Por Lívia Major
“No livro Um Defeito de Cor, Ana Maria Gonçalves narra a saga migratória da família Kehinde. Um livro que mostra todos os obstáculos que nossos antepassados vivenciaram para chegar nesse território. E ela coloca um trecho que diz: ‘apesar de não ter culpa de ser africana e preta, eu seria constantemente punida por isso’. E é isso que a gente tem visto na forma como são elaboradas as políticas e no tratamento que pessoas refugiadas e migrantes afrodescendentes têm recebido aqui no Brasil”. Com essa fala, Sheila de Carvalho, presidente do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), abriu o evento em Brasília que marca um ano da morte de Moïse Kabagambe e o lançamento do “Programa de Atenção e Aceleração de Políticas de Refúgio para Pessoas Afrodescendentes e Implantação do Observatório Moïse Kabagambe”.
O migrante congolês foi brutalmente assassinado em um quiosque na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, em 24 de janeiro de 2022. O jovem trabalhava no local sem vínculo trabalhista e teria ido cobrar dois dias trabalhados quando sofreu as agressões. Em fevereiro, três homens foram presos e se tornaram réus, mas um ano depois, o caso segue sem desfecho.
O programa incluirá uma força-tarefa para agilizar a análise de pedidos de refúgio – no ano passado o Ministério da Justiça contabilizou 49,2 mil solicitações segundo dados do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra). Um número que se soma aos milhares que aguardam na fila a análise de seus pedidos.
Já o Observatório Moïse Kabagambe terá como principal objetivo combater a violência contra refugiados por meio de parcerias com universidades e organizações sociais.
“Nós precisamos implementar uma cultura da paz dos direitos humanos e isso não é uma ação estatal. essa ação depende da nossa capacidade de, o tempo inteiro, dialogar emular, mobilizar bons valores para, com isso, nós consigamos reverter os paradigmas mais profundos, mais enraizados do fascismo. Este movimento de exclusão, violência, ódio, medo, de terror; deita raízes profundas na história brasileira e no comportamento de milhões de pessoas no nosso país e em outros. Esse vento busca espraiar essa busca por justiça”, afirmou o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino.
A família de Moïse esteve presente na solenidade e recebeu das mãos de Dino o certificado de implantação do observatório. A mãe do jovem, Ivana Lay, disse esperar que a resolução evite outros casos de violência. “É muita dor, espero que essa iniciativa ajude outros refugiados a não terem esses problemas”.
Desdobramentos do caso Moïse
O processo sobre o assassinato de Moïse Kabagambe tramita na 1ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e os acusados, Fábio Pirineus da Silva, Brendon Alexander Luz da Silva e Alesson Cristiano de Oliveira Fonseca, permanecem presos. Em outubro, o advogado de Brendon da Silva apresentou a defesa às acusações. Em dezembro passado, os defensores de Fábio e Alesson renunciaram ao processo e, até o momento, os suspeitos não se manifestaram. Nesse mesmo processo, outras três pessoas respondem em liberdade por omissão de socorro. A família de Moïse move também um processo civil buscando responsabilizar os donos do quiosque onde o migrante morreu e um processo trabalhista para investigar as condições de trabalho às quais ele era submetido.
Meses mais tarde, em julho, a prefeitura do Rio de Janeiro concedeu aos familiares do jovem a administração de um quiosque no Parque Madureira. No evento de inauguração, o prefeito Eduardo Paes declarou que o ato buscava significar “um gesto político para dizer que nós não vamos tolerar nessa cidade nenhum gesto de racismo, preconceito, xenofobia e intolerância”.
Contudo, na prática, os migrantes continuam enfrentando esses problemas diariamente. Segundo reportagem de Jamil Chade no UOL, em abril do ano passado, dez relatores especiais da ONU entregaram ao então governo um documento denunciando políticas e práticas discriminatórias contra migrantes, refugiados e requerentes de asilo. Segundo a carta, foram constatados uma série de casos que violam a legislação doméstica do governo e suas obrigações sob o direito internacional. “Estamos alarmados com os relatos de que a discriminação racial sistêmica e a violência racista contra migrantes, refugiados e requerentes de asilo foram exacerbadas nos últimos anos, com esta regressão acelerada pela resposta pública e privada à pandemia da covid-19”, escreveram os relatores. As ações atingiam principalmente migrantes africanos, haitianos e venezuelanos.
Políticas públicas
É diante desse cenário que o Conare lançou o Programa de Atenção e Aceleração de Políticas de Refúgio para Pessoas Afrodescendentes, projeto que busca acelerar políticas de refúgio voltadas para migrantes naturais especialmente de países da África, Haiti e Cuba.
“A ideia de lançar um programa focado em políticas de atenção ao refúgio para a população afrodescendente é saber que estão ali grandes desafios estruturais da sociedade brasileira. É saber que, enquanto desenvolvemos políticas para migrantes e refugiados, estaremos também desenvolvendo políticas para toda a população ”, declarou Carvalho.
Durante o evento, também foi anunciada a instituição de um grupo de trabalho para o estabelecimento da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, formalizada por portaria publicada nesta terça-feira (24) no Diário Oficial da União.
Essa ação é prevista na Lei de Migração, mas precisa de uma regulamentação à parte para entrar em vigor, sendo a constituição deste colegiado um primeiro passo nessa direção. Os nomes que vão compor o grupo de trabalho devem ser anunciados em breve.
Ótima iniciativa! esses 8migrantes merecem!