Fact-checking: MigraMundo comparou discurso do presidente dos EUA na Assembleia Geral da ONU com dados oficiais e opiniões de especialistas
Por Victória Brotto
Em Estrasburgo (França)
O presidente dos EUA, Donald Trump, chocou o mundo com sua linguagem agressiva em seu primeiro discurso na 72ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, na última terça-feira (19). Em frente aos chefes e representantes dos 193 Estados-membros das Nações Unidas, Trump, que usou 29 vezes a palavra “soberania”, falou sobre priorizar os Estados Unidos em seu governo, fortalecer as fronteiras e chamou ainda o fluxo migratório atual de “descontrolado”.
Trump enfatizou ainda que os refugiados devem ser assentados fora dos EUA, argumentado que “bilhões e bilhões de dólares norte-americanos” são enviados a países como Turquia e Jordânia para que recebam refugiados de guerras como a que ocorre na Síria.
O MigraMundo reuniu as frases do republicano a respeito da temática migratória e as confrontou com números oficiais da ONU e do próprio governo dos EUA, junto com estudos e análises de especialistas no assunto. Confirma a seguir:
Trump: “Nós procuramos uma melhora em nosso programa de reassentamento de refugiados que possa ajudar as pessoas que tem vivido situações horríveis de ameaça de vida (…)”
Fact-checking: Na verdade, a administração de Donald Trump tem dificultado o acesso aos EUA de refugiados que estão fugindo de “situações horríveis de ameaça de vida”, como a guerra na Síria e na Líbia ou a fome na Somália e a guerra civil no Sudão. Desde que o republicano assumiu a presidência dos EUA, o número total de asilos concedidos caiu dramaticamente. De acordo com pesquisa divulgada em abril deste ano pelo centro norte-americano de pesquisas Pew Research Center, os dados do governo norte-americano mostraram uma redução de quase 60% no número de refugiados aceitos no país em menos de 6 meses. De Outubro de 2016 a Março de 2017, o número foi de 9,945 para 3.316.
No dia 25 de janeiro de 2107, Trump, em seus primeiros dias como presidente, sancionou e executou um decreto-lei que suspendia, por 120 dias, a entrada de cidadãos do Iraque, Líbia, Somália, Sudão e Iêmen. Já os sírios ficaram impedidos indefinidamente de entrar nos Estados Unidos.
A lei assinada por Trump – e depois revista por ele mesmo em 06 de março devido a diversas intervenções judiciais – cortou o orçamento do programa acolhimento de refugiados pela metade. Com o corte, em 2017, os Estados Unidos receberão 50.000 refugiados, menos que a metade dos 110.000 previstos.
Trump: “…e um programa que possa também reabilitá-las a voltar para suas casas, como parte de um processo de reconstrução de seus países.”
Fact-checking: Os refugiados que chegam hoje nos Estados Unidos e entram com um pedido de asilo podem esperar até 24 meses para terem seus casos julgados. Isso porque Donald Trump colocou a análise dos perfis dos refugiados feitos pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) e por Agências Internacionais como Cruz Vermelha debaixo da tutela do Departamento Nacional de Segurança e de agências federais de investigação, como a CIA, o que torna o processo mais moroso.
E quanto mais o migrante espera por ser reconhecido como refugiado, maior o tempo que ele levará para se integrar na sociedade local, se restabelecer financeiramente e, futuramente, voltar ao seu país.
Trump: “Pelo preço de um assentamento nos EUA, nós podemos assistir mais de dez refugiados em países próximos de suas casas”.
Fact-checking: Trump está certo quando diz que custa mais assistir um refugiado dentro dos EUA do que fora – mas apenas a curto prazo. Porque, a longo prazo, um refugiado é muito mais rentável para o país que o acolhe dentro de suas fronteiras.
De acordo com o último balanço divulgado pelo Departamento de Estado norte-americano, US$ 358 milhões de dólares foram enviados em assistência humanitária para três países neste ano até setembro: Turquia (US$ 90 milhões), Líbano (US$ 167 milhões) e Jordânia (US$ 101 milhões). Já o valor gasto, nestes mesmos meses pelo governo dos EUA, para receber e assistir os migrantes no próprio país foi de US$ 1,559 bilhão. Esses montante inclui desde assistência médica e social, passando por aulas de inglês e treinamento técnico para o mercado de trabalho, até os gastos do próprio Departamento de Migração com salários de funcionários e etc.
Mas, a longo prazo, o refugiado assistido logo ‘pagará a conta’ ao governo que lhe acolheu. De acordo o estudo “Os ganhos econômicos e sociais dos Refugiados nos Estados Unidos: Evidências da ACS”, um refugiado que chegou aos EUA há 25 anos, já superou, com suas contribuições em impostos e taxas, em 25 mil dólares o que lhe foi dado em assistência. Os autores usaram como base os dados do centro de pesquisa nacional American Community Survey (ACS).
“Não existe nenhuma pesquisa credível que eu conheça que mostre que o refugiado não seja nada além do que um grande e rentável investimento”, afirma Michael Clemens, diretor do Departamento de Migração e Desenvolvimento do Centro Global de Desenvolvimento, em Washington.
(Observação: nos Estados Unidos, o refugiado deve também reembolsar o preço de sua passagem aérea ao governo).
Trump: “Nós temos aprendido que, a longo prazo, um fluxo migratório descontrolado prejudica ambos os lados; os países de origem e os países de destino. Para os países de origem, a diminuição de sua população faz com que o debate politico se empobreça e, assim, as reformas econômicas e políticas necessárias se tornam inviáveis. Para os países de acolhida, os custos de uma migração descontrolada recaem sobre os seus cidadãos menos favorecidos, que já são excluídos das políticas locais e da mídia.”
Fact-checking: Kalena Cortes, professora da Universidade de Austin, no Texas, acompanhou o caso de refugiados e não refugiados recém-chegados aos EUA nos anos 1970. E o seu estudo, intitulado “Os refugiados são diferentes dos migrantes econômicos? Algumas evidências empíricas da heterogeneidade dos grupos de imigrantes nos Estados Unidos”, constatou que, após alguns anos, o refugiado conseguiu se restabelecer, abrir seu próprio negócio e gerar renda e emprego não só para si mesmo e sua família, mas também para outros refugiados de sua nacionalidade e também para os locais.
Em seu novo livro “Refúgio: repensando um sistema quebrado”, os professores Alexander Betts, diretor do Centro de Estudos de Oxford para Refúgio, e Paul Collier, também de Oxford, afirmam que os refugiados podem ser uma solução para a economia local e, em muitos casos, eles geram emprego e renda.
“Em Uganda, encontrei um jovem refugiado do Congo que queria fazer cinema. Ele, com os poucos recursos que tinha e graças ao acesso dado pelo governo local ao mercado de trabalho, conseguiu montar sua própria produtora e, de maneira amadora, estava abrindo um negócio e gerando emprego”, afirmou Betts.
“Não há uma invasão [de refugiados]”, diz Hein de Haas, vice diretor do Instituto Internacional de Migração da Universidade de Oxford e professor de Estudos Migratórios da Universidade de Maastricht, na Holanda. “O percentual da população que migra tem se mantido estável, entorno de 3% (…) Os migrantes também são atraídos pela situação econômica do país de destino, economias fortes e mercados de trabalho com oportunidades. E, normalmente, os migrantes contribuem mais para esses mercados de trabalho do que tiram algo deles”, acrescenta. “E curiosamente, quanto mais rico um país que era pobre se torna, maior a tendência de seus cidadãos migrarem, não menos – é a função do desenvolvimento, o desenvolvimento de uma nação a faz migrar mais, ela [a migração] não é algo que deve ser interrompido”, afirma Haas. “O problema é a xenofobia, não o fluxo de pessoas. Aqueles que veem a migração como um problema estão ignorando a realidade, qualquer tentativa de controle de fronteiras é delírio. Ser contrário à migração é como ser contrário ao envelhecimento. O migrar já está acontecendo, é natural. Não há nada que possamos fazer para impedir.”