Evento em São Paulo fez parte da programação da Semana Fashion Revolution e debateu trabalho escravo e tráfico humano na cadeia produtiva da moda
Por Rodrigo Delfim
Em São Paulo (SP)
Quem fez minhas roupas? Quais suas histórias? Em que condições elas foram confeccionadas? Essas perguntas foram o ponto de partida para o seminário “Migração, tráfico humano e trabalho análogo ao de escravo”, que aconteceu na última quinta-feira (26) em São Paulo.
O evento foi organizado em conjunto pelo Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI), pelo Instituto C&A e pelo Fashion Revolution Brasil, com apoio da Secretaria de Justiça – que cedeu o seu auditório para realização do evento, que contou com a presença de autoridades, migrantes, entidades da sociedade civil e representantes do Ministério Público do Trabalho.
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A Semana Fashion Revolution acontecem em várias cidades neste ano no Brasil – em São Paulo, foi de 24 a 29 de abril, aproveitando as proximidades do aniversário da tragédia de Rana Plaza. Em 24 de abril de 2013, o edifício de mesmo nome desabou em Dacca (Bangladesh) e matou 1.133 pessoas, além de deixar outras 2.500 feridas. Nele funcionavam, entre outras empresas, cinco oficinas de costura que produziam roupas a baixo custo – e às custas de condições precárias e ausência de direitos trabalhistas de seus trabalhadores. A tragédia ajudou a jogar luz sobre um lado obscuro da indústria da moda e fomentou uma série de ações de conscientização mundo afora – entre elas, a Fashion Revolution.
A situação de Rana Plaza, no entanto, continua a se repetir em diversos formatos e tamanhos no mundo todo, inclusive no Brasil. A presença da mão de obra imigrante nas oficinas de costura – especialmente de países latino-americanos – e os casos recorrentes de trabalho análogo à escravidão na indústria têxtil colocam a pauta da migração e do direito ao trabalho digno de mãos dadas com as reivindicações do Fashion Revolution.
“Trágedias como a de Rana Plaza continuam a acontecer. Temos de lutar para que elas não se repitam”, aponta Dom Flávio Irala, presidente do CAMI, na abertura do seminário.
Mudança de atitude
“Não podia sair no jardim, nem na rua. Trabalhei 15 horas por dia. Saímos do trabalho escravo sem nada”, lembrou o boliviano Brayan, 21. Seu depoimento ilustra situações que ele e oujtros migrantes já conseguiram superar, mas que são vividas ainda por muitos funcionários de oficinas de costura no Brasil, independente da nacionalidade.
Um dos caminhos para essa mudança estrutural depende de mudanças de cada consumidor em seus hábitos, mesclando conscientização, informação e atos concretos.
“Se perguntarmos quem fez nossas roupas, vamos garantir melhores direitos para quem as fez. Queremos saber das marcas, queremos conhecer as pessoas e garantir condições dignas para elas”, reforça Fernanda Simon, diretora do Fashion Revolution Brasil.
“Temos de nos olhar como iguais e nos unir contra a perda de direitos”, completa a vereadora Juliana Cardoso (PT), vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo.
Ao alcance dos dedos e na lei
A velha e boa denúncia é uma importante aliada no combate ao trabalho escravo e a outras condições degradantes. Feita de forma anônima, ajuda identificar os locais e pessoas que praticam esses crimes.
“Estado não tem tantos braços como a sociedade. Temos de ajudar o Estado e a denúncia é a melhor ferramenta”, afirma Flávio Correa, especialista em Direito do Trabalho e pela UniFMU e Governo e Poder Legislativo pela Unesp.
Para o consumidor, um importante aliado é o aplicativo Moda livre, disponível para celulares iOS e Android. Lançado às vésperas do Natal de 2013, o aplicativo Moda Livre avalia as ações que as principais empresas do setor vêm tomando – ou não – para evitar que as suas peças sejam produzidas por mão de obra escrava. Além disso, oferece ao consumidor, de forma ágil e acessível, informações sobre as marcas envolvidas em casos de trabalho escravo na indústria do vestuário nacional. Atualmente são 119 marcas presentes no banco de dados do aplicativo.
Uma das marcas citadas é a M.Office, cuja empresa responsável foi condenada por trabalho escravo e corre o risco de ser banida do Estado por dez anos. Um dispositivo existente na Lei Paulista de Combate à Escravidão (14.946/2013) prevê que as empresas condenadas por trabalho escravo em segunda instância, nas esferas trabalhista ou criminal, tenham o registro do ICMS suspenso por dez anos.
“A escravidão não foi abolida, ela se modernizou e precisa de mecanismos mais modernos para ser combatida”, ressaltou no seminário o deputado estadual Carlos Bezerra Jr (PSDB), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo e autor da lei.
Desafios
Apesar da existência de ferramentas diversas para o combate ao trabalho escravo, ainda faltam meios para amparar as pessoas que são vítimas de trabalho escravo. “Temos muitos outros Brayans que precisamos atender”, recorda a assistente social do CAMI Carla Aguilar, a partir do depoimento que o jovem fez para as cerca de 100 pessoas presentes no auditório.
A advogada e ativista boliviana Ruth Camacho reforça o clamor de Carla. “O governo precisa se aproximar das pessoas e das instituições que fazem esse trabalho”, citando como exemplo as rodas de conversa promovidas pelo CAMI com mulheres migrantes.
Nesses espaços, as participantes são encorajadas a reconhecer e denunciar situações de violência e de explorações às quais estão sujeitas. De acordo com a peruana Soledad Requena, integrante do CAMI e coordenadora das rodas de conversa, são atualmente são 347 mulheres participantes.
O poder público admite as lacunas existentes para esse suporte. Mas além da lei e das ações da sociedade civil, outra mãozinha já existente no país é o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Desenvolvido pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) e pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), que reúne uma série de informações sobre o tema no país.
“É uma inteligência uma economia de dinheiro para criação de políticas públicas. É importante conhecer esses instrumentos”, ressalta a procuradora do MPT Claudia Lovato ao apresentar o Observatório.
O que fica claro a partir do seminário é que somente a mescla dessas ferramentas e de ações públicas e particulares é capaz de promover a mudança necessária na cadeia da moda – e em outras que registrem explorações. “Saímos daqui com a missão de sermos multiplicadores”, convida Roque Patussi, coordenador do CAMI.