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sexta-feira, setembro 20, 2024

Xenofobia entre migrantes: um fenômeno paradoxal que desafia a compreensão

Esse tipo de hostilidade é frequentemente ignorada pelos meios de comunicação, mas suas implicações são profundas. E também demonstra a necessidade de uma abordagem mais compreensiva e inclusiva para lidar com a migração

Por Bianca Medeiros

No cenário atual, a migração é uma realidade comum, e milhares de pessoas buscam melhores condições de vida em outros países, geralmente os colonizadores de seus países de origem. No entanto, um fenômeno perturbador tem emergido entre as comunidades de migrantes ao redor do mundo, que tem confundido e difundido condutas cada vez mais xenófobas, preconceituosas e intolerantes: a hostilidade e a xenofobia de migrantes estabelecidos contra novos imigrantes. Este comportamento, além de contraditório, expõe as complexas camadas de identidade, pertencimento, economia e política que permeiam as sociedades modernas.

A xenofobia entre migrantes impulsionada pelo crescente fluxo de refugiados e, as inúmeras discriminações escancaradas nos diferentes países receptores é um paradoxo que desafia a lógica na medida do histórico a negação da identidade, uma vez que aqueles que enfrentaram a discriminação e os desafios da migração agora perpetuam essas mesmas atitudes contra seus semelhantes.

Essa dinâmica, assume que a colonização e seus impactos não são assuntos do passado e, ignorar as influências persistentes do colonialismo, inclusive nesse tipo de comportamento que exclui e oprime o oprimido, por quem também já esteve no protagonismo dessa migração. Este discurso é ainda mais perturbador quando vem de migrantes que, de certa forma, demonstram uma espécie de síndrome de Estocolmo ao adotar atitudes preconceituosas e xenofóbicas contra seus compatriotas de jornada.

Um exemplo notável dessa realidade é a presença de Marcus Vinicius Teixeira Soares em Portugal. Soares, um migrante brasileiro, tornou-se uma figura controversa ao promover discursos que reforçam a competição e a hostilidade contra novos imigrantes. Nos Estados Unidos, Kamala Harris, vice-presidente e filha de imigrantes, enfrenta críticas por políticas migratórias consideradas restritivas, que, paradoxalmente, afetam negativamente os novos imigrantes e são vistas como uma traição à sua própria herança.

Fato é, que migrantes estabelecidos frequentemente enfrentam desafios significativos para conseguir habitação, emprego e serviços sociais. Essa política, é reforçada dentro de países com política neoliberal que combatem a imigração, defendem o estado mínimo e, desta forma, perpetuam a o fato de que ter mais imigrantes acarreta gastos e na divisão do pouco investimento social que esses governos fazem. A chegada de novos imigrantes é percebida como uma ameaça adicional a esses recursos limitados, aumentando o medo de perder oportunidades de trabalho ou ver suas condições de vida piorarem. Este sentimento de competição é exacerbado por políticas governamentais que criam um ambiente de escassez e por discursos políticos que culpam os imigrantes por problemas econômicos e sociais.

Além disso, a questão da identidade cultural é um fator crucial. Migrantes que passam por um longo e doloroso processo de adaptação e integração à nova cultura podem ver a chegada de novos imigrantes como uma ameaça à preservação de sua própria identidade cultural. Esta percepção pode gerar divisões culturais, especialmente se os recém-chegados não compartilham a mesma origem étnica ou cultural dos migrantes estabelecidos.

As políticas governamentais de imigração restritivas desempenham um papel significativo neste fenômeno. Governos ao redor do mundo implementam políticas que criam um ambiente de hostilidade, onde recursos são escassos e disputados. Além disso, discursos políticos que culpam os imigrantes por problemas econômicos e sociais influenciam negativamente as atitudes dos migrantes estabelecidos.

Quando migrantes estabelecidos veem novos imigrantes como concorrentes por recursos limitados ou como alvos de políticas punitivas, isso pode levar a um aumento do ressentimento e da hostilidade. Esta dinâmica reforça as mesmas divisões e exclusões que muitos migrantes enfrentaram ao chegar ao novo país, perpetuando um ciclo de discriminação.

Segundo Hall[1], a identidade preenche o espaço entre o “interior e o exterior”, ou seja, entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. Ao adotar atitudes preconceituosas e xenofóbicas, migrantes estabelecidos não apenas ferem os direitos humanos, mas também desrespeitam a inteligência e a dignidade de qualquer pessoa que decide sair de seu local de origem em busca de uma vida melhor refletindo uma necessidade real de se “encaixar” e, reproduzir atitudes como as que temos visto.

Segundo ele, as identidades são “produzidas dentro, não fora, da representação” e são o resultado de um processo de interação entre o indivíduo e as estruturas sociais e culturais ao seu redor. Ou seja, o crescente movimento de pessoas entre diferentes territórios contribui para a formação de identidades híbridas, onde elementos de diversas culturas são integrados e reinterpretados.[2]

Da mesma forma, para Bauman[3], a identidade se torna uma tarefa e um projeto em constante evolução, à medida que os indivíduos navegam por um mundo de incertezas e fluxos constantes. Assim, quando migrantes estabelecidos adotam atitudes preconceituosas e xenofóbicas, estamos diante de uma resposta psicossocial complexa que ultrapassa barreiras psicológicas, territoriais, morais e sociais. Esses comportamentos podem ser vistos como tentativas de preservar uma identidade cultural percebida como ameaçada pela presença do “outro”.

Bauman (2000) complementa essa visão ao afirmar que a hostilidade em relação aos migrantes é, em parte, uma reação às incertezas e ansiedades da modernidade líquida. Ele sugere que, em vez de ceder ao medo e ao preconceito, as sociedades deveriam se esforçar para criar espaços de diálogo e compreensão, onde a diversidade cultural seja vista como uma fonte de enriquecimento e não de ameaça.

Essa hostilidade interna nas comunidades de migrantes é frequentemente ignorada pelos meios de comunicação, mas suas implicações são profundas. Ela revela as dificuldades e as incertezas enfrentadas por qualquer pessoa que migra, destacando a necessidade de uma abordagem mais compreensiva e inclusiva para lidar com a migração.

A xenofobia entre migrantes é um fenômeno paradoxal que desafia a compreensão e exige uma resposta multifacetada. Através de uma combinação de políticas inclusivas, educação e comunicação eficazes que venham além das ongs e iniciativas privadas, mas mais e principalmente de iniciativas públicas, governamentais para que seja possível construir uma sociedade onde todos os migrantes, novos e estabelecidos, possam coexistir de maneira harmoniosa e mutuamente benéfica.


[1] HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2006.

[2] Hall, S. (1996). Who Needs Identity? In S. Hall & P. du Gay (Eds.), Questions of Cultural Identity (pp. 1-17).

[3] Bauman, Z. (2000). Liquid Modernity. Polity Press.

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