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quinta-feira, abril 18, 2024

Escolas de São Paulo se unem contra trabalho infantil entre crianças migrantes

Projeto Canicas dá suporte para articulação em rede em Freguesia do Ó e Brasilândia, em São Paulo, para prevenir trabalho infantil entre crianças migrantes

Por Nicolas Neves dos Santos
Do Projeto Canicas

Historicamente, a Zona Norte é uma porta de entrada para viajantes que chegavam à cidade de São Paulo. Seus acessos viários e rotas para cidades vizinhas fizeram da região um espaço de concentração e movimento de diversas pessoas oriundas dos mais diversos lugares. Recentemente, a região é mais um dos vários e densos espaços urbanos da cidade, com divisões socioeconômicas e culturais latentes e tão comuns às grandes metrópoles brasileiras. A região, porém, continua atraindo famílias migrantes de várias nacionalidades em busca de oportunidades de trabalho, moradia e serviços públicos. 

Nos últimos anos, muitas das escolas sob gestão da Diretoria Regional de Educação (DRE) da Freguesia/Brasilândia perceberam um aumento no número de matrículas de crianças migrantes ou filhas de migrantes de outros países. De acordo com a DRE, atualmente, 446 crianças e adolescentes de diferentes nacionalidades estão matriculados em colégios da região, sem contar brasileiros filhos de migrantes.

São jovens de países tão distintos como Espanha, Japão, Haiti, Congo, Nigéria e, em sua maioria, Bolívia. Os desafios de acolher e integrar essas crianças no sistema público de educação exigem de professores e coordenadores mais reflexões sobre a questão da criança migrante e, consequentemente, a capacitação dos servidores envolvidos com essas famílias.

Perceber o aluno migrante

Um dentre os vários temas que surgem como desafio para a escola e as famílias migrantes é o trabalho infantil. Cláudia Tumbert, coordenadora pedagógica da EMEI Dr. Enzo Silveira descreve como foi o processo de perceber a realidade das famílias migrantes na região.

“A gente não tinha tanto conhecimento em relação a como era a vida e o trabalho dessas famílias. Só sabiamos que a maioria das famílias trabalhava em oficina de costura, mas não tínhamos dimensão de como isso acontecia e de como atingia as nossas crianças”.

Na região norte, bem como em muitas outras áreas da cidade de São Paulo, a indústria têxtil é uma das principais formas de inserção econômica de famílias migrantes. A organização e as dinâmicas do setor acabam tendo consequências sobre a vida familiar.  

“Alguns tem bastante esclarecimento de como tem que ser a educação da criança. Outras famílias, não. Elas estão muito envolvidas em relação ao trabalho, e isso reflete muito nas crianças, que também trabalham – não nas máquinas, mas nas funções da família, e isso afasta muito a criança de uma infância saudável.”, diz Cláudia. Segundo a coordenadora, a criança perde parte da infância por estar envolvida de alguma forma com o trabalho infantil.

Para se aprofundar no tema, Cláudia organizou um levantamento sistemático de dados com a equipe docente. “Percebemos muitos relatos de alunos migrantes com dificuldades de fala, e os professores solicitavam para que eu encaminhasse para atendimento fonoaudiológico, para fazer avaliação. Foi aí que eu percebi a quantidade de crianças que eu tinha de outro país, e que a questão não era que elas tinham problemas de fala. Elas tinham problema de comunicação, porque não tinham domínio da nossa língua. Elas não compreendiam o que era dito por nós, e a gente também não as compreendia. Também nos deparamos com um caso de uma criança que sofreu um acidente que comprometeu sua visão ao lado da máquina de costura da mãe”. As demandas trazidas pelas crianças migrantes colocaram coordenadores e professores na busca por respostas, entendendo a importância de colocar em prática novas formas de “comunicação com as famílias, para que elas entendessem as propostas da escola e para que a gente pudesse atender de uma forma mais humana as nossas crianças”.

O diretor da EMEI Bombeiro José Robson da Costa Araújo, Francisco Campos Pacheco Neto, também entende que o principal desafio da população migrante no território é a garantia de direitos. “Percebemos que muitos ainda chegam sem saber de seus direitos e como acessá-los.  Outra demanda, de caráter mais interno, diz respeito ao processo educativo, onde a família possa ter uma melhor compreensão das etapas e possibilidades formativas de suas crianças, jovens e adultos. No caso da educação infantil (0 a 5 anos) a participação da família é fundamental no desenvolvimento da aprendizagem.” O diretor destaca que quase a totalidade das famílias de migrantes possuem relações de trabalho marcadas pela informalidade. “Muitas trabalham em casa e esse tipo de trabalho rompe os parâmetros de tempo e espaço nas relações sociais e familiares, tendo como consequências algumas dificuldades de aprendizagem, muitas vezes confundidas com problemas de saúde”. Compreender essa realidade, segundo Francisco, auxilia a pensar estratégias que minimizem essa situação.

Resposta a demandas e trabalho em rede

Diante das demandas crescentes por formação e da provocação feita pela EMEI Dr. Enzo Silveira, o Núcleo de Apoio e Acompanhamento para Aprendizagem (NAAPA), serviço da DRE criou o Grupo de Trabalho Itinerante “As diferenças em pauta: culturas imigrantes no espaço escolar” com outras duas escolas de educação infantil do território da Freguesia/Brasilândia.

Segundo Vanessa Garcia, psicopedagoga, o NAAPA surgiu justamente da observação de que “mais de 50% das educandas e dos educandos encaminhados para avaliação de hipóteses diagnósticas de deficiência não apresentavam tais questões, mas dificuldades no processo de ensino-aprendizagem decorrente de situações sociais, familiares e cognitivas”. Esses desafios são abordados pelo NAAPA de acordo com parâmetros e princípios como a defesa, a promoção e proteção dos direitos humanos e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); o respeito à diversidade; e a defesa da educação pública, gratuita, democrática, laica, de qualidade e socialmente referenciada para todas e todos. 

“A ideia de uma educação inclusiva sustenta-se em um movimento mundial de reconhecimento da diversidade humana e da necessidade contemporânea de se constituir uma escola para todos, sem barreiras, na qual a matrícula, a permanência, a aprendizagem e a garantia do processo de escolarização sejam realmente – e sem distinção – para todos”, reforça a psicopedagoga, em menção ao Currículo da Cidade. 

A articulação em rede, neste sentido, torna-se fundamental para a prevenção e erradicação do trabalho infantil. Thaís Charelli Martins Leandro, psicopedagoga e técnica da Divisão Pedagógica (DIPED) da DRE defende o trabalho em rede, pois “a criança, de forma integral, é um sujeito que precisa ser olhado em todas suas dimensões: cultural, física, intelectual, emocional”.

Desta forma, segundo Thaís, os impasses enfrentados no processo de escolarização motivam a articulação com a rede de garantia de direitos: “Os Direitos muitas vezes são negados, então a gente vai buscando essas parcerias para fortalecer mesmo o território. Para Adriano Carvalho, diretor da EMEI Brigadeiro Eduardo Gomes, o trabalho do GT apareceu como uma oportunidade de “enxergar essa população e marcá-los em nosso PPP (Projeto Político-Pedagógico). Professores, funcionários de limpeza, todo mundo passou a vê-los. Isso foi muito marcante.”

Parcerias para prevenir o trabalho infantil

Outros grupos atuam na região no intuito de apoiar as escolas no amparo e acolhida das famílias e crianças migrantes. São grupos como o Projeto Canicas, apoiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, e o Grupo Veredas: Imigração e Psicanálise, projeto de extensão universitária da USP.

Para Cláudia, a coordenadora pedagógica da EMEI Dr. Enzo Silveira, a parceira com o Projeto Canicas foi um “divisor de águas no nosso trabalho, porque nós conseguimos ter uma visão muito ampla em relação a tudo que pode influenciar dentro da escola”.  A coordenadora ainda frisa a importância do trabalho junto às famílias: “eles (familiares) puderam colocar seus anseios, angústias, compartilhar sua vida, e entender quais são as propostas da escola, como a escola pode ser parceira em relação à educação de seus filhos (…) A partir desse encontro, junto com o Canicas, os pais modificaram o seu comportamento conosco na escola.”

Vanessa também aponta a importância de que as escolas levem as demandas das famílias migrantes para a DRE: “Buscamos parcerias com a EMEI Brigadeiro e também com a EMEI Bombeiro para compor o GT e assim ampliar as possibilidades de trabalho junto a uma demanda trazida pela EMEI Enzo. Algumas dessas EMEIs já faziam trabalho com o Canicas e já tinham outras parcerias.”

De acordo com a psicopedagoga, essas ações fortalecem a compreensão da escola como lugar privilegiado para a proteção social das crianças, incluindo a prevenção e orientação sobre o trabalho infantil. “Trabalhos como o do Projeto Canicas trazem questões sobre o trabalho infantil numa perspectiva diferente dos conceitos que fazíamos a respeito desse tema”.

Objetivos e compromissos

As articulações do GT tiveram um impacto marcante para a rede, levando à inclusão do tema nas Jornadas Pedagógicas, realizadas em novembro de 2019. A atividade contou com representantes de algumas dezenas de escolas de educação infantil do território, a maior parte delas, com alunos e alunas migrantes. 

Thaís afirma que esse é um debate que deve continuar: “A gente está falando de escolas que estão nas periferias, e (de) como resgatar os sonhos, as utopias nesses lugares que são lugares possíveis, são lugares de possibilidades. Eu penso que essa seja uma proposta de trabalho na DRE Freguesia/Brasilândia, ampliar vozes, ampliar a escuta, o acolhimento, pensar nessa escola para todos, essa gestão democrática, de fato participativa. Quando a gente tem uma cidade em comunicação, um território todo em comunicação, de fato a gente tem todos os direitos, não só educação, a gente vai ampliando o direito de todos”.


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