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sábado, novembro 23, 2024

Empresas, ESG e migração: como esses temas se conectam

Embora ainda não plenamente estabelecida, a conexão entre empresas, ESG e migração é cada vez mais acentuada. E os impactos beneficiam a toda a sociedade

Por Natália de Lima Figueiredo 

“O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua (…)”.[1] Este importante dispositivo está presente desde a década de 70 na legislação que rege as sociedades no Brasil.

Antes, portanto, da onda de temas relacionados aos aspectos Ambientais, Sociais e de Governança (ESG, na sigla em inglês),[2] cuja nomenclatura ganhou fôlego no início dos anos 2000, a legislação brasileira já prescrevia que a empresa não se esgota na busca pelo lucro em si e a todo o custo. Tem deveres e responsabilidades com a comunidade em que atua.

A legislação empresarial não estabelece as ações positivas que uma empresa deva tomar para cumprir com sua função social, muito embora leis de diversas naturezas (e.g. trabalhista, ambiental) tragam balizas importantes. De todo modo, o dispositivo mencionado abre espaço para a discussão sobre a consideração de parâmetros ESG na condução dos negócios e na tomada de decisões no âmbito das empresas em geral.

Empresas de capital aberto já são obrigadas, atualmente, a divulgarem informações sobre suas práticas ASG, inclusive em temas como diversidade[3]. A ideia não é forçar nenhuma ação específica por parte de agentes privados, mas estimular práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa, além de garantir maior transparência ao mercado. Empresas públicas, por outro lado, têm a obrigação de adotar práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam.[4]

Mas o que o que migração tem a ver com tudo isso?

Estudos apontam que há cerca de 281 milhões de migrantes em todo mundo, o que equivale a 3,6% da população global. Na América Latina, o número mais que dobrou nos últimos 15 anos.[5] No Brasil, entre 2011 e 2020, se estima que estavam residindo aproximadamente, 1,3 milhão de imigrantes.[6]

A questão migratória é um tema atual de mobilidade e direitos humanos. Não apenas se verifica um aumento dos fluxos migratórios em razão dos constantes conflitos que afetam países e regiões, mas também por razões ambientais.[7] Além disso, há o fluxo dos trabalhadores migrantes,[8] que saem em busca de melhores condições de vida.

Dentro da ampla categoria de imigrantes, importante chamar atenção para o refugiado, que é o indivíduo que, por temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora de seu país de nacionalidade. Também se enquadra no conceito a pessoa que, devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigada a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.[9]

No ano de 2022, o Brasil recebeu 50.355  solicitações de reconhecimento da condição de refugiado que, somadas àquelas registradas a partir do ano de 2011 (297.712), totalizaram 348.067 solicitações protocoladas desde o início da última década.[10] Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), a principal preocupação do refugiado no Brasil diz respeito à empregabilidade e geração de renda.[11]  A taxa de desemprego para refugiados no Brasil tende a ser o dobro da taxa de desemprego nacional.[12] No entanto, um número expressivo de empresas não contrata refugiados por desconhecer os procedimentos para contratação. Muitas entendem que estariam fazendo algo ilegal ou que eles não disporiam da documentação necessária.[13]

Tudo isso, todavia, é pura desinformação, pois o processo de contratação de refugiados no Brasil é igual ao procedimento feito com brasileiros. A única diferença é que o refugiado não tem RG, mas sim uma CRNM (Carteira de Registro Nacional Migratório), que equivale ao RG brasileiro. Já os solicitantes de refúgio recebem um protocolo temporário, que também é válido. Além disso, podem se registrar como MEI (microeempreendedor individual), se quiserem atuar como empreendedores.

Parâmetros ESG e migrações

A crescente preocupação com parâmetros ESG tem um impacto positivo na empregabilidade de refugiados na medida em que as empresas, sobretudo de grande porte, começam a se preocupar mais com inclusão e diversidade em suas contratações. Nesse aspecto, surgem iniciativas de empregar essa minoria que abrange os refugiados.

A título ilustrativo, empresas como Accenture, Renner, American Cookies, Localiza[14] e Frimesa[15] apresentam preocupações específicas com diversidade e, em particular, políticas de contratação de refugiados. Como parte das regras da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sobre divulgação de informações relativas a práticas ASG, a empresa Renner S.A. noticiou em seu Relatório Anual que capacitou e encaminhou para o mercado de trabalho mais de 300 refugiadas, desde 2016, com cerca de 100 contratadas pela Lojas Renner S.A., sendo 15 mulheres contratadas em 2022.[16] Já a JBS menciona em seu Relatório de Sustentabilidade que a diversidade de etnia, cultura, religião, idiomas e país de origem é uma marca do quadro de colaboradores da Companhia. No Brasil, a equipe conta com imigrantes de vários países, como Senegal, Haiti e Venezuela, além de populações tradicionais (indígenas. Em 2020, a Companhia empregava mais de 2,5 mil profissionais de outros países.[17]

O ACNUR tem uma iniciativa em parceria com Pacto Global da ONU no Brasil: a plataforma Empresas com Refugiados. No site é possível anunciar vagas e também ter acesso a um banco de práticas de contratação (www.empresascomrefugiados.com.br).

As empresas que contratam refugiados não apenas demonstram um senso de responsabilidade ao apoiar a população migrante, mas também se beneficiam de suas valiosas habilidades e experiência profissional. Muitos migrantes e refugiados possuem competências linguísticas adicionais, o que muitas vezes é essencial para diversas funções. Além disso, estudos indicam que a contratação de refugiados resulta em menor rotatividade, pois eles tendem a ser mais leais às empresas que lhes oferecem oportunidades.

Além desses benefícios, as empresas também relatam melhorias nos processos de inovação, aumento da motivação das equipes de trabalho e outros aspectos positivos. Ademais, empresas que se envolvem na pauta de refúgio têm boas práticas em suas relações trabalhistas e em temas mais abrangentes como combate à discriminação, xenofobia, diversidade, inclusão e equidade de gênero.[18]

Sociedade mais justa, inclusiva e sustentável

Ao considerar a contratação de refugiados, as empresas não apenas atendem aos princípios ESG, mas também contribuem para uma sociedade mais inclusiva, justa e sustentável. Com isso, atentam-se à comunidade em que se inserem e contribuem com o cumprimento da função social da empresa que já aparecia em nossas leis desde a década de 70, antes mesmo do surgimento das primeiras noções de ESG em sentido estrito.

Dessa forma, evidencia-se a conexão entre a atividade empresarial, ESG e a migração, que no Brasil, embora ainda não plenamente estabelecida, vem se acentuando, notadamente a partir do engajamento de grandes empresas.

Necessário, pois, a partir daí, que haja maior disseminação acerca da simplicidade dos aspectos legais que envolvem a contratação de imigrantes ou refugiados e dos benefícios advindos para a empresa com a contratação de mão-de-obra imigrante e refugiada, sem considerar todo o impacto positivo para essas minorias e a sociedade como um todo.

Importante, por fim, que canais de informação e orientação sejam abertos e extensíveis também a pequenas e médias empresas (PMEs), que não necessariamente têm obrigações mais concretas relativas à divulgação de práticas ASG, mas que, por representarem substancial parcela dos estabelecimentos e das carteiras assinadas no Brasil, poderiam contribuir significativamente com a contratação de refugiados e migrantes.

Agradeço à Julia Ferreira Fernandes pelo auxílio com pesquisas

Sobre a autora

Natália de Lima Figueiredo é advogada e Professora de Direito Empresarial. Doutora em Direito Internacional pela Universidade de Maastricht (Holanda) e pela Universidade de São Paulo – USP (dupla titulação). Mestre em Direito Comercial e Bacharel em Direito pela USP.

Referências

[1] Art. 116, parágrafo único, da Lei nº. 6.404/1976, também conhecida como Lei das Sociedades Anônimas.

[2] Segundo Trindade e Redecker, o mercado reconhece a importância dos aspectos ambientais, sociais e de governança (ASG) devido ao surgimento do chamado “novo capitalismo”. Nesse modelo, o valor empresarial não se baseia mais exclusivamente na busca incessante pelo lucro e no cumprimento de alguns critérios de sustentabilidade. Atualmente, a sociedade exige que as empresas estejam conscientes do que acontece ao seu redor, assumindo responsabilidades que vão além do desenvolvimento de suas atividades e se relacionam também com os problemas enfrentados pela sociedade. C. Trindade; R. Redecker. Práticas de ESG em Sociedades Anônimas de Capital Aberto: Um Diálogo entre a Função Social Instituída pela Lei N°6.404/76 e a Geração de Valor. RJLB, Ano 7, nº. 2, pp. 59-125, 2021.

[3] A Resolução n° 59/21 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) cria um novo regime de divulgação de informações para as empresas brasileiras de capital aberto, que devem aderir a novas métricas ESG em seu formulário de referência. A nova normatização para reportar métricas ESG substitui as Resoluções 480 e 481/09 e sofre influência da legislação europeia a fim de que investidores tenham informações mais claras, precisas e padronizadas sobre os pilares ambientais, sociais e governamentais das empresas. Além disso, a CVM também publicou a Resolução nº 175, que substitui a Instrução 555 e outras normas que regulamentam os fundos de investimento. Referida normativa representa avanços na agenda do ESG na medida em que busca estabelecer critérios para que um fundo possa fazer uso de expressões como “ESG”, “ASG”, “ambiental”, “verde”, “social”, “sustentável” ou quaisquer outros termos correlatos.

[4] Art. 27, § 2º, da Lei nº. 13.303/2016 (Estatuto da Empresa Pública).

[5] M McAuliffe e A. Triandafyllidou (eds.), World Migration Report 2022. International Organization for Migration (IOM), Geneva. Disponível em: https://publications.iom.int/books/world-migration-report-2022.

[6] L. Cavalcanti; T. Oliveira.; B. G. Silva. Relatório Anual 2021 – 2011-2020: Uma década de desafios para a imigração e o refúgio no Brasil. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2021. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/Obmigra_2020/Relat%C3%B3rio_Anual/Relato%CC%81rio_Anual_-_Completo.pdf

[7] Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a migração ambiental é o movimento de pessoas que, predominantemente devido a mudanças repentinas ou progressivas no meio ambiente que afetam adversamente suas vidas ou condições de vida, são obrigadas a deixar seus locais de residência habitual ou optam por fazê-lo, seja temporariamente ou permanentemente, e que se deslocam dentro ou fora de seu país de origem ou residência habitual. Em 2020, 30,7 milhões de deslocamentos foram causados por desastres em 145 países e territórios e, ao longo do período de 2008 a 2020, mais de 2,4 milhões de deslocamentos foram causados por secas e mais de 1,1 milhão por temperaturas extremas.  Vide: M McAuliffe e A. Triandafyllidou, ob cit.

[8] Em uma década, o volume de trabalhadores migrantes no Brasil saltou de 62.423, em 2011, para 181.385, em 2020, conforme o relatório do Observatório das Migrações Nacionais Vide: L. Cavalcanti; T. Oliveira.; B. G. Silv, ob. cit.

[9] Art. 1º da Lei nº. 9.474/1997 (Estatuto Brasileiro dos Refugiados).

[10] JUNGER DA SILVA, Gustavo; CAVALCANTI, Leonardo; LEMOS SILVA, Sarah; TONHATI, Tania; LIMA COSTA, Luiz Fernando. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Departamento das Migrações. Brasília, DF: OBMigra, 2023. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/Obmigra_2020/OBMIGRA_2023/Ref%C3%BAgio_em_N%C3%BAmeros/Refugio_em_Numeros_-_final.pdf

[11] ACNUR. Relatório “Vozes das Pessoas Refugiadas no Brasil”, 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2021/06/ACNUR-Relatorio-Vozes-das-Pessoas-Refugiadas-reduzido.pdf

[12] ACNUR. Perfil socioeconômico dos refugiados no Brasil. Subsídios para elaboração de políticas, 2019.

[13] Ricardo Westin. Por preconceito e desinformação, empresas evitam contratar refugiados. In: Agência Senado. Publicado em 14/10/2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/por-preconceito-e-desinformacao-empresas-evitam-contratar-refugiados.

[14] Maria Clara Dias. Diversidade: empresas contratam imigrantes para ampliar representatividade, 22/06/2021. Disponível em: https://exame.com/esg/diversidade-empresas-contratam-imigrantes-para-ampliar-representatividade/

[15] A Frimesa recebe imigrantes em seu quadro de funcionários desde 1986. Vide: https://coonecta.me/exemplos-de-esg-no-cooperativismo-brasileiro/

[16] Renner. Relatório Anual 2022. Disponível em: 7f5440f5-ca3e-1fe3-d6ba-b02082b0c2dd (mziq.com)

[17] JBS. Relatório de Sustentabilidade 2020. Disponível em: -relatorio-de-sustentabilidade-jbs-2020.pdf

[18] Naiara Bertão. Consultoria ESG: Oficial da agência de refugiados da ONU aponta os desafios de integrar refugiados. In: O Globo, 23/11/2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/esg/noticia/2022/11/consultoria-esg-oficial-da-agencia-de-refugiados-da-onu-aponta-os-desafios-de-integrar-refugiados.ghtml

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