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sexta-feira, novembro 22, 2024

”Falam de nós, mas não nos dão a palavra”, diz refugiado autor de carta ao Parlamento Europeu

Sudanês e mestrando em Sociologia na França, Hamad Gamal ficou famoso depois que sua carta viralizou na internet denunciando a precariedade do acolhimento europeu. Gamal conversou com o MigraMundo para o Dia Mundial do Refugiado

Por Victória Brotto
De Estrasburgo (França)

Leia aqui a versão em francês

Uma semana antes das eleições europeias, Hamad Gamal enviou uma carta (leia aqui a versão em francês ) ao Parlamento Europeu, na qual pedia melhoras na política migratória. Seria mais um manifesto engajado de um estudante de Sociologia, se o jovem de 27 anos não tivesse fugido de milícias no Sudão, ido para a Líbia, onde dezenas de milhares de migrantes são vendidos como escravos, e de depois ter viajado por três dias dentro de um barco até a Itália.

Hamad Gamal é considerado pelo Direito Internacional como refugiado, status que lhe fora outorgado pelo governo francês em 2017. ” Na Europa, o termo refugiado virou uma identidade”, afirmou Gamal em entrevista ao MigraMundo. Nela, ele discorreu sobre o dever do requerente de asilo e do refugiado de protestar por seus direitos, compara as precariedades vividas em Paris e em Trípoli (capital da Líbia), além de comentar a ascensão de grupos anti-imigração na política europeia.

“Fala-se muito de refugiados, mas não é dada a palavra a eles. É necessário que os refugiados tenham voz, para lutarem por seus direitos diante das situações horríveis que vivem.”

Confira a entrevista abaixo:

MigraMundo: Como você teve a ideia de escrever uma carta ao Parlamento Europeu?
Hamad Gamal: Na Europa, fala-se muito de refugiados, mas não é dada a palavra ao refugiado. E é necessário que eles tenham voz, para lutar por seus direitos diante das situações horríveis que vivem (…) Sobre a carta, ninguém do Parlamento respondeu, no entanto, muitas pessoas comentaram nas redes sociais.

MigraMundo: O que é ser um refugiado no mundo de hoje (e na Europa, que é o seu caso)?
Hamad Gamal: Isso é algo que eu me pergunto o tempo todo. Às vezes significa algo bom, às vezes, ruim. O ruim é que os políticos, sobretudo, diabolizaram e criminalizaram os refugiados. É duro, então, ser um refugiado porque todos pensam que ou você é o diabo ou você é, no mínimo, um criminoso. Também tem o problema do termo ”refugiado”; na Europa, ser refugiado virou a sua identidade. Mas refugiado é um termo jurídico para definir uma situação jurídica, porém na Europa ser refugiado é, antes de tudo, uma identidade.

Se eu faço qualquer coisa, é porque eu sou refugiado, se eu gosto de qualquer coisa é porque eu sou refugiado, entre os colegas, eu sou o refugiado… O termo virou um termo sensível, e os políticos acabaram usando o termo para ganhar voto em cima de um discurso anti-imigrante.

Sede do Parlamento Europeu em Estrasburgo (França) elege 751 novos deputados; 22% deles são contrários anti-imigração. Crédito: Victória Brotto/MigraMundo

MigraMundo: Como jornalista cobrindo migrações, eu conheci muitos requerentes de asilo e refugiados. Algo que notei foi uma tendência, entre eles, de criticar as violações de direitos feitas no país de origem, mas nunca questionar as violações cometidas no país de acolhimento. Por que isso acontece?
Hamad Gamal: Essa é uma boa questão e ela está ligada a basicamente três coisas. A primeira é a integração; os refugiados que chegam à Europa se sentem fora sistema e, por isso, ficam alheios ao sistema, eles não compreendem o que se passa ao redor deles. A segunda coisa é a imagem de sonho que a pessoa que fugiu de seu país tem da Europa. E mesmo quando chegamos aqui, quando vimos e vivemos situações absurdas, essa imagem de ”terra dos sonhos” fica na nossa mente nos impedindo de ver a realidade.

A terceira coisa é o psicológico: psicologicamente quando se cresce em um país ditatorial tem-se o hábito de silenciar, de não protestar contra as coisas. Na época que eu dormi na rua em Paris, à la Chapelle (região ao Norte de Paris conhecida pelos milhares de migrantes dormindo na rua) , estávamos há três semanas na rua, e eu chamei os meus amigos para protestar. Eles me disseram: ”Ah não, é perigoso, você vai ser pego pela polícia, você vai perder o direito de pedir asilo e etc”. Eu expliquei que esse tipo de coisa não acontece aqui, que aqui não é como no Sudão ou como nos outros países de onde fugiram. Na Europa, podemos dizer não, podemos protestar pelas injustiças, reclamar nossos direitos. Mas eles tinham medo, um medo de protestar que trouxeram de seus países…

Enquanto governos como o italiano fecham suas fronteiras em nome da segurança, migrantes continuam entregues à própria sorte. Crédito: Marina Militare

MigraMundo: Na sua carta, você chama a UE à assumir suas responsabilidades quanto aos migrantes forçados. Quais seriam elas?
Hamal Gamal: Primeiramente a não impedir que os barcos cheguem nem impedir o trabalho das ONGs de salvar essas pessoas no mar, como faz o governo italiano. Segundo: é preciso mudar as leis migratórias, elas são muito complicadas. Precisamos de leis europeias que salvem vidas e que protejam as pessoas e não que botem medo no migrante. Terceiro: a Europa tem as suas responsabilidades quanto aos migrantes vendidos como escravos na África, em países como a Líbia, por exemplo. Precisa-se pensar em políticas para protegê-los. Eu morei na Líbia por seis meses e eu vivi situações horríveis….você não pode imaginar o que acontece lá. Migrantes são vendidos como escravos por um salário mínimo, outros são presos por dois, três anos…

MigraMundo: Na sua carta ao Parlamento, você descreveu algumas dificuldades vividas em Paris como requerente de asilo, bem como as dificuldades passadas na Líbia. É possível fazer uma comparação entre as precariedades vividas em solo líbio e em solo francês?
Hamad Gamal: A situação na Líbia é muito difícil, a guerra está em todo o lugar. Eu morei em Trípoli, na capital, e foi um período realmente duro. Eu fui para Libia com o intuito de tentar recomeçar a vida, mas quando eu cheguei logo percebi que era o caos, lá estava muito pior do que no meu país. Então eu decidi ir para a Europa de barco, a aventura mais horrível de toda minha vida: um barco cheio de gente, corpos inclusive de pessoas que não resistiram à viagem…nós ficamos três dias em alto-mar até chegar na Sicília (Sul da Itália).

Em Paris, eu cheguei, fiz meu pedido de asilo e fui para la Chapelle (Norte de Paris), não tinha outro jeito se não dormir na rua porque era muita gente para alojar. Na Chapelle eu fiquei três semanas dormindo na rua com 2.150 pessoas

Quando comparamos as duas situações, na França eu me sentia em segurança porque aqui tem paz, não tem ameaças de morte nem guerra. No entanto, as condições de acolhimento foram muito precárias…muito difícil mesmo. Mesmo na Líbia, apesar de todo o caos da guerra, a condição de vida era melhor; lá eu tinha um trabalho e tinha onde dormir, todo o dia eu dormia debaixo de um teto e na minha cama. Lá eu trabalhava em uma lojinha e dormia na loja mesmo, graças ao meu chefe que me alugou um quarto.

Em Paris, você precisa esperar pelo menos duas horas para tomar banho nos banheiros municipais, uma hora pelo menos nos bandeijões e, no fim do dia, você dorme na rua.

”É necessário que os refugiados tenham voz, para lutar por seus direitos diante das situações horríveis que vivemos” Crédito: ACNUR

MigraMundo: Você escreveu na sua carta que o futuro dos refugiados na Europa dependiam também dos resultados das eleições ao Parlamento. Com os resultados conhecidos, com a ascensão de grupos populistas anti-imigração, ao seu ver, como fica o futuro dos refugiados?
Hamad Gamal: Eu lamento muito o resultado porque eu conheço bem o discurso da extrema direita…de Marine Le Pen, de Salvini. Ele é uma grande ameaça ao nosso futuro. Eu me preocupo hoje mais com o futuro dos refugiados na Europa do que com o futuro dos refugiados na África.

MigraMundo: O resultado das eleições europeias não reflete uma nova mentalidade europeia anti-estrangeiro presente nos europeus?
Hamad Gamal: Eu não posso generalizar porque existem ainda muitas pessoas engajadas na luta pelo direito dos migrantes e refugiados. Mas existe infelizmente uma parte dos europeus que são contrários. Os resultados mostram, principalmente, que a extrema-direita está mais forte politicamente hoje. E isso é algo realmente grave.

MigraMundo: Aconteceram algumas discriminações contra estrangeiros em universidades portuguesas e francesas. Você chegou a ser discriminado na sua universidade em Lyon?
Hamad Gamal: Honestamente não. Tirando algumas situações nas quais não ficou claro se eram atos discriminatórios ou não. Mas geralmente as pessoas nas universidades são mais abertas, mais cultas, mais estudadas.

MigraMundo: Hoje você faz mestrado em Sociologia. Por que a escolha por Sociologia?
Hamad Gamal: No Sudão, eu estudei Ciências e Estatística, mas eu sempre tive vontade de me voltar para um campo onde eu pudesse ajudar, com mais engajamento, os outros. Como refugiado hoje, através dos meus estudos, eu quero contribuir para o bem dos outros. As questões migratórias eu conheço bem, elas viraram a minha identidade aqui. E ainda a Sociologia me permite compreender, por meio da teoria, o fenômeno que está mais próximo de mim, que é o migratório (…) Eu respeito muito a França quando penso nos meus estudos, em todas as oportunidades de estudar que encontrei aqui. Eu tentei tirar o máximo de tudo o que vivi, ver o lado apenas positivo de tudo o que me aconteceu. Acredito que sem fazer isso, você não consegue avançar.

MigraMundo: Você tem algo mais a dizer?
Hamad Gamal: Primeiramente obrigado por ter me contactado. É muito importante a iniciativa de dar a palavra para os refugiados. Como eu disse antes, mesmo vivendo muitos problemas, são poucos os que se levantam para protestar por seus direitos.

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