visto que lhes permite entrar no país.

Por fim, a resolução justifica a sua existência considerando a “excepcionalidade das circunstâncias presentes e a necessidade humanitária de facilitar o deslocamento desses indivíduos ao território brasileiro, de forma a lhes proporcionar o acesso ao refúgio.”

Desta forma, pessoas da Síria ou de países vizinhos cujas vidas foram afetadas pela guerra podem receber um visto apropriado para entrar no território brasileiro. A Resolução Normativa N°17 de 2013 foi prorrogada pela Resolução Normativa N°20 de 2015.

Em 2020, o CONARE emitiu a Nota Técnica N° 19, um relatório que reconhece a Grave e Generalizada Violação de Direitos Humanos na Síria a partir de um Estudo de País de Origem (EPO) com base na Declaração de Cartagena de 1984. O relatório analisa a violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça de direitos humanos e as circunstâncias que perturbam a ordem pública, como apontado a seguir:

  • Violência generalizada – Alto número de mortes causadas por todos os lados do conflito, uso indiscriminado de armamentos considerados ilegais por diversas convenções internacionais (como armas químicas e bombas incendiárias), diversas pessoas feridas, aleijadas e mutiladas;
  • Agressão estrangeira – Países que realizaram ataques em território sírio, independentemente do lado que tomaram: Estados Unidos (liderou uma coalizão na qual outros países como Reino Unido, França e Itália participaram), Turquia, Irã, Israel, Rússia, Coalizão de países árabes do Golfo Pérsico (liderada pela Arábia Saudita, contou com a participação de outros países como Kuwait e Qatar);
  • Conflitos internos – Participantes dos conflitos internos: Forças Sírias de Bashar al-Assad, Rebeldes (Exército Livre da Síria, Jihadistas Nacionalistas, Frente da Conquista do Levante), Estado Islâmico do Iraque e Síria, Unidades de Proteção Popular Curdas, Forças Democráticas Sírias, Hezbollah e Milícias Xiitas Estrangeiras;
  • Violações maciças dos direitos humanos – Diversas violações reportadas como desaparecimento forçado, prisões arbitrárias, limitações ao direito de locomoção, deslocamento forçado, recrutamento forçado, sequestros, tortura, violência sexual, limitações de direitos de minorias;
  • Circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública – Diversas circunstâncias perturbam a ordem pública na Síria como processo eleitoral questionável e não-democrático, controle da oposição, crise na economia, saúde, trabalho e educação, restrições à liberdade de expressão, reunião e acadêmica, poder judiciário parcial e sujeito à interferências externas, ausência do respeito ao devido processo legal e desrespeito ao direito à propriedade.

Além do pedido de refúgio, pessoas afetadas pela guerra na Síria podem obter visto temporário e autorização de residência para fins de acolhida humanitária. Ao chegar ao Brasil, estas pessoas têm um prazo de 90 dias para se registrar na Polícia Federal, recebendo automaticamente residência temporária por dois anos. A escolha entre o caminho da regularização migratória ou do pedido de refúgio é individual e é muitas vezes baseada nas exigências de documentação de cada um dos processos.

Uma vez no Brasil, pessoas sírias, como quaisquer migrantes, têm direito de acesso à saúde, educação, cultura e trabalho e podem emitir documentos como CPF e carteira de trabalho. Além disso, com o cumprimento dos devidos prazos, podem se naturalizar brasileiras.

A aprovação da Resolução Normativa facilitou a vinda de pessoas afetadas pela guerra para o Brasil. A professora Lana Qasin* (nome fictício), síria de 38 anos, chegou ao país em 2015 e reside atualmente em São Paulo. Ela conta que a facilidade de obter o visto foi a principal razão para escolher vir para o Brasil. Lana*, reconhecida como refugiada, se naturalizou brasileira em outubro de 2021.

O reconhecimento da GGVDH é uma resposta do governo brasileiro a um dos maiores conflitos da atualidade. No entanto, é importante compararmos os discursos adotados ao reconhecer a GGVDH na Síria e na Venezuela. No primeiro país, os comentários são mais gerais, condenando a violência e a violação de direitos humanos, enquanto no segundo houve um apontamento específico e direto da responsabilização do governo, como apontado no primeiro texto desta série.

Sobre a autora

Flávia Odenheimer é licenciada em matemática e mestranda na Universidade de São Paulo, pesquisando a temática de educação de pessoas migrantes e em situação de refúgio. Já trabalhou com o tema no Brasil e no território palestino-israelense. Atualmente é coordenadora do GT Acadêmico do ProMigra.

Referências

NUNES, Bárbara Pereira de Mello. A grave e generalizada violação de direitos humanos enquanto hipótese de reconhecimento da condição de refugiado: Evolução normativa e aplicação prática. 2022. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022. DOI http://doi.org/10.14393/ufu.di.2022.108. Acesso em: 02.06.2023. 

VASCONCELLOS, Ricardo Rocha de. A situação da Síria frente à Ordem Jurídica

Internacional, 2018. Disponível em: <http://guaiaca.ufpel.edu.br:8080/bitstream/prefix/3940/1/SitSiriaOrdemJurInternacional.pdf> Acesso em: 02.06.2023. 

Hiperlinks

https://www.ohchr.org/en/stories/2023/05/behind-data-recording-civilian-casualties-syria

https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/o-que-e-refugio/anexos/sei_08018-001832_2018_01-ntsiria.pdf

https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=258708

https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/o-que-e-refugio

https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/35288

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