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segunda-feira, dezembro 23, 2024

Desastres, perseguição e ameaça de repatriação afetam os rohingya, maior população apátrida do mundo

Crise humanitária envolvendo a maior comunidade apátrida do mundo permanece longe de uma resolução. Perseguição vivida pelos rohingya remonta pelo menos desde a década de 1970

Por Maria Eduarda Matarazzo

Incêndios, condições precárias de habitação, falta de acesso a direitos básicos como saúde e educação, além de incertezas diversas sobre o futuro. Essas são algumas das situações vivenciadas pela comunidade rohingya no campo de refugiados situado em Cox’s Bazar (Bangladesh), o maior do mundo atualmente, onde vivem quase um milhão de “rohingyas”. Essa comunidade, egressa da vizinha Mianmar (antiga Birmânia), representa a maior população apátrida no planeta e uma das crises humanitárias mais longas e negligenciadas da humanidade.

Os rohingyas são uma minoria muçulmana em um país no qual o budismo predomina como religião e onde tiveram a cidadania cassada – por isso, se encontram na condição de apátridas. Há decadas a comunidade sofre com a violência e repressão, levando nos últimos anos a um êxodo que alcançou 961,175 mil pessoas, segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR).

Essa comunidade tem buscado refúgio em outros países, muitas vezes passando dias caminhando por selvas e montanhas, ou por meio de viagens marítimas perigosas no Golfo de Bengala. 

O destino mais procurado é Bangladesh, país vizinho a Mianmar. Ao chegar lá, os rohingya são colocados em campos de refugiados ou até mesmo em assentamentos espontâneos que surgem, onde a falta de acesso adequado a água potável, saneamento, cuidados de saúde e abrigo tem um impacto significativo na qualidade de vida das pessoas, afetando sua dignidade e segurança.

Por conta do êxodo dos rohingya, Mianmar constava ao final de 2022 como o sexto país com mais pessoas deslocadas internacionalmente, de acordo com o ACNUR.

O maior campo de refugiados do mundo

A maior concentração de rohingya fica no campo de refugiados de Kutupalong, próximo à cidade Cox’s Bazar, no extremo-sul do país e bem próximo à fronteira com Mianmar. Gerenciado pelo governo bengali, o local compreende ainda assentamentos vizinhos que se expandiram em razão da perseguição do governo birmanês nos últimos anos.

O crescimento desordenado do campo de refugiados tornou Kutupalong um local propício para tragédias em larga escala. No dia 6 de março desse ano, ocorreu um incêndio sem causa aparente no campo de refugiados, o que resultou cerca de 12 mil pessoas desabrigadas. Após se espalhar rapidamente por meio de cilindros de gás nas cozinhas, o incêndio destruiu cerca de 2 mil abrigos feitos de bambu e lona, conforme relatado por autoridades do país. Serviços básicos como centros de água e clínicas médicas, também foram afetados.

De acordo com um relatório divulgado em fevereiro deste ano pelo Ministério da Defesa de Bangladesh, ocorreram 222 incêndios nos campos rohingyas entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022, dos quais 60 foram identificados como criminosos. Os assentamentos ainda se veem diante do aumento dos casos de sarna, uma doença infecciosa relacionada às condições superlotadas dos acampamentos, que atingiu os níveis mais altos em mais de três anos.

Incêndio atinge campo de refugiados rohingya em Bangladesh, na fronteira com Mianmar. (Foto: OIM)

Além disso, a região onde se encontra Bangladesh é especialmente vulnerável a desastres como enchentes e ciclones que se tornaram ainda mais destrutivos em razão das mudanças climáticas. Em maio, a passagem do ciclone Mocha deixou 145 mortos – a maioria das vítimas eram rohingyas.

“Nos campos de refugiados, os rohingyas têm acesso muito limitado a educação ou trabalho, o que gera impactos na saúde mental e um sentimento de desesperança. As necessidades de saúde, de água e saneamento e de proteção são enormes e avassaladoras”, sendo que a organização recebe “um número cada vez maior de pessoas que precisam de tratamento para infecções de pele e doenças relacionadas com a água [não-potável], assim como doenças crônicas, como diabetes e hipertensão”, descreveu a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) sobre o estado do local.

Além da situação precária nos campos de refugiados e demais assentamentos provisórios, os rohingya que se encontram em Bangladesh também sofrem com discriminação e ações repressivas. O governo bengali restringe o acesso dessa população ao sistema escolar local e também impõr barreiras ao casamento de cidadãos bengalis com rohingyas, entre outras limitações. Há também tentativas de repatriação forçada de rohingyas para Mianmar, apesar da críticas de organismos internacionais.

“As autoridades de Bangladesh não devem se esquecer das razões pelas quais os rohingya se tornaram refugiados e reconhecer que nenhum desses fatores mudou”, disse Shayna Bauchner, da Human Rights Watch Ásia.

Origens da migração forçada dos rohingya

Os rohingya são considerados a etnia mais discriminada do mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). A comunidade se concentra no estado de Rakhine, em Mianmar. A região é composta por mais 100 etnias diferentes e obteve sua independência do Reino Unido apenas em 1948, entretanto desde então vem sofrendo diversos conflitos internos. 

Muitos cidadãos birmaneses acusam os rohingya de serem uma etnia implantada durante a colonização britânica, que trouxe milhares de trabalhadores muçulmanos de Bangladesh – Mianmar se tornou independente do Reino Unido em 1948. Já os rohingya dizem ser indígenas do Estado de Rakhine, um dos mais pobres do país, anteriormente conhecido como Arakan.

Os rohingyas começaram a perder seus direitos civis em 1978, quando os militares que governavam Mianmar lançaram a operação “Rei Dragão”.  A ação começou com a apreensão dos cartões de identificação nacionais dessa etnia, em seguida pela utilização da violência para forçar a migração de indivíduos para Bangladesh. Em um momento posterior, as autoridades militares permitiram o retorno dessa população à Birmânia, porém muitos já não possuíam mais seus documentos de identificação, sendo classificados, consequentemente, como “estrangeiros”.

Já em 1982, o governo de Mianmar aprovou uma nova lei, onde 135 grupos étnicos foram considerados legais dentro do país. Porém, os rohingyas não foram inclusos, se tornando assim apátridas.

No ano de 1991, as forças militares deram início à chamada “Operação Limpa e Bela Nação”. Os Rohingya tornaram-se alvos de execuções, agressões, violência sexual, trabalhos forçados, restrições ao casamento, confisco de terras e destruição de suas moradias, começando a migração para outros países. Desse episódio nasceu o campo de refugiados em Bangladesh, nas proximidades de Cox’s Bazar.

Vista aérea do campo de refugiados de Kutupalong, em Bangladesh, que abriga parte da população rohingya deslocada de Mianmar. Crédito: Roger Arnold/ACNUR

Em 2017, as forças de segurança estatais realizaram a maior campanha de violência dirigida contra os Rohingya na história, o dia 25 de agosto marcou o êxodo de mais de 742 mil pessoas da minoria rohingya, de Mianmar, ao país vizinho, Bangladesh. A data é lembrada como uma das mais traumatizantes da história da migração forçada e colocou o drama dos rohingya em destaque no cenário internacional. Segundo o ACNUR, o ato se tratou de uma operação de “limpeza étnica”.

Apesar das cobranças de agências internacionais sobre Mianmar e Bangladesh sobre os rohingya, a crise humanitária envolvendo a maior comunidade apátrida do mundo permanece longe de uma resolução. Enquanto isso, a etnia segue em uma situação de limbo, sem terra e sem cidadania.

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