Em palestra na França, Raphäel Pitti diz que que Síria vive “barbárie”. Ele treina equipes de socorro desde 2012 no país e é visto com desagrado pelo regime de Bashar Al Assad por “dar tratamento médico a inimigos”
Por Victória Brotto
Em Estrasburgo (França)
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Um centigrama de gás Sarin causa a morte de um homem de 60 kg. Por ser uma neurotoxina, o gás causa paralisia respiratória e, posteriormente, morte por asfixia. Volátil, inodoro e incolor, sua toxidade é 100 vezes maior do que a do gás arsênico, usado nos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Na noite do dia 21 de agosto de 2013, 1.400 pessoas morreram na Síria depois de inalarem o gás. A maior parte dos mortos eram crianças – por serem “leves demais”, a neurotoxina do sarin as matou mais rápido. No dia 04 de abril deste ano, mais de 80 pessoas morreram durante o que se acredita ter sido um ataque por arma química na cidade rebelde de Khan Sheikhoun, no noroeste da Síria. O lançamento de uma bomba de gás durante a noite, enquanto a população dormia, causou a morte instantânea de quem inalou a toxina.
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Após colher amostras de três vítimas fatais, a Organização Mundial de Prevenção de Armas Químicas informou em relatório do dia 19 de abril que a causa mortis foi intoxicação por gás sarin. “O cloro e o sarin são as [armas químicas] mais usada pelo regime sírio”, disse Raphäel Pitti, médico especialista em situações de emergência e catástrofes.
Pitti esteve oito vezes na Síria desde que a guerra começou, em 15 de março de 2011, e é chefe do setor de emergência da União das Organizações de Socorro e Assistência Médica (UOSSM), organização médica humanitária francesa e internacional no país sírio. Pela UOSSM, Pitti treina desde 2012 equipes médicas na Jordânia e na Síria para atuarem em guerras e outras situações de emergência.
Com dez anos de experiência em medicina de emergência, o médico francês tem um currículo extenso: já liderou missões no Oriente Médio, na Ex-Iugoslávia, na ilha italiana de Lampedusa, em missões da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), no Golfo Pérsico e em operações médicas de ajuda humanitária na região do Magreb (como é conhecido o noroeste da África). Hoje, o francês se diz “testemunha de uma situação de catástrofe humanitária” quando fala da Síria. De acordo com a Anistia Internacional, até hoje são 1 milhão de mortes, dentre as quais 60 mil são decorrentes de tortura, 200 mil prisioneiros e 1 milhão de mutilados.
“Crimes contra a humanidade acontecem todos os dias no país, é a pior catástrofe desde a Segunda Guerra Mundial”, falou o médico durante conferência na noite de segunda (10) sobre Saúde e Direitos Humanos em Estrasburgo (França), capital política e jurídica da União Europeia (UE). A palestra foi promovida pela Instituição francesa de Direitos Humanos René Cassin para o público. Cerca de 300 pessoas – entre jornalistas, médicos, acadêmicos, refugiados e advogados – lotaram a sala de l’Aubette, na Praça Kléber, no coração de Estrasburgo.
Fuga e refúgio
De acordo com o último relatório do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), 5,5 milhões de pessoas fugiram da Síria até 2016 – o que representa ¼ da população total. Destes, 4 milhões estão em países vizinhos, como a Turquia e a Jordânia – só na Turquia, são 2,5 milhões de sírios requerentes de refúgio. De acordo com dados da ONG Anistia Internacional, os deslocados internos no território sírio já ultrapassam 7,6 milhões.
“É claro que as pessoas querem fugir de lá. Eu já vi muitas crianças morrerem asfixiadas por gás cloro, uma mãe entrou no hospital com a filha e ela havia inalado gás cloro. A mãe morreu no hospital asfixiada, e a filha saiu de lá sozinha, sem a mãe”, contou Pitti. “As crianças e os adolescentes sonham em fugir, o sonho deles é fugir. Diante de uma catástrofe humanitária desse tipo, é normal que partam, é normal que fujam”.
Fechamento dos portos europeus
Até o começo deste ano, foram 1,2 milhões de sírios a chegar à Europa. De acordo com o Comitê Internacional de Resgate das Nações Unidas, 270 mil pediram asilo na Alemanha. No começo deste ano, o ACNUR pediu à UE que “somasse forças em acolher os refugiados sírios” com os países próximos à Síria, como Turquia, Líbano, Jordânia, Egito e Iraque. Mas, ao contrário dos pedidos das Nações Unidas, Itália e Grécia ameaçaram fechar os portos se o resto da UE não “tomar alguma providência” sobre a chegada de migrantes. O porta-voz do país na ONU chegou a chamar a situação de “insustentável”.
(Veja aqui reportagem do MigraMundo sobre a vida dos refugiados na Calábria, Itália)
Questionado pelo MigraMundo sobre o impacto de um possível fechamento dos portos na Europa para migrantes, o médico foi categórico. “Para mim, não há diferença entre fechar portos e deixar refugiados como mendigos quando chegam, sem nenhum sistema humano de acolhimento. Agora você me pergunta dos impactos se a Itália fechar os portos. Bem, o impacto é mais pessoas morrendo tentando fugir . Será mais um obstáculo para uma população em fuga desesperada”.
Em pronunciamento em Genebra no começo deste ano, a porta-voz da ONU Babar Baloch fez um resgate histórico e pediu mais atenção da Europa em relação à Síria. “Esse não é o tempo de mandar os refugiados sírios embora. A Europa passou por isso durante da Segunda Guerra e foram muitos países que deram suporte aos refugiados europeus. A Síria está atualmente vivendo uma situação traumática e precisa da ajuda internacional”.
Pitti chamou a atenção para a situação do país. Segundo ele, a sociedade síria vive hoje um colapso total na economia, na segurança, na saúde, e um colapso ainda maior no tecido social. “60% dos hospitais foram destruídos, o acesso à água potável é dificílimo, assim como a alimentos”, afirmou ele. Com a poluição da água, muitos idosos e crianças sofrem de diarreia aguda e acabam morrendo por desidratação. Outras doenças como poliomielite, rubéola e leishmaniose são frequentes entre a população.
As doenças crônicas também são causa de morte na Síria. “Um senhor de 55 anos, pai de duas crianças, sofria de insuficiência renal crônica em Aleppo. Pela cidade não ter nenhum centro de hemodiálise, ele acabou morrendo”, conta o médico francês.
Solução?
Ao final da apresentação, Pitti afirmou não saber o que a Europa deve fazer em termos políticos. “Há uma população sofrendo, sofrendo muitos, e todos os dias. O que a Europa pode fazer? Eu não sei. Se o Conselho de Segurança deve passar por uma reforma? Sim, talvez. Eu não sei. Mas eu sei que famílias são mortas, feridas, mutiladas, são crianças, seres humanos com ambições e sonhos iguais aos nossos”, concluiu.
Na ONU, a porta-voz Baloch pediu “humanidade”. “A solução para crise na Síria é política, mas, em termos de suporte, o que é necessário é humanidade. Nós estamos pedindo para que outros países tomem a frente para ajudar os países vizinhos da Síria, países que estão recebendo milhares de refugiados. Pedimos que a comunidade internacional compartilhe a responsabilidade de reassentar e acolhê-los humanitariamente”.
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