O planeta Terra, que deveria ser “nossa casa comum”, nega a cidadania a uma multidão errante, sem raiz, sem pátria e sem destino
Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
“Uma praga envenenou o debate sobre os desafios cruciais como a imigração” – disse António Guterres, Secretário geral da ONU, ao abrir o último Conselho de Direitos Humanos em Genebra, Suíça, realizado de 25 de fevereiro a 22 de março de 2019. Segundo ele, o mundo atravessa “uma onda de xenofobia, racismo e intolerância”. E prossegue: “o ódio espalha-se nas democracias e nos sistemas autoritários’. Em lugar da preocupação com uma gestão sobre os fluxos migratórios, “temos visto como o debate sobre a mobilidade humana, por exemplo, foi envenenado com falsas interpretações que misturam refugiados e migrantes com o terrorismo, transformando-os em bodes expiatórios para os males da sociedade”. Daí sua conclusão de que é necessária “uma nova estratégia geral para combater o incitamento ao ódio”.
Semelhantes palavras, como se pode notar, traçam um retrato bastante fiel da prática política do nacionalismo populista que hoje varre uma série de países, que vão desde os Estados Unidos e Hungria, até as Filipinas e a Áustria, passando pelo Brasil e a Itália. O discurso negativo sobre a mobilidade humana, aliás, costuma ser orquestrado desde o processo da campanha eleitoral. Depois, já na direção do governo, os novos estadistas (para não falar de ditadores) aplicam uma receita que se repete com uma frequência espantosa: fechamento das fronteiras com os demais países vizinhos, não faltando os muros com arame farpado ou controle de militares; diminuição do número de concessões para os requerentes de asilo, de modo particular os que provêm de determinados países; cortes substanciais no orçamento público para a acolhida, assistência e inserção de novos imigrantes; incentivo direto ou indireto à discriminação e ao preconceito para com o “outro, diferente, estrangeiro”.
Em território latino-americano, e nos confins com o Brasil, assiste-se à diáspora venezuelana, com quase 3,5 milhões de pessoas em fuga. Numericamente é a segunda maior do mundo, perdendo apenas para os sírios que se encontram fora do próprio país. Os dois casos, de resto, ilustram bem as causas, implicações e consequências da migração. De um lado, um povo empobrecido, sem alimento e sem remédios, remexendo no lixo para catar restos de comida, abandonado e sem as mínimas condições de permanecer na terra natal – e que por isso põe-se em marcha na tentativa de encontrar um refúgio onde recomeçar a vida. De outro lado, um povo há anos bombardeado pelo que existe de mais sofisticado na indústria bélica, refém do fogo cruzado de governo e rebeldes, mas refém igualmente das potencias internacionais e da produção em massa de armamentos cada vez mais pesados e letais – sai à estrada para poupar a si mesmo e às famílias o horror da guerra e de tantas formas de violência.
Em ambas as diásporas, imperam a cobiça, a tirania e a força de um punhado de famílias ricas, abastadas e entrincheiradas no poder. Revestidas pela ideologia – seja ela de caráter ideológico, político ou religioso – não hesitam em sacrificar grande parte da população para garantir os próprios privilégios. Tais tipos de desgoverno, evidentemente, alimentam a onda de intolerância que se alastra pela face da terra. Numerosos emigrantes, de onde saem não podem retornar, sob pena de prisão, perseguição ou morte; outros imigrantes, onde chegam não podem ficar, sob pena de hostilidade e crescente rechaço. O planeta Terra, que deveria ser “nossa casa comum” (como nos tem lembrado com insistência o Papa Francisco), nega a cidadania a uma multidão errante, sem raiz, sem pátria e sem destino.
O quer fazer? Como “combater o incitamento ao ódio”, nas palavras de António Guterres? Um fantasma ronda este tempo de contrastes. Ao mesmo tempo que se desenvolve a revolução dos transportes, das comunicações e da informática, o ser humano tropeça com a dificuldade de ver respeitado o direito de ir e vir. E tropeça com igual dificuldade quanto ao direito correspondente de permanecer com dignidade na terra em que nasceu. Enquanto o mundo se torna uma “aldeia global” para as mercadorias, a tecnologia, o capital, o turismo e as notícias, os migrantes são barrados nas fronteiras, ou como trabalhadores indesejados, ou como braços descartáveis. A miséria e a violência, a fuga e a teimosia os levam até as portas de um futuro possível. Mas ali, às vezes a um passo da meta, têm seus sonhos improvisadamente interrompidos. Restam a fé e a esperança, mas também estas podem esmorecer diante de tamanhas contradições!