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domingo, dezembro 22, 2024

A saúde de imigrantes e refugiados: um debate necessário

Em meio às barreiras enfrentadas por imigrantes no acesso à saúde - especialmente durante a pandemia - surge a Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI), que busca articular diferentes atores em um esforço de mobilização permanente

Por Alexandre Branco-Pereira*

As múltiplas crises instaladas desde o início da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, nome do vírus causador da Covid-19, deixaram evidente um fato que era profundamente trabalhoso demonstrar antes de seu aparecimento: falar de saúde é falar também de biologia, bioquímica, epidemiologia, virologia e outros saberes ligados aos conhecimentos que embasam a prática médica, mas definitivamente não apenas. Falar de saúde é falar de moradia, de condições de trabalho, de transporte, da organização espacial da cidade, de gênero, de raça e racismo, de cultura e questões linguísticas, de leis e do direito, e especialmente de política. Não existe algo como politizar questões de saúde, toda questão relacionada à saúde, à doença e ao governo dos corpos (ou governança, para usar um termo em voga nos debates sobre migração) já nasce como um fato político e de relações de poder.

Outro fato explicitado pela pandemia é que saúde não é uma questão meramente individual: a todo momento, éramos forçados a recordar que só estaríamos seguros individualmente quando todos estivessem coletivamente seguros, ainda que soubéssemos que somos um coletivo profundamente desigual e assimétrico. Do lockdown à vacina, nenhuma saída para nossos problemas passava por resguardar o próprio bem-estar físico e mental, mas também fazer com que fosse possível que todos pudessem fazer o mesmo – e, uma vez mais, essa foi uma utopia distante, ainda que tenhamos lutado e continuemos lutando para que ela se torne atingível.

No caso específico de migrantes, fomos confrontados com questões que já sabíamos, mas que não deixaram de chocar: a descartabilidade e o apagamento ativo da existência dessas populações, em especial de migrantes pretos e indígenas, por parte de um Estado orgulhosamente fascista, genocida e higienista tomava corpo na recusa deliberada em coletar dados sobre o impacto da Covid-19 nas populações migrantes. Informações como onde migrantes estavam pegando o vírus e quais grupos tinham mais risco de contágio e morte, dados imprescindíveis para sabermos formular respostas verdadeiramente eficazes de resposta à pandemia, não foram apenas sumariamente ignoradas, mas ativamente rechaçadas pelo governo federal e pela Prefeitura de São Paulo, para citar dois exemplos.

Outro fato notório foi a exigência compulsória da apresentação de documentos brasileiros como forma de garantir acesso às vacinas contra Covid-19. Documentos como o CPF e o comprovante de residência foram amplamente exigidos por prefeituras de todo o Brasil – e, no ordenamento administrativo do SUS, o município tem independência para gerir suas políticas de saúde. Aquilo que despontava enquanto uma medida para garantir que pessoas que não residissem em determinado município pudessem “roubar doses” destinadas a munícipes (como se fosse possível acabar com a pandemia protegendo apenas a população de suas respectivas cidades), acabava, na realidade, impedindo milhares de pessoas, entre brasileiros e migrantes, de acessar a vacina. Dados de 2018 mostram que mais de 45 mil famílias moravam em ocupações irregulares na cidade de São Paulo, grande parte delas compostas de migrantes – e, ainda que houvesse alguma boa vontade de profissionais de saúde da ponta em aceitar diferentes documentos que atestassem a moradia no município, fato é que o Estado oficialmente as excluiu dos planos de proteção contra uma onda de mortes que já ceifou mais de 600 mil vidas.

Além disso, nenhuma campanha específica de vacinação de migrantes foi realizada na cidade que conta com uma população de quase 400 mil deles (e isso considerando apenas aqueles regularizados). Quando muito, cartazes confeccionados por serviços da prefeitura informavam que bastava comparecer a uma UBS munido de algum documento – preferencialmente o CPF – para ser vacinado. Hoje, enquanto a prefeitura do município de São Paulo propagandeia números como 100% das pessoas vacinadas com uma dose e quase 80% de vacinados com duas doses, a sociedade civil, em esforço coletivo de atuação em rede, demonstra que o buraco é bem mais embaixo: ações como o mutirão de saúde, que atendeu 200 migrantes do distrito de Lajeado, no extremo leste da cidade, vacinou 38 deles com a primeira dose – quase 20% dos presentes não haviam se vacinado, portanto, e muitos deles sequer possuíam cartão SUS –, algo que só foi possível pelo esforço desta rede em pleitear que a vacinação dispensasse documentos brasileiros e comprovantes de residência.

O cenário, que pode parecer de terra arrasada, traz um sopro de esperança: a pandemia demonstrou o poder de mobilização e de articulação de organizações e coletivos que lidam com a migração no país, sejam eles conduzidos por migrantes ou por aliados brasileiros. Foram inúmeras ações pautadas pelo mutualismo, cujo horizonte é sempre a ideia de que a cooperação beneficia a todos muito mais do que a concorrência e a competição. No caso da saúde, foi preciso batalhar contra a ideia de direito escasso, isto é, de que garantir o acesso de alguns ao direito à saúde não significa negar a outros: melhorar o acesso de migrantes ao SUS, por exemplo, melhora o acesso aos nacionais, e presenciamos iniciativas inéditas de mobilização nesse sentido no Brasil durante a pandemia.

Plenárias e Frente Nacional pela Saúde de Migrantes

A 1ª Plenária Nacional sobre Saúde e Migração, cujo tema foi “Saúde e Migração em Tempos de Covid-19”, representa um marco histórico para o Brasil. Várias organizações juntaram-se com o propósito de criar um espaço democrático de escuta das demandas de migrantes, ativistas, profissionais e gestores de saúde, pesquisadores e organizações em relação à migração e saúde, sempre se atentando para as mais diversas interseções possíveis (como moradia, trabalho e renda, gênero e raça, educação, acesso ao SUS e à seguridade social, etc). Foram quase três meses de debates semanais que contemplaram todas as regiões do país, contando com 383 participações de 94 diferentes organizações, e que produziram 172 propostas condensadas em um documento final.

Ainda assim, o principal legado da Plenária foi, na verdade, ser a ignição para este processo de mobilização para se pensar as especificidades da saúde dos migrantes no Brasil. Tivemos, na Plenária, pessoas que não eram especialistas em saúde, ou especialistas em migração, ou mesmo em nenhum dos dois temas, mas que se viram instadas a refletir e produzir soluções possíveis para os problemas apresentados, que não são poucos, nem simples de resolver. Eles existem, no entanto, e a Plenária deu a todas essas questões corpo e palavra.

A partir da Plenária, surge a Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI), que busca articular os atores presentes durante este processo em um esforço de mobilização permanente. A FENAMI já conta com 140 inscrições vindas de 58 cidades de 17 estados brasileiros, e seu objetivo é encaminhar as propostas da Plenária, de maneira que os esforços não sejam em vão, além de produzir informação e dados sobre migração e saúde e mobilizar as pessoas em torno deste tema. Também pretendemos construir e propor uma Estratégia de Saúde para Migrantes, a exemplo do que temos para outros grupos vulneráveis com questões específicas, como a população de rua – e o que não faltam são insumos sobre o que é necessário nos documentos produzidos pela Plenária.

A reunião de lançamento da Frente ocorrerá no dia 20/10 de maneira virtual, e as inscrições ainda estão abertas e podem ser feitas por meio do link: https://forms.gle/tcdVsDkuEtSQ4TNW8. A FENAMI também já possui um site próprio, cujo endereço é https://www.fenami.org/, e as dúvidas podem ser encaminhadas pelo e-mail [email protected]. Na reunião do dia 20, também será apresentado o Observatório Saúde e Migração – OSM, ligado ao Laboratório de Estudos Migratórios da UFSCar, que é coordenado pelo professor Igor Machado. O OSM irá congregar e divulgar dados sobre migração e saúde, visibilizará pesquisas produzidas sobre o tema e produzirá insumos para subsidiar as demandas políticas dos movimentos e organizações articulados pela FENAMI – e, é sempre bom frisar, informação é poder, e precisamos rechaçar o anti-intelectualismo que vê na produção de pesquisas algo menor, e que frequentemente se esquece do fato de que possuímos muitos acadêmicos migrantes neste país, abraçando convenientemente a ideia da vulnerabilidade universal dessa população.

Assim, convidamos a todos a unirem-se a esse esforço de construção horizontal: é preciso desbravar, e é preciso construir.

Sobre o autor

*Alexandre Branco-Pereira é doutorando em Antropologia Social (UFSCar), pesquisador do Laboratório de Estudos Migratórios (UFSCar), do Promigras – Migração e Saúde (Unifesp) e da Rede Covid-19 Humanidades MCTI (UFRGS, Fiocruz, UnB, Unicamp, UFSC, UFRN, UNIDAVI e Rede Vírus MCTI). É membro da coordenação da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados, e do Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

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