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domingo, abril 28, 2024

Uma série sobre grave e generalizada violação de direitos humanos e o reconhecimento de refugiados pelo Brasil – parte 4: Iraque

Como a decisão do CONARE sobre o Iraque pode revelar a complexa relação entre conflitos sectários, burocracia e política externa

Por Ieda Giriboni
Do ProMigra

Em um primeiro olhar, pouco parece unir o Brasil à instabilidade política de décadas no Iraque. Mas foi em Bagdá, há exatos vinte anos, que o Brasil perdeu um de seus mais habilidosos cidadãos: o diplomata Sérgio Vieira de Mello faleceu em 19 de agosto de 2003, vítima de um atentado, no ápice de uma carreira que muito serviu aos refugiados no mundo todo. E hoje, em 2023, o Brasil acolhe mais de 300 iraquianos, refugiados dessa instabilidade que se tornou cada vez mais complexa com o passar dos anos.

Este texto integra a série sobre como o Estado brasileiro vem utilizando o conceito degrave e generalizada violação de direitos humanos para reconhecer refugiados, uma produção do ProMigra em parceria com o MigraMundo. O assunto é o Iraque: falaremos dos fatores que levaram ao reconhecimento, pelo CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), da situação de grave e generalizada violação de direitos humanos no país, bem como dos fatores políticos que extrapolam a mera aplicação dos critérios técnicos do refúgio.

O contexto analisado pelo CONARE

Conforme mencionado em outros textos dessa série, o CONARE, a partir de 2019, passou a adotar um procedimento específico para atribuir o status de refugiado com base no inciso III do artigo 1º da Lei de Refúgio (Lei nº 9.474/1997), o qual determinada que o Brasil reconhecerá como refugiados aqueles que são obrigados a deixar seu país de nacionalidade devido a grave e generalizada violação de direitos humanos. Assim, verificando certos critérios, o comitê pode declarar a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos em determinado país e adotar um procedimento acelerado para atribuir o status de refugiado aos cidadãos que solicitam refúgio no Brasil.

Esses critérios são (i) a violência generalizada, (ii) a agressão estrangeira, (iii) conflitos internos, (iv) violação maciça de direitos humanos ou (v) outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública, e todos eles foram analisados pelo CONARE no caso do Iraque, em um contexto marcado por conflitos sectários de natureza étnica-religiosa:

  • Violência generalizada: Desde a queda do regime de Saddam Hussein, o Iraque se tornou palco de tensões entre sunitas e xiitas, árabes e curdos, e entre esses grupos e minorias, como cristãos, yazidis e turcomenos, além de ser palco de ataques do Estado Islâmico e de grupos paramilitares, o que expõe o indivíduo a sérios riscos de segurança.
  • Agressão estrangeira: Na época em que o estudo do CONARE foi realizado (entre 2019 e 2020), ocorriam recorrentes bombardeios aéreos pelo exército dos Estados Unidos e pelo Irã, somados ao recrudescimento do conflito entre o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e a Turquia, resultando na morte de civis.
  • Conflitos internos: Há elevado número de fatalidades e incidentes (incluindo batalhas, atividades estratégicas, protestos, violência contra civis, entre outros) decorrentes do conflito entre sunitas e xiitas e entre o governo iraquiano e o Estado Islâmico. Desde 2014, o número de grupos armados aumentou, e a distinção entre forças estatais e não-estatais nem sempre é clara.
  • Violação maciça de direitos humanos: O CONARE considerou haver no Iraque uma negação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de forma grave e sistemática, havendo uma quantidade elevada de deslocados internos e de pessoas que necessitam de alguma forma de assistência humanitária.
  • Outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública: Entre as condições que impedem o funcionamento harmônico e normal das instituições, o CONARE considerou os mortos, feridos e desaparecidos durante protestos como decorrência do uso excessivo de força por parte das autoridades, além da indisponibilidade da proteção estatal para membros de minorias religiosas e étnicas, palestinos, pessoas LGBTQI+ e vítimas de violência doméstica, de gênero ou relacionada à honra.

Assim, o comitê concluiu pela existência de uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos no Iraque, em harmonia com notas técnicas do Acnur nesse sentido e com a recomendação do Ministério das Relações Exteriores. De acordo com dados de janeiro de 2023 do CONARE, o Brasil reconheceu 358 refugiados iraquianos entre 1985 e 2022, sendo a nona nacionalidade mais frequente entre os refugiados reconhecidos pelo Brasil.

Para além da análise técnica: os fatores políticos

Apesar dos esforços internacionais no sentido de promover o refúgio enquanto instituição apolítica, como faz, por exemplo, a Declaração de Cartagena, é relevante considerar os fatores políticos internos que motivam as decisões sobre refugiados, se a intenção é compreender a pragmática por trás da aplicação do instituto do refúgio. Afinal, raramente os países tratam do tema tendo em vista apenas motivos humanitários, havendo também a consecução de outros objetivos[1].

Desse modo, é importante lembrar que o reconhecimento técnico da situação de grave e generalizada violação de direitos humanos no Iraque está inserida em um contexto político: essa decisão do CONARE não representa a mera subsunção da Lei de Refúgio e dos critérios técnicos ao caso concreto do Iraque, mas sim, é resultado de escolhas do governo. A tarefa agora é compreender quais fatores favoreceram tal decisão do CONARE.

No âmbito do Conare

Uma maneira possível de iniciar essa investigação é a partir do que foi discutido sobre o Iraque nas reuniões do CONARE, o que poderia oferecer pistas quanto às prioridades do governo no assunto dos refugiados. A primeira menção ao país ocorre na reunião plenária do comitê de setembro de 2018 – último ano do governo de Michel Temer – e nela o Coordenador-Geral do CONARE apenas informa aos outros membros que o comitê passará a deliberar sobre a situação do Iraque, do Afeganistão e da Venezuela, não havendo debate sobre o assunto (132ª Reunião Ordinária). Dessa forma, parece que o CONARE foi instado, por outras instâncias, a decidir sobre esses países, pois a necessidade desse reconhecimento não teria nascido do órgão responsável pela proteção dos refugiados.

Na reunião plenária seguinte (133ª Reunião Ordinária), o Coordenador-Geral retoma o assunto, explicando que a necessidade de verificar a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos nos países mencionados decorre das propostas de modernização dos procedimentos do comitê, bem como de objetivos operacionais, de padronização e de eficiência. Na sequência, são expostos os critérios de Cartagena e como estes facilmente se aplicariam aos casos do Iraque e do Afeganistão. Ou seja, no âmbito do CONARE, a análise da situação de grave e generalizada violação de direitos humanos derivou de preocupações burocráticas e procedimentais, sendo o caso do Iraque, ao lado do Afeganistão, um caso-modelo para a aplicação do novo procedimento. Não é segredo que os governos de Michel Temer (2016-2018) e de Jair Bolsonaro (2019-2022) possuíam uma agenda de otimização burocrática, o que abrangia a revisão do procedimento de refúgio.

Outra evidência que sustenta a hipótese de que o reconhecimento da situação de grave e generalizada violação de direitos humanos no Iraque deveu-se antes a preocupações burocráticas do CONARE é o fato de que essa decisão não foi noticiada à época. No contexto da oposição político-ideológica do governo Bolsonaro ao governo venezuelano, o reconhecimento dessa situação no caso da Venezuela foi amplamente divulgado pelo comitê, somando-se ao fato de ter sido o país que inaugurou esse novo procedimento, reduzindo drasticamente o número de solicitantes de refúgio no Brasil. No caso do Afeganistão, o CONARE divulgou a decisão sobre o país após vasta pressão da sociedade civil nesse sentido, incluindo do próprio ProMigra. Já o Iraque não foi objeto de notícia própria, mesmo o CONARE reconhecendo a situação desde 02 de dezembro de 2020 (151ª Reunião Ordinária). Dessa forma, a questão iraquiana não foi alvo de debate, nem no âmbito interno no CONARE, nem entre o comitê e a sociedade civil, o que aponta para o caráter instrumental dessa decisão.

No contexto das relações exteriores do Brasil

Mas essas razões instrumentais por trás da decisão sobre o Iraque não esgotam a compreensão do tema. Afinal, entre os 195 países do mundo, por que foi escolhido logo o Iraque para essa análise? O contexto político da decisão, especialmente no campo das relações internacionais, pode fornecer mais pistas.

Um aspecto marcante do contexto da decisão era o alinhamento pró-Estados Unidos do governo Bolsonaro, que se traduzia sobretudo ao nível discursivo – não nos esqueçamos da escolha de um lado nos conflitos árabe-israelenses (pró-Israel) inspirada por Donald Trump e da primeira crise diplomática do então governo, a qual envolveu os países árabes e foi causada por declarações anunciando a intenção de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Em escritos de Ernesto Araújo, o então ministro das Relações Exteriores advogava por um alinhamento contundente a um Ocidente liderado pelos Estados Unidos, defendendo o valor de batalhas culturais na política internacional.

Por sua vez, o então presidente americano e seus representantes afirmaram reiteradamente o combate ao Estado Islâmico como uma das prioridades da política externa. No centro desses discursos estava o Iraque, tomado como país assolado pelo terrorismo. E de modo similar ao que ocorreu com outros posicionamentos americanos, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro incorporou essa prioridade aos discursos oficiais: em diversas oportunidades, Araújo declarou que o Itamaraty priorizaria o combate ao terrorismo e a luta contra o terrorismo especificamente no Iraque, e demonstrou reiterado apoio às ações americanas no país.

Nesse sentido, é possível especular que a inclusão do Iraque na agenda de modernização procedimental do CONARE está inserida em um contexto político mais amplo de alinhamento com os Estados Unidos, em que a política externa brasileira emulava certos pressupostos e posicionamentos da política externa americana. Assim, o Iraque seria uma escolha óbvia para testar a aplicação dos critérios de grave e generalizada violação de direitos humanos, pois representaria o país palco da luta contra o terrorismo, a qual passou a integrar as prioridades brasileiras por influência americana.

Dessa forma, o Iraque configura um interessante caso de utilização do conceito de grave e generalizada violação de direitos humanos pelo CONARE. A partir dele, é possível traçar conclusões não apenas sobre a aplicação dos critérios técnicos a uma complexa situação concreta de conflitos sectários duradouros, mas, também, sobre as relações entre refúgio, burocracia e política externa. Portanto, desde a dolorosa perda de Sérgio Vieira de Mello, o Iraque e o Brasil seguem com seus destinos entrelaçados, em uma complexa relação.

Sobre a autora

Ieda Giriboni é graduanda na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membro do ProMigra e pesquisadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas da FGV.

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