Por Marina Mantovanini
A Rede de Estudos de Jornalismo de Migração e Refúgio em Contextos Latino-americanos é um coletivo de pesquisas surgido em 2023, integrado por oito pesquisadores migrantes que têm se dedicado aos estudos das narrativas jornalísticas e das práticas comunicacionais de cidadãos latinos no contexto da cibercultura. Coordenado pelo jornalistas brasileiros Enio Moraes Júnior e Adriana Navarro Manfredini (vice-coordenadora), o grupo ainda é composto pelos brasileiros Liliana Tinoco Bäckret, Renato Essenfelder, Sandra Nodari, Daniel Ladeira de Araújo, além da venezuelana Clavel Rangel Jiménez e da chilena Sandra Beltrán Baeza.
A Rede de Estudos acaba de lançar o livro Remolinos: histórias de migrantes latino-americanos na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá (Casa Flutuante, São Paulo: 2024), que traz o perfil de migrantes que vivem em diferentes países do hemisfério norte e que carregam histórias de vida provenientes de contextos diversos. Ao abordar questões como segurança, preconceito, gentrificação, vida profissional e transfobia, os temas ganham, não obstante, uma perspectiva acadêmica expressiva e, em alguns casos, somam-se aos relatos a vivência dos próprios autores, que relatam suas experiências em primeira pessoa.
O livro está disponível gratuitamente em formato e-book na página do Centro de Estudos Latino-americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc-USP). Editado apenas em português, os autores estudam a possibilidade de disponibilizar a obra em outros idiomas.
Veja a seguir a entrevista com o jornalista Enio Moraes Júnior, organizador do livro, que desde 2017 é migrante internacional vivendo em Berlim (Alemanha).
Marina Mantovanini – Remolinos foi escrito a muitas mãos. Vocês seguiram algumas diretrizes para que o livro tomasse a forma que vocês desejavam e apresentasse um conteúdo significativo e abrangente?
Enio Moraes Júnior – Eu acredito que a nossa principal diretriz foi o nosso sentimento, a nossa identidade migrante. Uma identidade inquieta, cheia de perguntas, porque o migrante é esse sujeito que se faz perguntas, que olha para o mundo com um olhar mais problematizador. Dito isso, eu não posso deixar de dizer também que essa inquietação coaduna-se perfeitamente com a alma do jornalista. E nós somos oito jornalistas, todos na faixa etária dos 40, 50 anos. Ou seja: somos experientes em relação ao jornalismo e à vida. E deixamos isso fluir em nosso trabalho. No mais, objetivamente falando, o que pretendíamos era contar histórias de migração no lugar onde estávamos, a partir de um personagem central. Assim, em cada um dos países – Portugal, Espanha, Suíça, Alemanha, Estados Unidos e Canadá – partimos de experiências de vida de outros migrantes para falar dos aspectos positivos e dos aspectos desafiadores da vida em outro continente, especialmente da vida de indivíduos latinoamericanos em países ricos do Norte global que historicamente nos colonizaram, nos subjugaram com políticas imperialistas e que, ao mesmo tempo, consolidaram há bastante tempo um corolário de direitos que terminam sendo atrativos para pessoas do mundo todo.
MM- As reportagens são histórias de migração de pessoas nascidas na América Latina. Por que vocês seguiram esse viés? Qual era o interesse de vocês ao contar e reunir essas histórias?
EMJ – A América Latina está cheia de bons exemplos em relação à cobertura de migração, como o Cápsula Migrante e o Efecto Cocuyo, iniciativas voltadas para a diáspora venezuelana na região. Mas, de forma geral, quando saímos dos espaços alternativos e olhamos para a cobertura de migração na mídia tradicional, a tendência que se tem é pensar em refugiados de guerra e nos dramas do cruzamento de fronteiras, por um lado, ou, por outro, em histórias de êxito de latinos que foram para Miami e enriqueceram. É claro que essas abordagens são importantes, principalmente a questão do refúgio e a fuga da pobreza ou da perseguição política, que têm uma dimensão humanitária inquestionável. No entanto, migração é mais do que isso. Segundo um relatório da OIM-ONU (Organização Internacional para as Migrações, vinculada à Organização das Nações Unidas) publicado em 2022 com dados de 2020, menos de 4% da população do mundo (cerca de 281 milhões de indivíduos) é composta por pessoas que cruzam fronteiras internacionais, e menos de um décimo dessa população se enquadra na condição de refúgio (pouco mais de 26 milhões). Outros cidadãos migram por razões como estudo, trabalho, busca de melhores condições de vida ou mesmo amor, casamento e vontade de desbravar o mundo, de viver de outra forma. E muitas dessas pessoas ficam em um limbo quando se cobre migração. Em primeiro lugar, suas vozes – e às vezes até suas identidades – somem dos registros jornalísticos sobre os dramas que envolvem o tema. Em segundo, é como se a vida delas, ao chegar àquele local, passasse a ser um paraíso. “Nossa, você vive na Europa! Que máximo!” Todos nós, que migramos para o Norte rico, já ouvimos isso, mas o fato é que as coisas não são fáceis também para nós. Saudade, preconceito como racismo e xenofobia e portas profissionais fechadas convivem no nosso dia a dia com liberdade, acesso a direitos mais consolidados e muito aprendizado. Quando pensamos no livro, queríamos realçar que as histórias dos migrantes, sejam aqueles que estão em condição de refúgio ou não, são cheias de conflitos pessoais, normalmente delineados por políticas migratórias cada vez mais austeras. É necessário pensar e esclarecer as dores e delícias da migração. Como latino-americanos, fizemos o recorte na nossa região por suspeitar que a personalidade latina que deixa sua terra é bastante diferente do africano ou do asiático que sai do seu continente, por exemplo. Ao mesmo tempo, as experiências que os latinos terminam tendo nos países do Norte global é provavelmente também muito singular em relação a outras nacionalidades da África ou Ásia.
MM – Além de assinar o texto de introdução e de escrever uma das reportagens, você também atuou como organizador do livro. Como foi participar dos processos de escrita e de organização?
EMJ – Escrever é sempre muito bom. Eu acho muito importante que a gente, que é migrante, escreva sobre nossa experiência, que registre essas histórias. Pessoalmente, fico muito feliz que, hoje em dia, as redes sociais e os canais do YouTube disponibilizem tanta informação e relatos sobre o tema. Embora eu tenha ressalvas a muitos desses canais, porque nem sempre esses relatos são precisos e, eventualmente, escamoteiam empresas que vendem a migração como um negócio onde há apenas vantagens, esses espaços têm oferecido muita informação sobre a vida do migrante internacional fora das dicotomias de inferno e paraíso. Na maior parte das vezes, viver como migrante é experimentar sabores e dissabores, como qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, até mesmo no seu país de origem. Neste momento, por exemplo, a vida no Norte rico não está fácil nem mesmo para os seus cidadãos… Escrever, para mim, foi exatamente mesclar isso. Na medida que os textos dos outros autores foram chegando, eu fui percebendo que nossos olhares estavam se coadunando: migrar é intensificar os riscos, potencializar os ganhos e perdas da vida em um outro lugar que fica fora da zona de conforto. Fora do conforto da língua materna, da casa que conhecemos, das pessoas com quem sempre convivemos, das políticas públicas da América Latina que – ainda que imperfeitas – foram feitas para privilegiar a nós, os cidadãos nascidos naqueles países. Aliás, foi exatamente quando eu e as duas editoras do livro, Adriana Navarro Manfredini e Liliana Tinoco Bäckret, olhamos para isso que entendemos que o livro deveria se chamar “remolinos” – os “redemoinhos”, em português – que terminam sendo a característica central dessa vida migrante, com tudo de bom e de ruim que esse movimento intenso e permanente possa representar.
MM – Vocês são um grupo de jornalistas que começaram a se reunir para pensar no papel do jornalismo na história da imigração. Quando foi que vocês perceberam a importância de transformar a ideia dos encontros em um livro?
EMJ – Quando nós entendemos que nossa experiência pessoal e os relatos de outros migrantes com quem convivíamos nos contava algo que nós não estávamos acostumados a ler, a ver na televisão ou nos portais de notícias. E, ao mesmo tempo, quando notamos que o aquilo que encontrávamos nas redes sociais e na internet carecia de uma personalidade mais jornalística, de mais apuração e factualidade. Quando nós percebemos, como eu disse acima, que, por um lado, migrar é algo muito mais complexo do que refugiar-se, deixar a terra natal e, com muito sofrimento, entrar com um pedido de asilo em outro país ou, por outro lado, cruzar fronteiras e viver em países ricos para ser feliz e enriquecer. Nós estávamos entendendo que as histórias de migração ganham vigor exatamente depois das fronteiras cruzadas e era isso que precisávamos contar. E a vida depois da fronteira é de uma riqueza imensa, permanentemente cheia de desafios… São os “remolinos”, né? Hoje, nas grandes cidades da Europa, como Lisboa, Madri, Berlim, Paris e Londres, por exemplo, vive-se uma crise imobiliária absurda. Não há imóveis para alugar e, quando há, os preços são absolutamente inviáveis para os nativos, imagine para o migrante! Como é que um latino-americano vai concorrer com os cidadãos locais por esse imóvel? As dificuldades do migrante passam por encontrar um lugar para morar e tocam questões sutis, como resolver toda burocracia em outro idioma e em outras lógicas administrativas. E elas vão além: da saudade de casa à convivência com diferentes formas de preconceito, podendo avançar para problemas de adaptação ao mercado de trabalho, às amizades e à socialização, por exemplo. Em muitos países, os migrantes latino-americanos têm esperado meses para regularizar sua documentação no novo país. E isso é muito desrespeitoso, porque o sujeito precisa passar seis, oito, quinze meses com uma vida suspensa, sem saber direito onde mora e muitas vezes tendo que se ocupar de trabalhos sem registro para sobreviver e bastante suscetíveis à exploração laboral. A quem interessa isso? Quem ganha com isso? O crescente apoio que a extrema-direita xenófoba tem angariado em países da Europa e na América também reforçam esse quadro.
MM – O livro teve o apoio do Celacc, um centro de estudos da Universidade de São Paulo, uma das universidades mais conceituadas do Brasil e da região latino-americana. Como funciona essa parceria entre vocês? E quais são os próximos passos?
EMJ – O Centro de Estudos Latinoamericanos de Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo nos abraçou e isso foi muito bom. Assim como eles, nós estamos interessados em pesquisar e entender temas da América Latina. Quando chegamos para conversar com o diretor do centro, Dennis de Oliveira, sobre a possibilidade de trabalharmos juntos, colaborando com os estudos de jornalismo de migração e refúgio, fomos muito bem recebidos. Logo depois do livro lançado, constituímos um grupo de estudos que agora integra o Celacc. Chama-se também, a propósito, Remolinos – Rede de Estudos de Jornalismo de Migração e Refúgio em Contextos Latino-americanos. Nesse momento, nós estamos elaborando dois projetos de pesquisa que pretendemos desenvolver nos próximos anos. Um, envolvendo narrativas jornalísticas, outro, cibercultura. Ambos, logicamente, no âmbito da cobertura jornalística de migração e refúgio de cidadãos da América Latina. Quem quiser acompanhar mais do nosso trabalho pode nos acessar no @rede_remolinos no Instagram. X
Referência
MORAES JÚNIOR, Enio (Org). Remolinos: histórias de migrantes latino-americanos na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. Edição: Adriana Navarro Manfredini e Liliana Tinoco Bäckert. E-book. 1. ed. São Paulo: Editora Casa Flutuante, 2024.
Sobre a autora
Marina Mantovanini é jornalista brasileira natural de São Paulo, que vive em Berlim desde 2014. Depois de dez anos trabalhando em redações e projetos editoriais no Brasil, no novo lar precisou se reinventar. Formou-se em gastronomia, ramo em que trabalha atualmente, mas nunca perdeu seu vínculo com o jornalismo e a escrita