A suspensão do jogo entre Brasil e Argentina, no último domingo (5) em São Paulo, vai além de toda a polêmica esportiva criada em torno de um dos grandes clássicos do futebol mundial. Ela também pode ser considerada exemplar sobre os critérios pouco claros de aplicação da portaria do governo que regula a entrada de pessoas de outros países no Brasil sob a pandemia de Covid-19 – incluindo os imigrantes.
A portaria em vigor no momento é a 655, de 23 de junho de 2021, que, entre outros pontos, determina que viajantes que venham ou tenham histórico recente de passagens por Reino Unido, África do Sul e Índia, sejam submetidos a uma quarentena de 14 dias ao ingressarem no Brasil. E que o descumprimento dessa norma implica em deportação imediata.
Foi esse preceito aplicado a quatro jogadores da seleção argentina, que atuam no futebol da Inglaterra (que é parte do Reino Unido). Segundo a Anvisa, eles não informaram sobre esse histórico ao ingressar em território brasileiro e, por consequência, não poderiam estar na delegação que disputaria a partida.
Por outro lado, de acordo com as entidades esportivas, haveria um acordo que permitiria a participação dos atletas na partida entre Brasil e Argentina, pelo fato de o calendário esportivo não dar espaço para a realização da quarentena. A Anvisa, no entanto, mostrou-se irredutível e paralisou o jogo, que acabou suspenso pouco depois e não tem ainda uma nova data para sua realização.
Contradições da política migratória
A portaria usada para retirar de campo os atletas acusados de omitir o histórico de passagem pelo Reino Unido, e sobre a qual haveria um acordo para que não valesse no caso da seleção argentina, é a mesma que vem sendo aplicada para justificar a deportação de imigrantes que ingressam no território nacional sob a pandemia.
Adotadas desde março de 2020, as portarias vem sendo sucessivamente renovadas pelo governo brasileiro. Os termos, no entanto, são alvo de questionamentos por parte da sociedade civil e até mesmo do Judiciário, por contrariarem dispositivos presentes na própria legislação nacional, como a Lei de Migração. A medida também é considerada discriminatória em relação a migrantes em situação de vulnerabilidade e a solicitantes de refúgio.
Liberadas desde meados de 2020, sob o pretexto de incentivar o turismo, as entradas no Brasil por meio de aeroportos engrossaram as críticas da sociedade civil sobre o caráter discriminatório das portarias editadas pelo governo, já que o mesmo tratamento não é dado para os ingressantes por terra. Apesar das objeções, as medidas tem sido renovadas periodicamente.
“Apesar da Portaria ser inconstitucional e inconvencional, está vigente e é aplicada para migrantes e solicitantes de refúgio todos os dias, prevendo a inabilitação de pedido de refúgio e a repatriação e deportação sumária, institutos não previstos pela Lei de Migração, Estatuto dos Refugiados, Lei da Pandemia e instrumentos internacionais. O que significa que violações aos direitos migratórios tem ocorrido em território nacional constantemente”, ressalta a advogada Isabella Traub, fundadora do Instituto de Políticas Públicas Migratórias.
Leitura semelhante é feita pelo advogado Vitor Bastos, vice-presidente do Comissão dos Direitos dos Imigrantes e Refugiados da seccional paulista da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Segundo ele, o jogo Brasil x Argentina é emblemático sobre a atuação das autoridades migratórias e da própria política migratória brasileira atual.
“Infelizmente, trata-se de uma política que ainda é pautada por traços classistas, de favorecimento de determinados perfis de migrantes desejados em detrimento de outros economicamente “indesejados”, conforme o interesse dos governantes, na contramão da atual Lei de Migraçao que impõe um paradigma de direitos humanos no tratamento aos migrantes no país”.
Segundo os dois advogados, o caso envolvendo o jogo do último domingo deve ser acompanhado justamente para verificar de que forma o governo agirá em relação à portaria: se vai continuar aplicando a normativa para todos ou se vai abrir novas margens para exceções.
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