Por Natália de Oliveira Ramos
De Utrecht (Holanda)
Cidade do México, 1954. Entre 13 e 14 de julho, o corpo de Frida Kahlo jazia no saguão do Palácio de Bellas Artes, uma distinção que recebem os grandes artistas mexicanos. Ela estava vestida com seu traje tehuano favorito, coberta de joias e fitas brilhantes entrelaçaram seu cabelo.
Esses elementos inconfundíveis que compunham a imagem da pintora mexicana e que hoje, quase 70 anos depois, ainda se destacam na cultura popular – dado que suas sobrancelhas unificadas estão estampadas em souvenirs mundo a fora, e a prótese de sua perna é exibida como relíquia de um santo em exposições – foram consolidados no período em que migrou para os Estados Unidos, mesmo caminho que milhares de seus compatriotas têm feito sob circunstâncias inumanas.
Na leitura da historiadora de Arte Brígida Duarte de Oliveira Medeiros, o amadurecimento tanto na estética quanto na abordagem de temas nas obras de Kahlo ocorreu concomitante a diáspora por São Francisco, Nova York e Detroit – ou “Gringolândia”, como a própria pintora apelidou o país norte-americano, onde viveu no início da década de 1930.
“[É quando] ela realmente se reconhece [como artista] e se mostra como essa figura icônica que conhecemos hoje; exalando ‘mexicanidade’”, explica Medeiros.
Do México para os EUA
Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderón nasceu em 1907, na Casa Azul, em Coyoacán, em um belo subúrbio ao sul da Cidade do México. A casa tem um andar, em forma de U, com paredes pintadas de azul, janelas altas, persianas verdes e um pátio interno cheio de plantas subtropicais e animais de estimação.
À medida que a década de 1920 terminava, o Movimento Muralista mexicano perdia força. Ao mesmo tempo, a situação política se tornava tão perigosa que era arriscado expressar simpatia ao Comunismo. O casal então migra em novembro de 1930, após o pintor Diego Rivera, marido de Kahlo, ser convidado para produzir murais em São Francisco, na Califórnia, onde a arte mexicana ganhava espaço.
A contradição que Kahlo encontrou do outro lado da fronteira foi inspiração para criar a obra “Autorretrato na fronteira entre México e Estados Unidos” (1932), representada com “vida e morte”; dualidade presente nas obras da artista mexicana.
Com a Revolução Industrial, os Estados Unidos haviam se consolidado como uma das maiores potências militares e econômicas globais. Com isso, a produção manual foi substituída por maquinaria, fomentando a exploração da natureza e dos trabalhadores.
Essa obra poderia, então, ser considerada premonitória? Medeiros, que é mestra pela Universidade de Brasília em Teoria e História da Arte com ênfase na produção de Frida Kahlo, esclarece que a pintura é uma crítica explícita à política e a industrialização, ainda que Kahlo reconhecesse a importância das mudanças que testemunhava, ela não acreditava que a classe trabalhadora seria beneficiada.
Na pintura, Kahlo evoca sua percepção entre dois países geograficamente próximos, porém apartados culturalmente. Com um vestido cor-de-rosa e luvas de renda, a artista está no centro. A historiadora clarifica que a roupa mostra que a pintora estava se enquadrando na sua nova realidade. Como contraponto, as joias pré-colombianas simbolizavam que não pretendia abandonar suas raízes, assim como o rosto e os pés levemente voltados para o lado mexicano.
À direita da artista, o México está representado como o natural, com cores quentes e terrosas. Kahlo enaltece o período antes do domínio dos europeus sobre os povos indígenas americanos: o sol e a lua (considerados deuses), templos e artefatos.
Na outra parte, o solo estadunidense é artificial: do solo “surgem” máquinas; o céu acinzentado, os arranha-céus em formas geométricas, e ao invés de nuvens, como do lado mexicano, há fumaça cobrindo parcialmente a bandeira, símbolo nacional.
Kahlo assina a obra como “Carmen Rivera”, por soar mais latino do que “Frida Kahlo”, de origem alemã. O pai dela migrou da Alemanha para o México, mudando permanentemente seu nome e a mãe tinha ascendência indigena e espanhola.
Quanto a essa reafirmação de identidade, a historiadora conta uma curiosidade. No retorno para o México, Kahlo retira a letra “e” de seu nome e abandona definitivamente a versão germânica ‘Freida’.
Além do nome, sua autoimagem passa a ser uma demonstração de orgulho de suas raízes mexicanas, que se estende a sua obra, quando ela adota o estilo pictórico dos Ex-Votos, uma expressão gráfica da religiosidade popular mexicana.
Entre as obras da pintora mexicana relacionadas a temas migratórios, estão “Os dois vestidos” (1939), que é sem dúvida sua pintura mais conhecida. Salvo as referências do divórcio com Rivera, a historiadora brasileira avalia que as duas versões da artista – uma representando sua ascendência europeia; outra com vestidos regionais – são, sobretudo, um movimento político.
“Não há negação da árvore genealógica. A repulsa de Frida era com o modo de vida artificial estadunidense; insensíveis quanto às questões sociais, como a exploração dos países latino-americanos”, argumenta a especialista.
A roupa mexicana foi, de fato, usada como ferramenta política pela pintora. A obra “Meu vestido está pendurado” (1933) e a forma que expressa para Rivera seu enorme desejo de voltar para sua terra natal. Aliás, foi a única pintura em que ela conseguiu concluir durante os nove meses que passou em Nova York.
A visita “dos Rivera” a Nova York foi concluída em 1932 com a mudança para Detroit, no estado do Michigan. Os autorretratos que Kahlo produziu na nova cidade dramatizam sua resposta inflexível ao aborto espontâneo que se seguiu após um período de dúvidas sobre sua aptidão para gestar – devido a inúmeros problemas de saúde.
Duas obras se destacam nesse período: “Henry Ford Hospital” e “Meu Nascimento”, que mais tarde, Rivera classificaria como “sem precedentes”. Até então, as mulheres eram limitadas à produção autobiográfica ou decorativa na Arte.
Kahlo, ao contrário, expunha temas incomuns para a época. Seu sofrimento enquanto mulher diante da gestação interrompida, pintando a própria vulnerabilidade física e mental coberta de sangue.
A artista no ato de se tornar ela mesma
O casal Kahlo-Rivera viveu nos Estados Unidos no início da década de 1930. Ela tinha apenas 23 anos e pintava há apenas cinco; a imprensa local a considerava apenas como a esposa do famoso muralista mexicano, 21 anos mais velho.
Ela mesma, ainda tímida, buscava desempenhar o papel de mulher devota. A obra “Frieda e Diego Rivera” (1931), foi inspirada na foto de casamento. Para enaltecer o marido, Frida adicionou instrumentos de pintura nas mãos dele.
A autora do livro “Frida in America”, Celia Stahr, disse em entrevista ao “The New York Times” que em São Francisco parte da rotina da artista era se reunir para desenhar com amigos que energizavam seu processo criativo.
Um deles, contou a autora, revelou que “os esboços geralmente eram muito obscenos ou horrendos e sangrentos ou sensual de alguma forma.” Esses encontros, segundo Stahr, foram importantes para o desenvolvimento artístico de Kahlo.
As trocas culturais também contribuíram para sua crescente personalidade artística e ajudaram a plantar as sementes para sua eventual ascensão ao status de ícone. Sua vestimenta indígena, influenciada pelas mulheres tehuanas despertou tanto entusiasmo nas ruas de São Francisco que ela teria parado o trânsito, chamando a atenção de renomados fotógrafos, que a convidaram para posar para eles. Também, um escritor local escreveu uma peça sobre ela e Rivera chamada “The Queen of Montgomery Street” (A Rainha da Rua Montgomery, em inglês).
Pouco depois, em Detroit, onde Rivera fora contratado para pintar outro mural em grande escala. Entrevistada por um repórter, Frida declarou que ela também era uma artista, “a maior do mundo”. (O repórter confirmou: “Ela pinta com muito charme.”).
Em 2021, a pintura a óleo “Diego e eu” (1949) de Kahlo foi vendida por 34,9 milhões de dólares, tornando-se a pintura latino-americana mais cara a ser vendida em leilão. Ironicamente, o recorde anterior era de Rivera.