Joaquim Carrasco, 28, mobiliza protestos em Estrasburgo, na França, depois que as manifestações tomaram o Chile. ”Nós somos chamados a nos conectar às nossas origens.”
Leia a versão em espanhol.
Leia a versão em francês.
Por Joaquin Carrasco,
relato de Estrasburgo (França)
Deram-me a oportunidade de contar a minha experiência como chileno militante, porém um militante diferente, diferente porque eu milito pelo meu país há mais de 13 mil quilômetros de distância.
Primeiramente, eu vou lhes explicar como eu escolhi a vida de migrante. Eu cheguei em Estrasburgo para continuar os meus estudos. No Chile, eu me formei em psicologia e trabalhei por três anos como psicólogo.
Durante os meus estudos e ao longo de minha carreira profissional, eu sempre tive o desejo de continuar estudando, principalmente Ciências Sociais – e mais especificamente a migração.
Eu escolhi Estrasburgo por causa da qualidade do ensino de Ciências Sociais de sua Universidade. Vindo para cá, seria uma oportunidade de estudar fora, algo que eu planejava desde adolescente, e também uma oportunidade de aprender uma nova língua.
O que me impulsionou a deixar o Chile foi a condição de vida que eu tinha, mesmo como psicólogo, o acesso a um mestrado em uma universidade pública seria difícil. Isso porque a taxa de inscrição no ensino universitário é alta, muito mais alta do que na França. A educação chilena é uma educação privatizada.
Mas eu gostaria de vos contar mais sobre o porque eu sou militante, do que se passa no meu país atualmente e de como é essa experiência estranha de lutar por um país há milhares de quilômetros de distância.
A militância sempre foi algo intrínseco a mim, fosse no Chile fosse na França, onde vivo atualmente. Os problemas sociais sempre me mobilizaram, principalmente a defesa do direito dos migrantes. Mas eu me investi mais como militante durante o meu tempo na univerdade no Chile, na cidade de Coquimbo. Eu participava de movimentos locais exigindo melhoras na educação.
Militância no exterior
Desde que eu estou na França, eu tento lutar pelos direitos dos migrantes e também de apoiar os outros migrantes militantes, mas de outros países, e que lutam. Mas, sinceramente, eu nunca imaginei que eu acabaria por lutar pelo povo chileno daqui de Estrasburgo, a mais de 13 mil quilômetros do meu país.
O movimento social que vimos hoje eclodindo no Chile começou em outubro de 2019, quando a companha de mêtro de Santigo do Chile anunciou um aumento de 0,10 centávos no preco do ticket de mêtro, levando-o a 830 pesos (6 reais). Uma taxa elevada de transporte para um país onde o salário mínimo é de 270 mil pesos ( entorno de 1, 4 mil reais) e onde o custo de vida é próximo a de países europeus, como a França. É preciso também acrescentar a isso o fato de que o custo de vida elevado causou a privatização de todo o sistema social chileno.
Os protestos começaram pelos alunos do colegial nas escoldas de Santiago, que organizaram uma campanha massiva de fraude nos mêtros. Na primeira semana, os protestos se concentraram na capital.
Neste momento, eu estava apenas atento ao noticiário. Para mim, os eventos me pareciam um simples movimento no Chile, que eram quase esperado por causa da cultura chilena de manifestação.
Até que uma coisa aconteceu que me marcou e me levou a manifestar: foi uma imagem de um tanque militar repimindo os protestos do dia 19 de outubro, um sábado, na capital.
Eu nunca tiva visto uma imagem como essa nem nos documentários sobre a ditadura no Chile, uma época tao distante a qual eu nunca vivi, mas que parecia estar mostrando suas caras novamente, em plena democracia.
Essa imagem me causou revolta, tristeza, dor e sobretudo frustração. Eu nunca tinha tido um sentimento de tão completa incapacidade de estar ao lado dos meus amigos e da minha família em um momento tão o dificil e que parecia anunciar uma tragédia. Eu sentia que a história sangrenta da ditadura poderia se reproduzir, uma ditadura que eu tinha lido apenas nos livros e visto apenas nos documentários.
Naquele momento, eu falava com o meu melhor amigo, e ele me disse que apesar do medo que parecia reinar, a revolta era muito maior e ela impulsionava as pessoas a lutar, a manifestar – e não somente na capital, mas por todo o país.
Não é apenas sobre o aumento dos transportes, mas é uma série de reivindicações sociais feitas pelo povo desde a retomada da democracia há mais de 30 anos. Essas reivindicações são principalmente ligadas à educação, à saúde e à aposentadoria, além de uma mudança na constituição, criada nos tempos da ditadura e que foi pouco modificada apesar das mudanças vividas pela sociedade chilena.
(Sim, apesar do retorno da democracia no Chile, nós continuamos a viver com uma constituição feita pela ditadura.)
O Chile visto de longe
Esse movimento tomou muita força. O que possa explicar isso seja o sentimento da maioria da população de estar à margem de um sistema neoliberal, vivendo em condições de pobreza ou de endividamento.
Além disso, a forte repressão exercida pelo governo não ajuda em nada. Já começamos a ver mortos nas manifestações, além de vídeos que mostram torturas e violência policial. Mais de 200 pessoas form feridas nos olhos devido ao uso de armas pela polícia. Além disso, temos também testumunhos de mulheres vítimas de violência sexual por parte de agentes do Estado.
Os meus sentimentos, diante disso tudo que se passa no meu país, são múltiplos, mas o maior deles é a frustração de não poder estar na rua manifestando com os meus amigos, e saber que eles estão sendo reprimidos pela polícia…
As images sucessivas da força utilizada pela polícia (tiros contra a população civil, algumas vezes até matando pessoas…inclusive na minha cidade natal), testemunhos de amigos sobre a dor que eles sentem, a tristeza e a revolta. Toda essa dor me mobiliza, me impulsiona a agir.
Eu rapidamente descobri que esse meu sentimento de frustração e o meu desejo de fazer qualquer coisa eram também o sentimento de um pequeno grupo de chilenos em Estrasburgo. Com o meu irmão, eu cheguei à conclusão que deveríamos fazer alguma coisa enquanto chilenos no estrangeiro. Nós organizamos os primeiros protestos, e foram apenas umas 10 pessoas.
Mas não desistimos, continuamos a divulgar e a chamar para as manifestações. E essas chamadas foram tendo adesão não o somente de chilenos mas também de franceses, de latino-americanos e de populações de outros países que se solidarizavam com a situação do Chile.
Depois de três anos, é a primeira vez que eu me sinto no Chile e não na França. É uma situação engraçada e até por vezes complicada que me causa alguns problemas com pessoas próximas minhas aqui, mas eu acredito que talvez esse seja um preco a pagar. Nessa situação de migrante, ainda mais em momentos históricos vividos na nossa terra natal, nós somos chamados a nos conectar com as nossas origens.
A comunidade
Esse movimento me deu a possibilidade de entrar em contato com a comunidade histórica chilena em Estrasburgo, as famílias chilenas exiladas durante a ditadura, que muito apoiaram as manifestações e que hoje me contam as suas experiências.
Elas me contam também o medo de reviver eventos traumatizantes para o Chile, esse medo provoca até dores físicas, é difícil de explicar, uma dor de estômago à qual é difícil de ficar indiferente.
Essas trocas me motivaram ainda mais e me fizeram perceber o valor do meu país. É realmente horrível ver como o lugar onde eu nasci e cresci se transformou em um espaço de violência e repressão. É difícil de ver como, assim facilmente, as pessoas que você ama podem ser colocadas em perigo.
É realmente horrível de ver tudo isso estando longe, sem poder ao menos os acompanhar, estar com eles. Felizmente essa mobilização está criando momentos de unidade entre os chilenos e também entre chilenos e outros latino-americanos e até de outros países.
Eu encontrei muita gente que, não sabendo sobre a situação do Chile, pensava que o meu país era ainda sinônimo de crescimento econômico e estabilidade na América Latina. Essas pessoas ficaram surpresas com um movimento social tão forte assim do nada.
Muitos franceses ficaram chocados ao ver o exército na rua durante as manifestações. Eles me disseram que pareciam imagens da época da ditadura chilena. Isso me mostrou a preocupação e a solidariedade dos outros povos para conosco. Muitos me mostraram que eles gostariam de saber mais sobre o sistema chileno e disseram que acham chocante a realidade de privatizações no Chile, com privatizacao de recursos naturais, educação, saúde e aposentadoria.
É realmente chocante saber que o custo de vida no Chile é o mesmo que o da França, mas que os salários não são em nada iguais. Quando eu conto isso para as pessoas, a reação é sempre: ‘’bom, então é normal mesmo que as pessoas manifestem!’’
*Gostaria de ser parte do esforço para manter o trabalho do MigraMundo? Veja nossa campanha de financiamento recorrente e junte-se a nós: https://bit.ly/2MoZrhB