Por Lya Maeda
A situação de descontrole da pandemia de Covid-19 no Brasil, que já fez mais de 500 mil vítimas só no país, repercute diretamente na imagem junto ao exterior. Mesmo em um momento no qual alguns países ensaiam uma reabertura de fronteiras, o Brasil fica longe de aproveitar essa onda. Em razão disso, muitos brasileiros veem seus planos pessoais e profissionais de realizar estudos ou de trabalhar no exterior frustrados ou adiados indefinidamente.
Com o viés de criar uma rede de apoio e pressão popular para a permissão do ingresso, começaram a surgir grupos e perfis em redes sociais, que buscam reunir estudantes, pesquisadores, au pairs, voluntários e trabalhadores que tiveram seus sonhos de ir para o exterior adiados.
O MigraMundo conversou com os movimentos que aglutinam tais casos, pleiteando a possibilidade de sua admissão em diversos países europeus. Algumas de suas histórias podem ser conhecidas a seguir.
Na União Europeia, embora haja uma orientação geral para a entrada no bloco, cada país pode determinar seus próprios requisitos para admitir alguém em seu território, o que pode permitir a entrada de portadores de visto de emprego ou mesmo de estudantes, a depender da decisão daquele país específico.
Alemanha
Nicole Nogueira é advogada, mora em Lauro de Freitas (BA) e é apaixonada pela Alemanha há anos. Depois de passar uma temporada realizando um curso preparatório para o mestrado na cidade de Wiesbaden, em janeiro de 2019, ela sempre buscou novas oportunidades para retornar ao país e, em junho de 2020, foi aprovada para um intercâmbio dos sonhos: ser voluntária em uma igreja na cidade de Kassel, onde ela poderia aperfeiçoar seu alemão e trabalhar no ministério de jovens, o que era o melhor dos mundos para ela.
Desde sua aprovação, Nicole tenta, de alguma forma, conseguir uma permissão para entrar na Alemanha, trocando mais de 200 e-mails para tanto. Porém, até o momento, ela permanece aguardando que o governo alemão permita sua entrada no país – mesmo com alojamento garantido e apoio dos pastores da igreja local, ela corre o risco de perder sua vaga. “Estou arrasada, pois eles possuem datas fixas de entrada de voluntário, todo dia 1º de setembro. Minhas malas estão prontas desde 2019. Se eu não chegar a tempo ambos seremos prejudicados. Não é só uma grande oportunidade, é o meu chamado”, disse Nicole ao MigraMundo.
Nicole é uma das representantes do grupo “Barred From Germany”, que reúne mais de 250 brasileiros que estão aguardando a flexibilização das regras de entrada na Alemanha. Desde 29 de janeiro deste ano, há uma proibição geral de entrada e transporte em caso de viagens do Brasil para a Alemanha – apenas cidadãos alemães ou pessoas com residência e direito de permanência naquele país podem retornar ao país, bem como os seus cônjuges, companheiros (residentes na mesma casa) e filhos menores, devendo apresentar diversos documentos para provar a veracidade de tal condição; além disto, há poucas exceções, focadas em empregados de organismos multilaterais, representações diplomática e empresas de transporte. Quem não se enquadrar nas poucas hipóteses de permissão de entrada, por mais que tenha visto válido para o país, não podem entrar – de acordo com o site da representação alemã no Brasil, “um visto que foi emitido não constitui uma autorização de residência que permite uma exceção aos regulamentos atuais”.
O caso de Nicole não é isolado. No grupo de brasileiros que pleiteiam a entrada na Alemanha, há famílias que venderam todos os seus bens para se mudar para o país e, agora, restam na dependência de familiares ou de aluguéis temporários para morar, aguardando ansiosamente alguma flexibilização na política migratória alemã. Há estudantes que correm o risco de perderem as bolsas, pesquisadores que não poderão realizar experimentos, au pairs cujas famílias as aguardam há mais de um ano, entre tantos outros casos que aguardam tal alteração na política de emissão de vistos e permissão de entrada.
Bélgica
De acordo com o site da embaixada da Bélgica no Brasil, as fronteiras belgas estão atualmente fechadas para as pessoas que estiveram em território brasileiro em algum momento nos 14 dias que precedem a chegada na Bélgica, “com exceção dos cidadãos e residentes belgas, de seus cônjuges ou parceiros ou filhos que vivem sob o mesmo teto, dos membros da tripulação e diplomatas (e assimilados), e, por fim, das pessoas que transitam pela Bélgica em direção a um país da Zona Schengen ou da União Europeia do qual possuem nacionalidade ou a residência principal, bem como das pessoas que transitam em direção a um país de fora da Zona Schengen ou da União Europeia”. Possuir visto não possibilita a entrada no país.
Mais do que isto, com a implementação de novas medidas restritivas ao acesso de brasileiros à Bélgica em abril de 2021, a emissão de vistos foi paralisada e aqueles que já tinham seus vistos emitidos não puderam mais embarcar para o país. Assim, estudantes e trabalhadores que planejavam sua ida ao país ficaram em uma situação delicada, pelo risco de perder suas bolsas e empregos por este impasse.
Por conta disto, mais de 50 estudantes e pesquisadores já admitidos em universidades belgas formaram o movimento “Étudier est Nécessaire” (“estudar é necessário, em tradução livre), pelo qual reivindicam que o estudo seja reinserido na lista de motivos essenciais para entrada na Bélgica.
Este é o caso de Isabella Prado, analista internacional formada pela PUC-MG e aprovada no mestrado em Política Internacional na KU Leuven na Bélgica e que já havia desistido de prosseguir com um mestrado na Itália pelas dificuldades de ingressar no país. Assim, quando a Bélgica anunciou novas restrições em 28 de abril deste ano, paralisando a emissão de vistos para estudantes, a pesquisadora viu seus sonhos mais uma vez colidindo com a política migratória europeia.
“Apesar do consulado estar recebendo as aplicações, não sabemos quando poderemos ter esses vistos aprovados para irmos à Bélgica, nem se há chance de perdermos nossas vagas nas universidades”, relatou Isabella ao MigraMundo. “Sempre sonhei em fazer um mestrado fora e quando decidi seguir uma carreira internacional, sabia que isso seria imprescindível. Perder essa oportunidade mais uma vez, além do prejuízo financeiro, colocará em cheque meus sonhos, meu futuro profissional e pessoal”.
França
Após um longo processo de candidatura, Vanessa Alvarez foi aprovada no mestrado dos seus sonhos, na Université de Paris I – Sorbonne. Porém, sua alegria durou pouco tempo: em 04 de junho, o governo francês realizou uma alteração nas restrições de entrada, classificando o Brasil como um país “vermelho”, o que apenas possibilitaria aos brasileiros entrarem no país por “motivos imperiosos”. O estudo e a pesquisa não foram considerados imperiosos e, neste sentido, até a emissão de vistos foi suspensa.
Embora a Índia também tenha sido classificada como país “vermelho”, já houve movimentação política que permitiu a emissão de vistos para estudantes e pesquisadores indianos. O mesmo não ocorreu para os brasileiros, sendo que, de acordo com Vanessa, ela e os mais de 900 brasileiros que se encontram em situação semelhante ainda aguardam uma posição dos governos francês e brasileiro. Mais do que isto, encontram-se sem retorno do Campus France, agência oficial do governo francês que fez a intermediação entre aplicantes brasileiros e universidades francesas e que, até o momento, não trouxe um posicionamento aos brasileiros.
Vale destacar que, quando da emissão do visto, o consulado francês costuma ficar com o passaporte do aplicante por 3 semanas. Mais do que isto, a França não reconhece as vacinas CoronaVac e a AstraZeneca CovidShield, fabricada na Índia e aplicada no Brasil, o que forçaria uma quarentena forçada de todos os brasileiros por no mínimo 10 dias na sua entrada na França, ainda que ele esteja vacinado – ou seja, há uma espera de no mínimo um mês para que os estudantes e pesquisadores possam de fato iniciar suas aulas e pesquisas em território francês – e com o início das aulas estabelecido pelas universidades francesas, aumenta a angústia dos aplicantes.
Por causa da atual situação da pandemia no Brasil, a mestre em direitos humanos Mônica* não consegue concluir aplicações para vagas de trabalho na França, mesmo tendo ampla experiência com o país onde cursou ensino médio e onde fez mestrado. Voltou ao Brasil por questões burocráticas e como forma de preparar um reingresso ao continente europeu, mas viu a tarefa se complicar com a classificação negativa que o país ostenta perante ao mundo em relação à Covid-19.
“Recebi ofertas de empresas francesas para trabalhar na França. Mas não consegui avançar nas entrevistas pelo Brasil estar na zona vermelha”, resume ela, que prefere não revelar o nome real por receio de que isso atrapalhe futuras candidaturas.
Itália
De acordo com Maria Eduarda Borges de Almeida, representante do Studiare è Una Necessità, movimento que pleiteia o acesso de estudantes e pesquisadores brasileiros à Itália, mais de 150 pessoas foram atingidas pela proibição de entrada e trânsito no território nacional italiano para as pessoas que tenham permanecido ou transitado no Brasil nos quatorze dias anteriores à viagem, medida promulgada em 16 de janeiro de 2021 e em vigor até, no mínimo, 30 de julho.
Em decorrência da proibição prolongada, há o risco do cancelamento de matrículas e mesmo de serem perdidas as bolsas de estudos a qualquer momento. Mesmo comprometidos com o estrito cumprimento das medidas sanitárias impostas pelo governo italiano, o que inclui a realização do PCR antes e após a viagem e uma quarentena em isolamento, não houve alteração na política oficial, o que torna ainda mais incerto o destino de tais estudantes.
Renata Santos, estudante de doutorado sanduíche da UFSC, aponta que esta é a sua última oportunidade de ir para o país europeu, que já foi adiada de fevereiro para setembro deste ano: “Eu não posso mais adiar minha bolsa, pois o prazo da conclusão do meu doutorado é em setembro de 2022 e a CAPES exige que estudantes de doutorado sanduíche voltem para o Brasil 6 meses antes do prazo da defesa. Ir em setembro é a minha última chance”.
Espanha
De acordo com Luiza Capatini, representante do movimento em defesa dos estudantes com vínculo com a Espanha, em decorrência da ordem de restrição emitida pelo governo espanhol em fevereiro deste ano, mais de 250 estudantes e pesquisadores tiveram seus vistos de estudo e pesquisa suspensos. Estudos e pesquisas que são resultado de anos de dedicação e esforços e que beneficiariam tanto os governos brasileiro quanto o espanhol.
Este é o caso de Lorena Fernandes, estudante de enfermagem na Universidade Estadual de Londrina, que foi a única selecionada em sua universidade para ser bolsista no programa Iberoamericanas do Santander para cursar um semestre na Universidade de Vigo, na Espanha. Com a pandemia, seus planos foram adiados – não apenas do intercâmbio, mas também o de colar grau.
“Com a pandemia, eu precisei adiar mais um semestre, ou seja, agora eu iria em janeiro para voltar em julho. Porém, como eu já estava no meu último ano, eu tive que escolher entre me formar ou atrasar um semestre para fazer o intercâmbio. Escolhi a segunda opção porque realmente é meu sonho ter uma educação internacional e multicultural, além de querer estudar os diferentes sistemas de saúde entre os dois países”, comunicou Lorena ao MigraMundo.
Com a documentação em dia e tudo pronto para embarcar, inclusive com casa pré-alugada na Espanha, veio o diagnóstico: Lorena tinha contraído Covid, desenvolvendo o quadro moderado da doença. Assim, quando ela finalmente estava pronta para embarcar em sua jornada, vieram as restrições do governo espanhol, que assim permanecem até hoje. “Precisei articular muito com a universidade e levei o semestre de forma online, com muitas dificuldades, pois eles já estavam em modo presencial. No começo eu tinha muita esperança que ainda daria tempo de eu ir, mas não aconteceu e meu visto venceu em 11 de junho”.
Lorena, no entanto, ajustou seus sonhos e recebeu uma ótima notícia: a aprovação com bolsa em um mestrado em outra cidade da Espanha. Mas as inseguranças sobre sua entrada na Espanha a deixa receosa em passar da euforia à frustração em decorrência da política migratória espanhola. Desta vez, no entanto, Lorena tem um apoio de colegas em situação parecida: “O movimento está sendo essencial para manter a esperança de que dessa vez dê certo!”.
“Como movimento Espanha, conseguimos contatos com alguns deputados e senadores no Brasil, e uma deputada na Espanha que tem nos dado apoio, e enviamos algumas cartas aos ministérios espanhóis explicando nossa situação. Como frente ampla dos países conseguimos apoio do Dep. Aécio Neves, Presidente das Relações Exteriores e Defesa Nacional para que nossa causa seja negociada com a Espanha, assim como o Dep. Pedro Lupion, que tem uma estreita relação com o governo espanhol, e conseguiu uma reunião com o Ministro de Relações Exteriores para entregar nossa carta unificada a ele”, informou Luiza Capatini, do movimento espanhol. “Por hora não temos respostas concretas de nenhum dos países, nem um posicionamento oficial do Itamaraty do que está sendo feito”.
Dinamarca
Se os brasileiros com permissão de entrada na Dinamarca estavam aflitos com seu acesso ao país, o endurecimento das medidas sanitárias no território dinamarquês em 21 de junho pioraram a situação.
Atualmente, com as novas regras, residentes de países vermelhos não podem entrar no país, independentemente de possuírem permissão de entrada – a Dinamarca, por não emitir vistos diretamente no Brasil, fornece uma carta indicando que aquela pessoa tem permissão de residência e, assim, no desembarque em terras dinamarquesas, é concluído o trâmite do visto.
De acordo com Yohanna Pinheiro, que conseguiu uma bolsa para estudar na Dinamarca por meio do programa Erasmus, até a mudança nas regras de admissão no país nórdico, quem tinha permissão de residência na Dinamarca, ainda que viesse de um dos países classificados como “vermelhos”, poderia entrar no país.
“Eu posso morar na Dinamarca, mas não posso entrar lá por ser brasileira. Isso é problemático porque eu não tenho nem opção de fazer quarentena em outro país”, resume.
Diante desse limbo, Yohanna viu nas mobilizações de brasileiros que tentam ingressar em outros países europeus uma forma de somar forças para tentar sensibilizar os goveros europeus a permitirem a entrada de estudantes.
“Nosso problema é o mesmo. Por sermos brasileiros, não podemos entrar. Então há toda essa iniciativa de tentar sensibilizar os governos europeus sobre a necessidade de permitir a entrada de estudantes e trabalhadores de longo prazo. São pessoas que vão ficar por bastante tempo e que não vão ficar transitando no país. Estamos plenamente abertos a fazer todos os procecimentos necessários para mitigiar qualquer risco de Covid-19. Queremos contribuir”.
O que dizem os consulados e o Itamaraty
O MigraMundo tentou entrar em contato com os consulados dos países citados pelos entrevistados. E os retornos obtidos mostram que o caminho para sensibilização dos governos europeus ainda é longo.
O Consulado da Bélgica informou que a emissão efetiva dos vistos no Brasil e nos outros países considerados “de altíssimo risco” para a Covid-19 está suspensa até nova ordem. “Os vistos relacionados a motivos de viagem essenciais, como por exemplo estudos ou trabalho, serão emitidos uma vez que o Brasil sair da lista dos países de altíssimo risco ou uma vez que recebermos novas instruções”, completou, por meio de nota.
O retorno do Consulado Geral da Espanha em São Paulo vai na mesma linha. Segundo informe repassado ao MigraMundo, o Brasil continua entre os países de alto risco para Covid e tal classificação continua válida pelo menos até 3 de agosto. Mesmo pessoas já vacinadas contra o novo coronavírus procedentes do Brasil têm as portas fechadas em território espanhol.
Por fim, a Embaixada da Dinamarca no Brasil disse por meio da assessoria de comunicação que “não pode responder perguntas sobre restrições de entrada no país”, e que tais demandas devem ser enviadas diretamente à Polícia Dinamarquesa.
Já as representações de França, Itália e Alemanha não responderam às solicitações da reportagem.
Também procurado pelo MigraMundo, o Itamaraty informou que tem conhecimento da dificuldade encontrada por estudantes brasileiros em ingressar em outros países e busca meios para lidar com a situação.
“O Itamaraty vem fazendo o possível para alcançar solução satisfatória que atenda ao pleito dos estudantes e seguirá realizando contatos com autoridades competentes para que considerem a adoção de medidas alternativas que permitam a retomada da emissão de vistos a estudantes e acadêmicos brasileiros”, informou a pasta.
*Com colaboração de Rodrigo Veronezi
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